terça-feira, 28 de maio de 2013

Os calos

Em 1935, vivia-se a alvorada fulgurante dos totalitarismos europeus.
Alfred Eisenstaedt, fotógrafo, alemão e judeu, tinha bem consciência disso. Saíra já do país natal, onde o nazismo ia construindo em crescendo o drama que levaria a Europa à ruína uns anos depois, e encontrava-se num dos palcos secundários desse devaneio.

A Etiópia, estado milenar, era, à data, a única verdadeira nação independente da chamada África Negra (existia a Libéria, é certo, mas esta era em boa medida uma criação americana e um protectorado). A Itália de Mussolini sentia-se menorizada pela sua irrelevância imperial, e pretendia alargar os territórios que controlava no Corno de África. Partindo dum diferendo na definição das fronteiras entre a Eritreia (território de domínio transalpino) e a Etiópia, preparava-se para engolir esta última. Para os fascistas italianos, a coisa afigurava-se como favas contadas. O exército etíope, apesar duma mobilização geral decretada pelo imperador Haile Selassie, parecia  não ser obstáculo. A maioria dos seus homens estava armada com espingardas do século anterior, ou com arco e flecha, possuía pouca artilharia e ainda menos meios motorizados. A força aérea etíope era pouco mais que inexistente, contava com quatro pilotos para pouco mais que uma dezena de aviões.

Em vésperas da ofensiva italiana, que se iniciaria em Outubro desse ano, Alfred Eisenstaedt fotografou os contingentes etíopes em manobras, preparando-se para algo que adivinhavam ser inevitável. Numa das imagens, regista um dos soldados africanos deitado sobre o solo. 
Capta apenas a sua metade inferior num ângulo invulgar que põe em evidência os pés descalços, gretados e calejados do homem. 

Alfred Eisenstaedt, pés calejados de soldado etíope, 1935
imagem obtida aqui


À época, esta fotografia era a evidência da grotesca desproporção dos meios que se iam avolumando na expectativa do conflito. Na Eritreia, Mussolini aglomerava milhares de homens equipados com camiões, tanques de guerra, artilharia moderna e apoiava-os com uma aviação bem equipada. Do outro lado, centenas de milhares de homens descalços aguardavam-nos com armas tradicionais.

Hoje, a imagem tem outras leituras. Sabemos que a invasão italiana não foi um passeio. O nacionalismo etíope alimentou uma força inesperada nas forças africanas, que conseguiram organizar contra-ataques violentos, com pesadas baixas nos contingentes italianos. O poderoso exército de Mussolini tomaria as principais cidades apenas a muito custo, recorrendo por vezes a armas químicas, e enfrentaria durante os poucos anos de anexação uma resistência fortíssima. A aventura etíope custaria demasiado em homens, e em liras, e dela não sairia grande proveito. A Etiópia não era apenas agreste para os pés dos seus habitantes. Foi dolorosamente abrasiva para os sonhos imperiais do Duce.
Mas, ao contrário do soldado da imagem de Eisenstaedt, o líder fascista nunca conseguiu ganhar calos que o protegessem.


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