domingo, 28 de fevereiro de 2010

Inversão de papéis

Insisto no William Mumler.
Apesar da primeira fotografia impressa num jornal datar de 1873, a verdade é que as fotografias só se vulgarizaram, na imprensa, durante a década de noventa do século dezanove, quando foram resolvidas algumas questões técnicas que tornaram o processo do meio-tom viável e fiável. Até então, as fotografias eram intermediadas pelo trabalho de um gravador que criava uma matriz de gravação. Este artista fazia uma interpretação técnica e estética da fotografia inicial, da qual, por vezes, retirava elementos da considerava desagradáveis, pouco relevantes, ou díficeis de representar através duma gravura. Outras vezes, acrescentava dados dificeis de perceber no trabalho do fotógrafo como, por exemplo, os repuxos de água de uma fonte que desapareciam nas exposições longas dos equipamentos da época. Era a imagem resultante deste trabalho de conversão que aparecia nas páginas dos jornais.
Chegavam assim correntemente às mãos dos leitores novecentistas gravuras baseadas em fotografias.
Porém, não era corrente que a própria fotografia base fosse a notícia. É por isso que observo, com particular deleite, a primeira página do Harper's Weekly, de 8 de Maio de 1869, relativa ao julgamento de Mumler. 
























1ª página do Harper's Weekly, de 8 de Maio de 1869

As representações artísticas eram tidas como "local" onde se podia aceitar a fantasia, e a fotografia, resultando de um procedimento físico-químico, científico enfim, parecia ser o "local" de representações verdadeiras e objectivas da realidade. Nesta situação vemos que há uma inversão dos papeis atribuídos. O artista gravador tentou reproduzir com veracidade as fotografias que estavam na origem do julgamento. Fotografias essas que eram imagens forjadas e fantasiosas.


 
 Pormenor da página

Para terminar, uma última informação a título de punchline. William Mumler, como já foi dito, estava uns pontos acima de ser um simples e pequeno aldrabão. Num texto sobre gravuras em jornais que reproduzem fotografias, tenho naturalmente de fazer referência ao facto de Mumler, em 1876, ter patenteado um dos muitos processos que tentaram resolver os problemas técnicos inerentes à impressão mecânica de fotografias.

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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Vemos o que queremos ver

A visão é uma experiência dinâmica e está longe de ser uma mera recepção de estímulos. A memória é igualmente dinâmica e a sua relação com a visão é um campo de estudos muito abordado. O clássico teste de Rorschach é apenas um exemplo dos métodos que estudam esta relação fluida entre visão, memória e interpretação.


Um dos borrões utilizados no teste de Rorschach

Eu, que gosto tanto de provérbios e de senso comum enlatado em frases curtas e rimas, lembro-me, a  propósito da Visão, de dois dizeres populares. Um, refere o facto da posse de visão numa monarquia de cegos permitir o acesso ao lugar de rei. O outro declara que o pior tipo de deficiência visual é o desejo de não ver. A história de William Mumler e da sua fotografia de espíritos (ver O Fantasma de Lincoln, de 21 de Fevereiro de 2010) parece funcionar como uma boa ilustração dos referidos ditados. Com uma pequena nuance, direi. A de não se verificar o desejo de não ver, mas sim o seu oposto: a vontade de ver.


Quanto ao primeiro provérbio, a conexão é óbvia. Mumler detinha poder, que atingiu com a posse dum saber muito restrito - o domínio da técnica fotográfica. Abusou deste poder, aproveitando-se da ignorância e da ingenuidade alheias para obter vantagem material, a dez dólares por sessão no auge da sua fama. Lendo-se as cartas enviadas na altura do seu julgamento à imprensa, e os relatos deste, consegue-se depreender que Mumler estava longe de ser um pequeno e manhoso aldrabão. Revelava uma maestria significativa na manipulação de materiais fotográficos. Os contornos da sua técnica de falsificação nunca foram determinados de forma exacta e flagrante pelos seus contemporâneos e, há que dizê-lo, não faltaram oportunidades. Pelo menos por duas vezes, uma relatada em tribunal, e outra descrita numa missiva dirigida a um jornal, William Mumler realizou as suas fotos perante a vigilância apertada de fotógrafos. Numa delas, fê-las num estúdio alheio, com os materiais lá existentes. Mesmo entre os seus pares, via mais além. Na sua autobiografia, chega a invocar determinados fenómenos físicos, como a irisdiscência, demonstrando que navegara entre literatura científica para tentar obter credibilidade. Outro pormenor interessante é que quanto ao acto em si, a captura de imagens de espíritos, Mumler, como um bom mafioso relativamente aos seus crimes, falava pouco. Ao contrário da esposa, não invocou o estatuto de vidente. Descrevia-se a si tão-somente como um meio através do qual os desaparecidos se revelavam.


Relativamente ao segundo adágio, e à sua distorção no sentido que referi, basta-nos olhar para as fotografias. Mumler não foi provavelmente o primeiro a declarar fotografar fantasmas. E não foi definitivamente o último. Basta fazer uma pequena pesquisa na internet para verificar a quantidade de gente que ainda por ai anda nesta actividade. Tampouco foi o único a tribunal, acusado desta burla.
Algumas coisas fazem porém destacar o seu caso. Uma, como já disse, é sua competência técnica e auto-confiança, que lhe permitem submeter-se voluntariamente à fiscalização de outros fotógrafos e escapar. Outra, é a forma como se destaca das tentativas coevas de registar a imagem de espíritos. As imagens de Mumler não parecem sair de um catálogo de lençóis e cortinas, são figuras humanas. As suas fotografias não são teatrais. Não há nelas, salvo raras excepções, gestos dramáticos e poses exageradas. Pelo contrário tendem a ser formalmente muito simples, num fundo neutro. Tendem a ter um carácter intimista. A singularidade de Mumler prende-se com o facto de se ter apercebido de uma possibilidade técnica e de ter tido a intuição de procurar as soluções visuais certas, afastando-se de um imaginário herdado da pintura clássica e romântica, e do teatro.
























Frederick A. Hudson, Fotografia de mulher com um espírito
























Henri Robin,Um espírito,1863

Um último aspecto, que será eventualmente o fulcral, prende-se com o carácter ambíguo e indefinido das formas com “retrata” os espíritos. Sobretudo nas suas fotografias tardias, depois de ter apurado a prática e ter definido o grau de risco a correr, a maioria das imagens da sua clientela anónima não tem características nítidas. Mumler deixa o campo aberto para o cliente construir a sua percepção e reconstruir a sua memória procurando, no mínimo aspecto da figura, semelhanças com o ente desaparecido. Um contemporâneo, referindo a uma cliente de William Mumler, escreve que, para uma mulher destroçada pela morte da filha, a visão vaga de uma criança com um vestido é suficiente para reconhecer a filha perdida na imagem.


William Mumler, fotografia do Capitão Montgomery com um espírito feminino,1870s

William Mumler, Fotografia de  Moses A. Dow com o fantasma da sua protegida Mabel Warren,1870's

Nas fotografias de Mumler, nos borrões do teste de Rorschach e em muitas outras coisas, vemos aquilo que queremos ver, ou melhor, o que estamos preparados para ver.

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domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Fantasma de Lincoln

A 4 de Março de 1861, Abraham Lincoln tomou posse como 16º presidente dos Estados unidos da América. Foi o primeiro presidente do recente Partido Republicano que, espante-se, não tinha então uma agenda propriamente conservadora e tinha a sua base de apoio nos estados do Norte.
Foi o início de um período simultaneamente decisivo, fundamental e trágico. Os anos seguintes seriam profundamente marcados, muito para além do que já era comum nesse século, pela morte, pela violência e pela doença.
À Guerra Civil, que durou de 1861 a 1865, somar-se-iam o degradar das condições de vida, as epidemias e os actos de vingança e de resistência, que com ela se instalaram e que se prolongariam muito para além do período efectivo das confrontações organizadas entre o Norte e o Sul.
A este ambiente generalizado de luto, sofrimento e desgosto não escaparia a família de Lincoln. O presidente seria assassinado por John Wilkes Booth, a 14 de Abril de 1865, enquanto assistia à peça de teatro Our American Cousin. E dos seus quatro filhos, apenas um chegaria à idade adulta.
A dor e a falta de esperança são um mercado fácil para o escapismo, o embuste e a encenação.
É nesta América de gente que sobrevive com dificuldade aos que ama, que um gravador de ourivesaria de Boston, usando químicos e instalações de um amigo, descobre algo que ainda hoje tende a divertir aqueles que aprendem as bases da fotografia - a possibilidade de realizar imagens semitransparentes e fantasmagóricas. Em 1861, William Mumler, terá verificado ao revelar uma chapa com o seu auto-retrato que nela aparecia a figura desvanecida de uma menina. Uma vez imprimida a fotografia, tê-la-á mostrado a amigos que terão visto na imagem semelhanças com uma falecida prima de Mumler.
A história poderia ter ficado por aqui, e dela não teríamos hoje conhecimento. Ter-se-ia perdido no limbo dos acontecimentos banais e insignificantes. Mas doses razoáveis de oportunidade, vontade e contingência intervieram e tal assim não foi.

William Mumler, Auto-retrato com o espírito de uma prima falecida anos antes, 1861

A fotografia era então uma realidade recente e pouco acessível. George Eastman estava a décadas de distância, e os fotógrafos de então eram também químicos amadores que fabricam os seus materiais de trabalho. Para a generalidade da população a fotografia tinha algo de ciência oculta e de alquimia.
A guerra que grassava a sul trazia a morte com demasiada frequência para o quotidiano, e começavam a prosperar as seitas espíritas que reivindicavam a capacidade de restabelecer o contacto com as almas dos familiares perdidos.
Na sua autobiografia, Mumler alega ter mostrado por brincadeira a fotografia a um conhecido, que se movia nos meios espíritas e que este terá aceite com grande entusiasmo a natureza sobrenatural da imagem. Em pouco tempo foi montado um próspero negócio de retrato de espíritos e a fama de William Mumler espalhou-se rapidamente pela cidade de Boston.
Ao entrar, os clientes eram recebidos primeiro pela esposa do fotógrafo, Hannah Mumler, entretanto convertida em médium. Numa conversa preliminar eram questionados acerca da natureza dos espíritos que pretendiam contactar. Muitas vezes os fantasmas revelavam ser algo evasivos, e o cliente tinha de voltar várias vezes ao estabelecimento de Mumler até que estes fossem efectivamente fotografados junto ao requerente.
O sucesso comercial de William Mumler e a natureza do seu mister não tardaram a atrair a animosidade dos demais fotógrafos da cidade. Rapidamente alguns concidadãos reparam na estranha parecença de algumas das vagas imagens de espíritos com personalidades da cidade, bem vivas por sinal.
A sua prosperidade económica ficou em risco, e em 1868, Mumler transferiu-se para Nova Iorque. Aí reproduz o negócio e inicialmente o sucesso. Porém a contestação e a dúvida perseguem-no, e após algumas queixas o Mayor da cidade ordena uma investigação.
Um agente da lei, Joseph Tooker, desloca-se ao estúdio e, apresentando-se com uma falsa identidade, encomenda um retrato com a presença de um espírito. Após a concretização do pedido, Tooker e os seus homens procedem à detenção de Mumler, alegando que espírito retratado não correspondia à descrição dada. A acusação formal dirá que tirara proveito de pessoas crédulas com aquilo que apresentava como fotografias de espíritos.
A 21 de Abril de 1869, inicia-se, sob a presidência do juiz Joseph Dowling, o julgamento de William Mumler, que se revelará particularmente mediático e polémico.
Seguido com muita atenção por toda a imprensa nova-iorquina e pelo público, o caso fará com que inúmeras cartas sejam publicadas com testemunhos e opiniões, alimentando a controvérsia.
Sentindo que o Espiritismo estava igualmente em julgamento, pese embora algumas renitências internas em relação ao trabalho do réu, destacadas figuras deste movimento vieram em defesa de Mumler, como Joseph Dowling, um antigo juiz do Supremo tribunal de Nova Iorque.
Do lado da acusação, o empresário Phineas Taylor Barnum, promotor de freak shows e um reconhecido sensacionalista, faz-se convocar e tenta de forma determinada apresentar William Mumler como burlão. Alega ter trocado correspondência com este, na sequência da compra de várias fotografias para exposição no seu Barnum's American Museum, um espaço em que combinava em partes iguais atracções didácticas e bizarrias. Nesta troca epistolar, afirma, o fotógrafo teria assumido que estas resultavam de um processo de falsificação. A linha de argumentação de Barnum foi totalmente descredibilizada pela defesa, invocando o estatuto duvidoso do empresário e o facto de este não apresentar as cartas, alegadamente perdidas no incêndio que destruiu o museu.
Na ânsia de provar a imoralidade de Mumler, P. T. Barnum recorreu ao famoso fotógrafo Abraham Bogardus para que este elaborasse uma fotografia que fosse a demonstração técnica da possibilidade de forjar imagens de espíritos. Bogardus retratou então o empresário numa imagem, que visando ridicularizar as fotografias de Mumler, fazia aparecer o fantasma facilmente reconhecível do falecido presidente Abraham Lincoln.
























Abraham Bogardus, retrato de P. T. Barnum com o "fantasma" de Lincoln, 1869

Pese embora a convicção afirmada pelo juiz Joseph Dowling de que as fotografias de espíritos não seriam documentos reais, não foi possível provar, acima de qualquer dúvida, a culpabilidade de Mumler. Tendo saído do julgamento sem ser condenado, William Mumler retornará a Boston e verá a sua carreira de caçador de imagens fantasmagóricas esmorecer lentamente, mercê da exposição do caso e do crescente cepticismo do público relativamente ao próprio meio. A fotografia já não era tão ingenuamente aceite como veículo da Verdade.
Mas antes de Mumler morrer falido e em total descrédito, o seu nome volta a cruzar-se com o de Abraham Lincoln. Na autobiografia, em sua defesa e tentando provar a natureza verdadeira da sua capacidade de capturar a figura das almas, Mumler alega que a mulher que entrou no seu estúdio em 1871, cobrindo a cara com um véu negro de luto, se apresentou com um falso nome. Seria, para ele, uma total estranha. Não poderia, por isso, saber que se tratava de Mary Todd Lincoln, a sobreviva esposa do presidente. Tal só se tornaria claro quando, ao revelar o negativo, reparou que o líder assassinado seis anos antes aparecia junto da figura sentada, que apenas desvelara o rosto no momento da fotografia. 
A versão de Mumler é naturalmente a sua, aquela com que quis ser recordado, e não é obviamente possível contraditá-la de forma absoluta. Mas o facto de Mary Todd Lincoln ser reconhecidamente uma frequentadora dos meios espíritas, onde buscara consolo após a morte violenta do marido e o falecimento prematuro do filho mais novo, Thomas Lincoln, nesse ano de 1871, tornam difícil aceitar esta descrição dos factos, sabendo-se a ligação do fotógrafo ao movimento.
Não sabemos se foi por pura falta de vergonha, por vontade de provar a verdade da sua prática, ou por simples necessidade económica que Mumler aceitou fotografar o fantasma de Lincoln, com que havia sido escarnecido dois anos antes. Mas ao fazê-lo, William Mumler criou a sua foto mais conhecida e reproduzida, e entrou merecidamente na galeria dos episódios mais caricatos da História da Fotografia.

 






















William Mumler, retrato de Mary Todd Lincoln com o espírito de Abraham Lincoln, 1871
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Uma infância assim estraga-nos

Ler Júlio Verne na infância estraga-nos.
Uma infância com televisão de canal único, com séries sobre Pasteur, Curie e Darwin não nos faz definitivamente bem.
Ter na escola professores que nos falavam embasbacados de um homem chamado Rómulo de Carvalho, que nunca veríamos, só pode ser prejudicial.
Em adultos, já pais de filhos, damos por nós a olhar para frascos num laboratório de química e a achar que não são apenas frascos. São traços de História e de Civilização num armário de mogno.

Júlio Assis Ribeiro, Frascos de produtos químicos,
Arrecadação dos laboratórios da Escola Secundária de Vila Real de Santo António,2005

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Museus

Gosto de Museus.
A despeito da minha formação, devo dizer que gosto particularmente dos museus mais antigos. Daqueles que não foram sujeitos a grandes renovações da lógica expositiva e que não se encontram abastecidos de inúmeros gráficos, textos e tabelas que contextualizam tudo.
Aprecio vitrinas com objectos vagamente etiquetados. Encantam-me salas que misturam calhaus paleolíticos e alfaias agrícolas.
Gosto desses museus que nasceram da necessidade de mostrar coisas acumuladas a quem sabe o que são.Quando não nos explicam tudo, os objectos falam por si. E mesmo que o façam numa língua estrangeira e incompreensível, isso é-me bastante mais estimulante.

Júlio Assis Ribeiro
Objectos chineses, British Museum, Londres,2001

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domingo, 7 de fevereiro de 2010

Os desenhos de Henry Fox Talbot

A fazer fé nas palavras do próprio, podemos situar de forma muito precisa o momento em que se imaginou a Fotografia e uma forma de a concretizar.

Estar-se-ia nos primeiros dias do mês de Outubro de 1833. Num comportamento próprio da classe abastada e culta da época, Henry Fox Talbot abandonara a ilha natal e fazia o circuito do Grand Tour, em busca de beleza, cultura e arte. Encontrava-se nas margens do lago Como, em Itália, mais concretamente, junto da balaustrada da Villa Melzi. Debatendo-se com a sua manifesta falta de talento, tentava desenhar a paisagem. Mas nem com a ajuda de um ligeiro engenho óptico, patenteado por Wollaston, a Camera Lucida, conseguia transpor a riqueza visual e tridimensional que o envolvia para a folha de papel. Esta apenas funcionava como prova de uma inépcia que o desapontava.
Contrariamente a Daguerre, outro dos vértices da trindade anglo-francesa a quem é atribuída a paternidade da Fotografia, Talbot era senhor de uma personalidade reservada. Mas essa natureza não significava falta de ambição intelectual. Tirara proveito de uma educação esmerada e evidenciou-se pela sua cultura polifacetada, destacando-se quer como matemático, químico e físico, quer como estudioso de línguas orientais, e em particular da escrita cuneiforme.
Terá sido então que, confrontado com o pouco sucesso pessoal no campo do desenho, nas margens do lago Como, em Outubro de 1833, Henry Fox Talbot terá pensado o quanto encantador seria se as imagens, que via através do prisma da camera lucida, se fixassem de forma duradoura no papel. Porque é que tal não haveria de ser possível?
No espaço de dois anos, desenvolveria um processo de fixação de imagens, e em 1839, sabendo da exposição pública do trabalho de Daguerre, exporia as suas imagens na Royal Institution of Great Britain, a 25 de Janeiro. Poucos dias depois, num ensaio apresentado perante a Royal Society, divulgaria os detalhes técnicos daquilo a que chamou desenho fotogénico (photogenic drawing).

Pode-se olhar para esta história da História de um ângulo moral, como se fosse uma fábula. Talbot quando confrontado com uma limitação, transformou a adversidade, através do seu trabalho e intelecto, num feito de incontestável valor.
Prefiro vê-la porém de uma outra forma. Perante alguma glorificação actual da ignorância, considero fantástico verificar como um homem, obviamente brilhante nos campos das letras e das ciências, valorizava de forma tão acentuada as artes, ao ponto de considerar um fracasso pessoal não estar aí ao mesmo nível com que manobrava números, químicos e escritos antigos.


Desenho de Henry Fox Talbot, realizado na Villa Nelzi
Pormenor do desenho

O autor dos desenhos

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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Criaturas de hábitos

Continuo com as gaivotas.
Penso se encontram classificadas como aves marinhas, mas creio que não se trata de uma questão de vocação ou natureza, mas sim de circunstância. Por um azar de evolução viram-se ligadas ao mar, mas não há nelas grande convicção acerca do seu estatuto.
Mesmo em dias de bom tempo, preferem a terra e se têm de ir à água, vão antes à ria.

Há alguns anos, nos tempos em que existia muro em Berlim, lembro-me de reparar numa enorme mancha aérea de gaivotas, centenas delas, a voarem aos círculos sobre Vale Caranguejo.
Ao tempo, ali ainda era campo, e a melhor explicação que me deram para o fenómeno era a de que haveria ali uma lixeira da Câmara. A bicharada deslocava-se para lá no Inverno, disseram-me, em busca de comida mais fácil. A explicação satisfazia plenamente quem ma deu, e fazia-o porque era auto-satisfatória. O assunto era de pouco interesse, a pessoa em causa tinha profundos conhecimentos banais sobre ele, na linha de " tempestade no mar, gaivotas em terra"; sabedoria alicerçada em imagens televisivas de gaivotas em festim no meio de montanhas de trampa. A última coisa que que haveria a fazer era confrontar uma teoria tão perfeita com a sua real verificação.

Confesso que também não era para mim, felizmente, uma questão existencial. Mas fui verificando, sobretudo acidentalmente, que aquela descrição simples e até credível, falhava em pequenos pormenores. As gaivotas que se deslocariam para ali fugindo do mau tempo, na realidade estavam ali quase todas as manhãs e fins de tarde. A tal lixeira que me referiram não existia, pelo menos naquele local. As únicas instalações camarárias próximas eram o estaleiro de materiais de construção, que não eram propriamente um petisco, e a estação de tratamento de esgotos. Esta última, mesmo para as gaivotas, também não seria um pronto-a-comer.
Vale Caranguejo era a primeira linha de terrenos agrícolas junto a uma extensão de salinas e sapal que os separava do mar e das ilhas barreira. Perante constatações destas, levantou-se outra explicação que seria a de que, à semelhança das garças, as gaivotas seguiam os tractores, banqueteando-se com os vermes expostos pela terra arada. E vi-as por vezes, de facto, pousadas na terra barrenta da zona. Parecia uma ordem aceitável das coisas.

A área foi entretanto engolida pela cidade. Foram construidas urbanizações, foi renovada a estrada, e implantada uma nova e maior rotunda. Há lá um jardim e construiram o enorme centro comercial que inunda de trânsito a zona, ao fim-de-semana.

Há dias reparei que as gaivotas ainda lá estão, em bandos matinais e em versão vespertina, guinchando, voando em círculos, juntando-se e afastando-se.

Hoje prefiro acreditar que são simplesmente criaturas de hábitos. Aves marinhas por contrariedade, escolheram como espaço para devaneios a primeira franja de terra independente do mar. Marcaram a sua posição e por lá se têm mantido, substituindo os poisos anteriores pelos postes de iluminação e pela cobertura do centro comercial. Talvez não haja explicações melhores. Não se alimentam, não nidificam, não acasalam, não fogem de tempestades. Estão ali porque estão! Acostumaram-se.


Gaivotas comerciais

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