quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Peregrinação de Solomon Nunes Carvalho

Quem, como eu, cresceu e se escolarizou nos anos oitenta foi bombardeado com um discurso vago, mas constante, sobre a expansão portuguesa. Já não era o discurso gongórico e instrumental do Estado Novo, era uma narrativa com poucos factos, difusa, mas que nem por isso deixou de ser omnipresente. Quase todas as terras deste canto europeu tiveram nessa altura um monumento às descobertas, uma avenida das descobertas, uma ponte das descobertas. Depois do PREC, da descolonização atabalhoada, de um período em que a presença portuguesa em territórios além desta pequena parcela da Península Ibérica, e dos apêndices insulares, foi um anátema ideológico, reconstruiu-se uma identidade histórica. Algo envergonhada é certo, que omitia a palavra império, mas que recorria a torto e a direito, sem medo de redundância, a expressões como vocação e desígnio nacional. O interessante é que esta versão leve dum velho discurso, começado a desenvolver pelo republicanismo, apesar de desestruturada, e de limitada nas referências, se revelou eficaz. Ao contrário da verborreia Imperial da ditadura, penetrou sem picar, não fez mossa aparente e não criou anticorpos. Subliminarmente, a minha geração sente que houve uma altura em que neste país se fizeram coisas com propósito, organização e glória. Houve uma altura em que o país funcionou. Depois, estragou-se.

Esta percepção entranhou-se através da constante referência à mítica Escola de Sagres, aos resumos dos Lusíadas com que os alunos se furtavam à leitura do original, às ligeiríssimas referências a Tordesilhas e a Afonso de Albuquerque nalguns manuais, e à repetição constante em noticiários, programas televisivos e discursos políticos, de lugares comuns acerca da singularidade e grandeza do Portugal de quinhentos.
A complexidade de motivos e as causas estruturais que levaram à expansão portuguesa, parecem-me hoje terem estado arredadas desses anos, curiosamente quando o Estruturalismo era tardiamente uma moda. E da literatura portuguesa do período pouco nos falaram, para além dos não lidos, e panegíricos, Lusíadas. Da fabulosa Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, desse retrato de um Portugal expansionista ora corsário, ora mercador, ora missionário, ora guerreiro, ou tudo junto ao mesmo tempo, pouco ou nada além do Fernão Mentes Minto me lembro de ter ouvido. O mesmo se passou quanto à História Trágico-Maritíma , e à sua descrição de uma expansão feita com naus mal construídas, sem equipamento, com excesso de gente e tripulação inexperiente e ignorante.
A descoberta do imenso mar de quatrocentos e quinhentos, e a expansão militar e comercial de então, parecem-me ter sido feitas com a típica, e actual, mistura de peso estatal e informalidade, de projecto e improvisação, de génio pessoal e tolerância colectiva com a incompetência e a ganância, de amoralidade e compaixão,de razões de Estado e propósitos pessoais. Não herdámos um Portugal estragado, o pais sempre foi uma fabulosa construção clandestina.
Aquilo que as narrativas oficiais tentam encobrir e mascarar por, em termos de discurso identitário nacional, ser tido como defeito, é possivelmente a verdadeira face do nosso ser nacional, caso exista tal coisa. Estes traços não são um exclusivo pátrio, mas serão em nós estatisticamente mais relevantes.
Outros povos têm a sua quota-parte de ignorantes ambiciosos, de derrotados gloriosos, de coisas que poderiam ter sido grande coisa, mas que não passaram de uma coisa qualquer. Mas creio que não constroem a sua mitologia em torno ou em fuga de tal.

À semelhança dos portugueses antigos, os norte-americanos , a seguir à independência e à estabilização do edifício institucional, também levaram a cabo a uma expansão, adquirindo território quer por via de compra, quer por via da guerra. E em meados do século dezanove viram-se perante o facto de existir um verdadeiro mar de terra inexplorada, largamente desconhecida, entre os estados do leste e os territórios da costa Oeste. Inversamente à dita expansão portuguesa, conheciam os caminhos marítimos mas faltava-lhes saber o que existia entre os portos, para os ligar. Realizar expedições com propósitos mistos- comerciais, militares e científicos- foi algo que o estado nascente se viu na necessidade de fazer, quer por iniciativa e financiamento directos do Congresso , quer com a sua tolerância relativamente a diligências de carácter mais privado ou pessoal.
Os períodos de expansão, e os de guerra, parecem ser propícias a figuras ambiciosas e de ego desmesurado. Nos Estados-Unidos de meados de novecentos, organizar, liderar e participar em expedições era uma forma de auto-promoção política eficaz. A realização e a publicitação destes feitos revelavam-se um veículo de singularidade e de distinção nacional.
John Charles Frémont foi uma das figuras que seguiu esta via. Personagem controverso, ambicioso, impetuoso e contraditório, nasceu de uma relação extraconjugal entre uma jovem pertencente às famílias terratenentes da Virginia e um professor francês, contratado para ela pelo sexagenário marido. A fuga de Anne Beverley Whiting com Charles Fremon para Savannah, escandalizou a cidade de Richmond , e o nascimento de John Frémont dá-se num contexto de ilegitimidade e desaprovação social, a que alguns atribuem a origem da ambição e ânsia de protagonismo posteriores. Após concluir os estudos, o jovem Frémont inicia actividade militar, primeiro no navio USS Natchez, como instrutor de matemática, e mais tarde no Corps of Topographical Engineers. De 1842 a 1846, chefiará três expedições em território não cartografado do interior norte-americano.


Mathew Brady, Jonh C. Fremont, cerca de 1860
imagem obtida aqui

Em 1846, enquanto tenente-coronel participará na guerra com o México. Em resultado desta partipação será, por um curto período e erroneamente, nomeado governador da California. Nomeado pelo comodoro Stockton, veio a verificar-se que este não possuía tal competência. Esta pertencia ao presidente , que teria atribuído para o cargo o brigadeiro Stephen Watts Kearny. Perante a recusa de renunciar ao cargo, John Charles Frémont foi preso e levado a tribunal marcial, onde foi condenado por motim e desobediência, tendo sido afastado do exército.
Como forma de recuperar a sua imagem pública, com o apoio do sogro, o influente senador Benton, em 1848, Frémont irá iniciar uma quarta expedição com o intuito de definir uma rota para o caminho-de-ferro ao longo do 38º paralelo. Esta acabará tragicamente com a morte de cerca de um terço dos seus membros , resultado de más opções perante a dureza do inverno.
Em 1853, empreenderá um quinta e última expedição igualmente destinada a estabelecer um percurso para o caminho-de-ferro. Será nesta que participará Solomon Nunes Carvalho como fotógrafo. John Charles Frémont, terá contactado Solomon com o intuito de documentar o percurso e, desta forma, garantir credibilidade às descrições dos relatório que pretendia realizar posteriormente. Era prática corrente as expedições fazerem-se documentar com o trabalho de artistas que desenhavam as paisagens percorridas e os povos encontrados, mas esta documentação era por vezes alvo de desconfiança, atribuindo-se muito do desenhado à fantasia dos artistas. Frémont tentara ele próprio realizar daguerreótipos, mas fora incapaz de obter resultados aceitáveis. O recurso a Solomon acabou por ser uma opção mais fiável. Já o que levou Solomon, um estabelecido fotógrafo e artista, homem casado e pai, a aceitar tal proposta, arriscada e sem grande proveito aparente, não é claro nem para o próprio, que atribui a aceitação a um ímpeto não particularmente reflectido.
Solomon Nunes Carvalho, para além de fotógrafo da expedição, acabará por ser o verdadeiro cronista da mesma, dado que o projectado relatório de Frémont nunca chegará a ser concluído. Ao longo da expedição, no Outono de 1853 e inverno de 1854, tomará notas e registos até ser finalmente deixado no povoado Mórmon de Parowan, no Utah, bastante debilitado e em risco de vida. Destas anotações e das que tomará até finalmente atingir a Califórnia, já por sua conta, nascerá o livro” Incidents of Travel and Adventure in the Far West”, com o subtítulo” With Col. Fremont's Last Expedition”, concluído em 1856 e publicado no ano seguinte.
Esta obra é uma narração, na primeira pessoa, das ocorrências, dos lugares e dos pensamentos vividos. Oscila entre a enumeração e o picaresco, e é um fabuloso manancial de informação para que investiga a História norte-americana. O simples facto de percorrer o território de um país em construção permitiu a Carvalho, um burguês citadino e judeu praticante, ser testemunha de momentos iniciais e derradeiros, transitar em alguns dias apenas de provações quase fatais para o convívio e o apreço das elites, conhecer povos e culturas que definhavam e se extinguiam, e outros que se edificavam ou se redefiniam.
De John Charles Frémont, Solomon transmitirá uma descrição permanentemente elogiosa, não hesitando em apontá-lo como um dos homens mais merecedores de ascender à presidência dos Estados-Unidos (crê-se que a publicação se deu num quadro de apoio à candidatura do explorador, e a obra é mesmo dedicada à sua esposa, Jessie Benton Fremont). Mas este tom  é contradito pela própria natureza dos factos descritos. Frémont, revela-se neles um homem distante, inquestionável, que se vê superior, mas que em boa medida é incapaz de disciplinar os membros da expedição, de planear eficazmente, e de conduzir com segurança os que o acompanham. É impetuoso, arrisca desnecessariamente e decide sem consultar. Lembra, de certa forma, a figura de António de faria, da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto- venerado e respeitado além do seu real valor, arrisca quem o acompanha.
O livro inicia-se com o convite a Solomon, a aceitação deste e a partida à pressa, com equipamento impróprio e improvisado pelo próprio fotografo. Descreve Carvalho a resistência dos muleteiros ao seu trabalho que, para eles, atrasava a expedição. Descreve sabotagens e roubos. Não esconde a profunda admiração pelos guias índios Lenape, ou Delaware. Observa a espantosa resistência das mulas mexicanas, perante a fragilidade revelada pelos cavalos que acabará por o fazer percorrer boa parte do percurso a pé, ao ponto do seu calçado se desfazer. Regista a profunda diversidade e complexidade das Nações índias, do orgulho e poder dos Cheyenes, em plena guerra com os Pawnees, à miséria extrema dos Piede, que sobreviviam semi-nus tentando trocar cobras e lagartos por vestuário e outros artigos. Testemunha a conferência entre o governador do Utah,Bringham Young, e o chefe Wakara, dos índios Ute, com vista a acabar com uma confusa guerra entre mórmones, mericats ( aventureiros americanos não mormons, que percorriam o Utah) e os Ute.
Vive e descreve realidades extremas e novas. Observa as imensas manadas de bisontes e fotografa-as. Percorre montanhas cobertas de neve, sob temperaturas negativas. Sobrevive dois meses comendo a carne das mulas e dos cavalos sacrificados, e de porcos-espinho abatidos pelos guias. Quase morre de disenteria e de exposição ao frio. É deixado para trás a convalescer, sem o equipamento fotográfico, levado por Frémont, no meio de colonos mórmones. Observa e discorda do sistema de esposas espirituais, nesse tempo em que a poligamia era doutrinária na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Com equipamento cedido pinta retratos de governadores, e de outras figuras influentes, dos estados do Oeste. Atravessa desertos e lagos secos. Encontra figuras rupestres e ossos fossilizados de animais pré-históricos. Cruza-se com pesquisadores de ouro. Permanece em Oásis, encontra fontes envenenadas com animais mortos e aflorações de água densa que não permitem a imersão. Conhece as nascentes cidades de Los Angeles e San Francisco, onde assiste à omnipresença do Jogo como força destrutiva, e a uma criminalidade assustadoramente alta, ceifando maioritariamente índios e mexicanos. Bebe o vinho branco da Califórnia, feito pelas famílias ricas de origem espanhola que transitam da soberania mexicana para América sem perder privilégios e poder.
Nas suas peregrinações ( a palavra é dele, usa-o no livro) encontra e relata um Oeste bem mais complexo e rico do que aquele que nos chegou mastigado pelo cinema norte-americano (a mitificação opera simplificando, e o Oeste dos filmes é geralmente tão mítico quanto o glorioso Portugal das Descobertas). Depois, retorna ao Leste com a ajuda dos irmãos Labatt, da diminuta comunidade judia de Los Angeles, e remete-se nova e permanentemente para a sua condição urbana e recatada, deixando-nos a espantosa aventura de um judeu de origem portuguesa, que antes de saber montar a cavalo, aceitou atravessar um continente para fotografar o que não se conhecia.

Autor desconhecido,Solomon Nunes Carvalho e o seu filho David Nunes ,1872
imagem obtida aqui

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