quinta-feira, 29 de abril de 2010

A verdadeira Alice

É um facto relativamente conhecido que a "Alice no País das maravilhas", de Lewis Carroll, teve uma pequena Alice (verdadeira) na sua origem - Alice Liddell.

Rev.Charles Dodgson, Alice Liddell,1859  
























Charles Dodgson (verdadeiro nome de Lewis Carroll) descreveu as circunstâncias em que inventou as histórias que viriam a dar origem ao livro. Em 4 de Julho de 1862, durante um passeio de barco com as irmãs Liddell e o seu amigo Robinson Duckworth, iniciou a narrativa das aventuras de uma jovem que se chamava Alice,como a mais viva das três meninas. Depois, por insistência da pequena musa, acabaria por fazer um manuscrito, ilustrado por si próprio, para oferta.
Este manuscrito, depois de algumas alterações, seria transcrito e publicado, e seria um enorme sucesso. Com este livro Charles Dodgson passaria de jovem diácono anglicano, de professor de Matemática num colégio universitário de Oxford, e de fotógrafo reconhecido entre a elite artística britânica, a um popular (e rico) escritor de histórias infantis. E embora mais tarde tenha defendido que a Alice do livro não se baseava em nenhuma criança real, o facto é que objectivamente sabemos que assim não foi.
Perante este facto, e conhecendo-se as fotografias que, na mesma altura, Dodgson tirou a Alice Liddell, gente há ( faça-se um pesquisa na Internet, para confirmar) que se sente algo espantada pela pouca semelhança da criança real e a Alice que quase todos têm na imaginação- a do do filme de animação da Disney. Alguns conseguem ver nisto um exemplo claro de uma conspiração universal para favorecer os louros nórdicos, em detrimento de todos aqueles que não têm um cabelo, e pele, tão claros. Para estes, a Alice da Disney é loura pela mesma razão em que se insiste na iconografia de um Jesus louro, oriunda da pintura flamenga, dos séculos XV a XVII.

Walt Disney, Alice, 1951




















  



Ora, a verdadeira razão desta discrepância é certamente muito menos propícia a exaltamentos. Na realidade, a heroína do filme de animação tem como fonte iconográfica provável, não a Alice Liddell, criança de temperamento forte, fotografada por Dodgson , mas a Alice das ilustrações das primeiras edições do livro.
Estas gravuras foram realizadas por John Tenniel, um famoso ilustrador da época vitoriana, a quem Dodgson solicitou a colaboração, visto considerar que as imagens que ele próprio desenhara no manuscrito não estariam a um nível adequado.

John Tenniel, Alice in Wonderland - Drink Me

























Para orientar Tenniel, fez-lhe chegar uma fotografia, não de Alice Liddell, mas de uma outra criança por si retratada, que teria um ar mais doce e empático - Mary Hilton Badcock. Para John Tenniel e, em muito menor escala, para Charles dodgson, também ela seria a verdadeira Alice.

Mary Hilton Badcock,
fotografia retirada do livro
"A Handbook of the Literature of the
Rev. C. L. Dodgson (Lewis Carroll)",
de S. H. Williams, e de F. Madan, 1931




























Por fim, menos conhecida e mais curiosa, é a circunstância de haver uma terceira figura, também do círculo de Charles Dodgson, que reivindicou o estatuto de verdeira Alice. Trata-se de Isa Bowman, actriz de teatro, e companhia relativamente frequente de Charles Dodgson em actividades mundanas. Bowman pertence à categoria de jovens mulheres, na casa dos vinte anos, com quem Charles Dodgson se fazia rodear em festas, e outras saídas. Um comportamento que lhe valeu boatos pouco lisonjeiros, e a censura das irmãs.
A reivindicação de Isa Bowman centra-se no facto de, para além de ter sido uma protegida do autor, ter interpretado pela primeira vez, em teatro, a figura de Alice. Esta sua posição foi estabelecida no livro que publicou em 1899 - "The Story of Lewis Carroll, by the Real Alice in Wonderland."

Julian Ignacy ( Wallery), e Alfred Ellis,
Isa Bowman, s/data
 





Páginas de "The Story of Lewis Carroll, by the Real Alice in Wonderland", de Isa Bowman, da edicão norte-americana de 1900

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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Uma história mal contada

Defende-se, por vezes, que o olhar do observador constrói em larga medida o objecto da observação. A figura de Charles Dodgson (Lewis Carroll) e a sua caracterização parecem constituir um exemplo deste enunciado.

Até aos anos noventa do século passado (continua a parecer-me estranha a referência ao século vinte como século passado...), Dodgson era caracterizado de duas formas muito opostas relativamente ao seu carácter, mas que tinham dados de partida muito similares.
Para ambas correntes, Dodgson foi um homem com dificuldades no relacionamento com adultos, e uma clara preferência pela companhia de crianças do sexo feminino. Se uns tendiam, por isso, a considerá-lo um homem puro, fascinado pela inocência das crianças, outros tendiam, com a mesma base, a vê-lo como uma personalidade perversa, com um óbvio desvio à norma sexual.

Rev.Charles Lutwidge Dodgson,Auto-retrato, 1863
 
Estas apreciações fundavam-se nas descrições surgidas pouco após a morte de Charles Dodgson, sobretudo na biografia escrita pelo sobrinho Stuart Dodgson Collingwood,”The Life and Letters of Lewis Carroll”, onze meses apenas após o óbito. Outras fontes eram as descrições de algumas das crianças, entretanto tornadas adultas, com quem o diácono travara conhecimento.Por fim, em1954, a publicação resumida dos diários do escritor, fotógrafo e matemático acrescentou um pouco mais ao material de estudo dos “Carrollianos”.
O que diferia nestes pontos de vista era pois os instrumentos de análise e, sobretudo, a perspectiva. Uns focalizam-se a relação de Dodgson com as várias meninas da sua predilecção numa leitura literal do material divulgado, e concentravam-se na criatividade literária e no génio do autor. Os outros, socorriam-se da vulgata freudiana na interpretação da obra e do homem, e concentravam-se no desvio à norma. Havia uma concordância em discordar, partilhando uma caracterização do homem.

Em 1999, a publicação de “In the Shadow of the Dreamchild: A New Understanding of Lewis Carroll” de Karoline Leach, funcionou como um terramoto de grande intensidade no mundo dos estudiosos de Clarles Dodgson. Neste livro, apareceu uma visão distinta que defendia que, relativamente ao criador de Alice, o edifício das grandes certezas estava assente sobre fundações, no mínimo, duvidosas.
Para Leach, toda a construção teórica à volta do homem, que então predominava, baseava-se não em fontes primárias e contemporâneas de Dodgson, mas em material escrito e divulgado após a sua morte. Estas referências fundadoras encontram-se, considera ela, inquinadas por uma perspectiva orientada para caracterizar Charles Dodgson de uma forma particular. Uma forma que não era particularmente fiel à real vivência deste.
Os herdeiros de Charles Dodgson procuraram, após a sua morte, criar uma imagem, que em seu ver, era mais simpática e condizente com o que deveria ser um diácono que escrevia histórias infantis. Foi seu objectivo afastar do conhecimento público aspectos que poderiam, no âmbito da mentalidade vitoriana, introduzir algum desagrado ou controvérsia. 
Não lhes era conveniente a caracterização de Dodgson como um assíduo frequentador de peças de teatro - actividade mundana que a hierarquia da igreja anglicana considerava reprovável num sacerdote. Não lhes era particularmente interessante o facto de se ter inserido no seio da elite artística da época, sendo próximo do grupo dos Pré-Rafaelitas. Não lhes era igualmente conveniente apresentar as relações de alguma intimidade com mulheres adultas, parte delas casadas. Tampouco, lhes interessava publicitar o interesse deste em espectáculos circenses e diversões aquáticas, onde os cavalheiros britânicos podiam regalar-se com visões femininas pouco vestidas para os padrões da época.

Rev. Charles Lutwidge Dodgson, O pintor Dante Rossetti e a sua família, Londres, 1878

Stuart Dodgson Collingwood, ao escrever a biografia do tio, aparentemente sob apertado escrutínio das seis tias, limitou-se a tentar criar uma versão laudatória, inócua, do homem. Uma versão cheia de pormenores insignificantes, redutores e, por vezes, fantasiosos. E fez isto, apesar do acesso directo à vastíssima correspondência e aos diários pessoais. Para os britânicos do final do século dezanove, a descrição de um homem tímido, dedicado às crianças, parecia ser a forma mais segura de apresentar um reconhecido, mas solteiro, escritor de histórias infantis.

Rev.Charles Lutwidge Dodgson, Margaret Dodgson (irmã), s/data

Ora, esta apresentação, elaborada por alguém que deveria ser uma autoridade no assunto, adquiriu um estatuto inquestionável. O facto das fontes de Stuart Collingwood  terem permanecido inacessíveis durante muito tempo, cimentou esta percepção de Charles Dodgson na opinião dos estudiosos, e por arrasto, no público em geral.
A já referida publicação dum resumo dos nove diários sobreviventes (inicialmente eram treze) de Charles Dodgson em 1954, veio acentuar este desequilíbrio analítico, dado que permitiu dar aos estudiosos uma ilusão de aproximação aos materiais de Collingwood. Mas tratava-se de uma divulgação cerceada pelas sobrinhas, ainda vivas então, que deligenciaram no sentido de fazer desaparecer das transcrições tudo o que aparentemente se afastasse da biografia de 1898. 
Outro aspecto interessante é o que resulta da leitura dos diversos textos produzidos por adultos, que travaram conhecimento com Dodgson em crianças. Alguns destes textos eram, decerto, auto-promocionais, na medida em que os autores procuravam publicamente associar-se ao famoso e, na altura ainda, insuspeito escritor. As descrições eram amíude condizentes com favorável caracterização realizada por  Stuart Collingwood e, por vezes, as antigas crianças conseguiam lembrar-se de factos que efectivamente não aconteceram, tal era a ânsia de serem coerentes com a imagem resultante daquele registo.
 

Se a família se revelou eficiente na defesa duma determinada descrição de Dodgson, não se revelou clarividente na antecipação dos efeitos dessa defesa. Aquilo que para os vitorianos era impensável , e para os eduardianos pouco admissível, tornou-se muito provável para a sociedade do pós-Guerra.

As primeiras brechas na leitura do carácter de Dodgson advêm do excessivo centramento de alguns biógrafos na questão do seu relacionamento com as crianças-amigas. Em 1932, a biografia "The Life of Lewis Carroll" de Langford Reed, elaborada a partir de pouco mais do que o texto de Stuart Collingwood, mas plena de convicção, lança explicitamente um postulado, que antes apenas fora sugerido- Charles Dodgson/Lewis Carroll apenas se interessava por relacionamentos com meninas, e  o seu interesse terminava assim que estas atingiam a puberdade.























Rev.Charles Lutwidge Dodgson, Alexandra Kitchin (Xie Kitchin),1876

Ainda que Reed fizesse esta afirmação no sentido de reforçar o carácter casto do biografado, definindo-o como alguém intocado pela luxúria, o facto é que, com ele, estava lançada a linha central dos estudos carrollianos. Se alguns continuaram do lado da linha que considerava a obsessão com meninas como um interesse inocente, o facto é que a evolução das mentalidades, e a divulgação pública de múltiplos escândalos, tornaram difícil a crença em homens inocentes e assexuados para uma parcela progressivamente significativa da sociedade ocidental, sobretudo a partir de meados do século vinte.

Karoline Leach, e outros (Hugues Lebailly, Edward Wakeling e Douglas Nickel, nomeadamente), recentraram os estudos carrollianos em materiais primários e coevos do autor, e evitaram ter como ponto de partida a singularidade, per se, do homem. A obra de Dodgson e os seu comportamentos foram reanalisados no contexto societal da época. Desta nova abordagem, verificou-se que nem a caracterização anterior do homem era factual ( Dodgson era uma pessoa algo idiossincrática, nalguns aspectos seria aquilo que se pode descrever prosaicamente como um picuinhas, mas estava muito longe de ser o eremita distraído que a família apresentou ), nem a sua atitude em relação às crianças era de facto singular, antes se inscrevendo num quadro que se pode designar como de culto da criança, próprio da época vitoriana. Para os contemporâneos de Dodgson, a infância era local de inocência, de não corrupção, opondo-se à idade adulta, essa sim plena de degradação moral e ética. Alice não se encontra sózinha no panteão de figuras ficcionais infantis do século dezanove, e início do século vinte, onde figuram também, por exemplo, os múltiplos jovens da obra de Charles Dickens e o Peter Pan de James Barrie.
 

Não se pode, em rigor, afastar categoricamente a mancha de suspeita que associa Charles Dodgson à pedofilia. Esta é particularmente resistente devido à actual consciência do problema. Uma consciência que impõe uma atitude justificadamente preocupada e desconfiada. Mas os dados objectivos existentes sobre esta figura permitem-nos duvidar das certezas categóricas antes tidas, quer relativamente à “santidade” do homem, quer à sua perversão.

Acaba por ser profundamente irónico que a atitude protectora da família, que procurou afastar de Dodgson qualquer tipo de escândalo resultante da sua relação com mulheres adultas, seja, em boa medida, a responsável pela muito mais escandalosa suspeição de pedofilia.

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