domingo, 6 de março de 2016

Património e Progresso

Por vezes, tropeçamos em afirmações que nos remetem para um maravilhoso mundo do Estado Novo, em que o Progresso caminhava de mãos dadas com a defesa da tradição e do património nacional.
Que nesse período se procedeu a uma recuperação nunca vista dos castelos e monumentos nacionais é um dos argumentos que alguns, mais a querer dar para o erudito, tentam invocar.
Na verdade, a campanha de requalificação de castelos e monumentos religiosos foi grandemente desastrada. E foi-o porque, em boa parte, era propagandista e orientada para dar solidez simbólica ao regime. Não foi um processo particularmente científico.
Muitas das reconstruções de castelos e fortalezas foram mais baseadas na imaginação e num determinado ideal romanesco do que no estudo histórico. E quanto aos monumentos religiosos, aí a coisa foi calamitosa.

Muitos desses edifícios foram sendo construídos, ampliados e recriados ao longo de séculos, num processo de "sedimentação", em que se acumulavam espaços, estilos, mestres e técnicas. A campanha do Estado Novo assentou numa visão de depuração, de retorno a uma alegada pureza original. O regime que se estabelecia, e se estruturava, num período que coincidia com o proclamado oitavo centenário da nacionalidade, tinha uma percepção de património que fazia prevalecer um determinado eixo histórico-formal, aquele que vai do Românico inicial ao Manuelino das Descobertas, passando pelo Gótico da conquista plena do território e das vitórias de independência sobre Castela. Tudo o que era posterior, ou lateral, era simplesmente secundário ou mesmo uma contaminação. Era dispensável e eliminável.
Parcelas muitos significativas do Barroco e do Maneirismo portugueses, por exemplo, foram obliteradas sob orientação dos serviços da Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, sendo hoje apenas conhecidas através de relatos e registos anteriores, raramente exaustivos.

Judah Benoliel, filho do incontornável Joshua Benoliel, não foi um fotógrafo memorável à escala do seu progenitor, mas deixou-nos uma vasta obra fotográfica graças às várias décadas da sua carreira. Retratou, nomeadamente, as inúmeras obras que a cidade de Lisboa conheceu no século vinte.

Judah Benoliel,
Demolição do aqueduto na futura avenida Infante Santo,
Lisboa, Portugal, 1949
imagem obtida aqui


É dele esta espantosa imagem dos inícios da construção da avenida Infante Santo, que liga a área da Estrela à zona ribeirinha, em Lisboa.
Esta imagem que choca o nosso olhar, formado por outra perspectiva sobre o Património, regista bem o progresso "desejável" e "necessário" e o Património e a História "dispensáveis" nas décadas de 1940 e 1950, e ajuda-nos a desmistificar ideias feitas.

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