segunda-feira, 22 de agosto de 2011

SPECIMEN - Comedoras de pedra

Sendo alguém com interesse nos bivalves marinhos, mais não seja por motivos gastronómicos, considerava-me um bom conhecedor das espécies da costa portuguesa. Por isso, quando ajudava alunos de um colega no registo fotográfico de exemplares recolhidos numa saída de campo, fui surpreendido por uma espécie invulgar a que não pusera a vista antes.
Sossegou-me o colega. Era natural o meu desconhecimento. Não vira antes esta espécie por dois motivos que não se prendiam com falta de atenção: primeiro, sou de uma zona de ilhas-barreira, território de areias limpas na costa oceânica e de lodo nas águas da ria, e a espécie em causa desenvolve-se nas praias de arribas de rochas carbonatadas do Algarve central e de barlavento, que pouco frequento; segundo, não vira esta espécie porque, por norma, ninguém a vê - vive encerrada no interior das rochas, protegida e contactando com o exterior por um pequeno oríficio. A espécie responde pelo nome de Lithophaga aristata, e o nome inicial significa comedora de pedra. Apesar do nome, o bicho não sofre de nenhum distúrbio alimentar e não se alimenta verdadeiramente de pedra. Na realidade, a sua dieta é igual à da generalidade dos bivalves marinhos e o que se passa de facto é que desenvolveu, para sua defesa, a capacidade de corroer as rochas e criar para si um seguro lar de pedra. O nome aristata advém das estremidades pontiagudas e sobre isso soube de duas versões: uma, de que derivaria de ariete, por se ter imaginado inicialmente que usaria as suas pontas arrematando de encontro às paredes rochosas para perfurar o seu refúgio; outra, a de que aristata derivaria das extremidades se parecerem com as pontas das espigas. A primeira versão parece-me pouco credível, a começar pela questão línguistica ( ariete em grego, segundo o pouco que pude aferir, não é nada semelhante a aristata, e áries, donde deriva ariete é uma palavra latina), passando pela incongruência das designações (ou come a pedra, ou a desfaz, martelando-a), até chegarmos à pouca credibilidade da história dos primeiros classificadores imaginarem o uso referido para as extremidades, quando terão provavelmente encontrado indíviduos muito jovens já encerrados na rochas, e verificado que a forma do oríficio onde residem não se coaduna com uma escavação a partir do exterior. Além do mais, a designação aristata é muito comum na taxonomia da flora e rara na da fauna.
Do bicho, não conhecia o meu colega o nome comum. Encontrei num sítio de internet a informação de que popularmente se lhe chamaria olhos-de-água, mas fiquei de pé atrás porque encontrei à venda, também na internet, exemplares das suas conchas colhidos na praia de Olhos-de-água, em Albufeira. Como o nome da praia vem de nascentes de água doce aí existentes e não, tanto quanto eu saiba, de moluscos que a maior parte das pessoas nunca viu, desconfio.
A espécie encontra-se bastante distribuída no hemisfério norte, com populações na América do Norte, na costa atlântica europeia e norte-africana, e no Mediterrâneo. Verifica-se actualmente um alargamento da sua distribuição para o hemisfério sul, nomeadamente para a costa brasileira. E aí há relatos de um fenómeno não particularmente positivo. Em situações de ausência de uma costa rochosa, constata-se que a Lithophaga aristata se adaptou e inovou. Passou a instalar-se nas conchas de espécies de maior porte, como as vieiras, cuja composição química e natureza não é muito diferente das rochas. E não sendo muito esquisitas, as criaturas não distinguem entre hospedeiras naturais e hospedeiras instaladas em viveiros de exploração comercial.
A comedora de pedra passou de uma curiosidade zoológica a um problema económico.

Júlio Assis Ribeiro, SP_A_LTPGRSTT_01, 2010

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