quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A família Andrade

Aproxima-se do seu termo uma belíssima, muito interessante e invulgar exposição do Museu Municipal de Tavira / Palácio da Galeria - A família Andrade, olhares sobre Tavira. Poderei ser suspeito na apreciação que fiz por, apesar do meu nascimento e primeira infância em latitudes bem mais meridionais, me identificar com a terra onde cresci e vivo, e onde radica a minha família materna. Mas creio serem verdadeiros os méritos desta mostra do Palácio da Galeria.
O título da exposição poderá parecer sugerir  uma dessas exposições locais, pitorescas e olhando para o umbigo de uma povoação. Mas tal impressão é profundamente falsa. Centrada decerto num facto local, a permanência na cidade de uma família de fotógrafos durante várias gerações, a verdade é que acaba por nos dar uma fabulosa visão diacrónica da Fotografia, dos seus aspectos técnicos, estéticos, comerciais e sociais.
Reside aí a invulgaridade de A família Andrade, olhares sobre Tavira. Fugindo dos padrões mais comuns das mostras fotográficas, centrados em aspectos autorais ou temáticos, apresenta-nos a história da Fotografia comercial em Portugal, desde a fixação dos fotógrafos itinerantes ( a forma profissional mais corrente no século dezanove) à transição do negócio para o paradigma digital. Observa-se a evolução dos equipamentos e materiais fotossensíveis, da chapa de vidro (com emulsão de gelatina e sais de prata)  e da pesada câmara de madeira assente em tripé ao quiosque de impressão digital, passando pelas câmaras reflex e de médio formato, pelas películas de 35 mm a preto e branco e a cores, pela iluminação de estúdio e pelo laboratório minilab. Mostra-nos a evolução dos modelos que estruturaram a prática e a acessibilidade da fotografia, do retrato formal e pesado, cheio de adereços e cenários pintados ( à maneira do francês Disdéri), em que a quase totalidade do processo fotográfico era controlada pelo fotógrafo,  à fotografia do it yourself, da era do telemóvel e do facebook, em que o profissional apenas fornece o equipamento para as raras impressões. Apresenta-nos aspectos menos conhecidos, ou quase esquecidos, do retoque e coloração das impressões e da impressão por contacto à fotografia obituária.
E faz isto ( e mais) mostrando-nos a História recente de uma cidade ( e, na verdade, a de um país), desde o tempo em que a fotografia era apenas acessível a uns poucos até à actualidade, em que de tão acessível se torna desmaterializada e menos significativa ( veja-se o quase desaparecimento do hábito de manter álbuns familiares). Vê-se a evolução das indumentárias, dos hábitos, das forças sociais. Vai-se de uma sociedade fortemente estratificada, com grupos sociais visivelmente separados pela roupa e pela postura, da presença constante da forças armadas (natural em Tavira pela presença de um quartel, mas não incomum no resto país no período pós Primeira Guerra Mundial), a uma sociedade democratizada e muito mais uniformizada nos comportamentos e aparência. Pelo meio passa-se pelo Estado Novo, com a inevitável visita de Américo Tomás, acenando aos populares de uma posição elevada, e os postais de um Portugal típico com chaminés algarvias, carroças e burros. E pela Guerra Colonial, um conflito pouco fotogénico por vontade oficial e em que as imagens de Luís Andrade permitem um dos raros vislumbres que vão além da foto do soldado-fotógrafo-amador, das poses para a família e das curiosidades bélicas ou africanas.
A exposição resulta de uma óptima iniciativa do Museu Municipal de Tavira/Palácio da Galeria e do seu quadro, de uma investigação histórica de Rita Manteigas que é apresentada no catálogo da exposição, e sobretudo do cuidado e da capacidade de preservação de um espólio fotográfico espantoso, demonstrados pela família Andrade, numa atitude rara e que nos enriquece a todos.

Família Andrade, Militar, Tavira, 1920-1940
imagem obtida aqui

A exposição termina a 7 de Janeiro de 2012, e se ainda não a viu dê corda ao sapatinho. Vale bem a pena.

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domingo, 18 de dezembro de 2011

Com as vacas

Depois de dois textos sobre dirigíveis ( recentes, que há um outro mais antigo), sobre a seriedade do seu papel bélico e do optimismo exagerado quanto ao seu futuro, apresento agora uma imagem de contraponto, mais divertida.

Autor não identificado, R101 com vacas,
cerca de 1929, Grã-Bretanha
imagem obtida aqui

A fotografia é britânica e apresenta o R101, uma grande aposta do Reino Unido, em cenário bucólico pairando e sombreando vacas que pastam. Desconheço as intenções do fotógrafo (aliás, desconheço o fotógrafo) mas aparece aqui uma das formas mais comuns de criar humor, colocar em conjunto duas coisas que se contradigam e fazê-lo de forma a que pareça natural.
A imagética mais corrente da época faz associar os dirigíveis a coisas que os liguem ao progresso. Apresenta-os em gigantescos hangares, eles próprios exemplos notáveis dos progressos da engenharia, regista-os a flutuar sobre as notáveis e novas cidades de arranha-céus. Os ângulos são oblíquos, sugerem movimento. Nada disso aqui acontece. A coisa paira sobre vacas que, como é natural nestes bichos, pastam indiferentes e pachorrentas. A torre de ancoragem não é um estiloso espigão Art Deco, como o que pontua o edifício Empire State de Nova iorque, assemelha-se antes a um rústico depósito de água.  A imagem capta o engenho num ponto de vista perpendicular ao seu comprimento, o que acentua o carácter estático da cena. Este dirigível parece dizer que o seu destino não é ligar os pontos mais distantes do império britânico, que o seu futuro não é levar a lado algum. É antes ficar ali. A pairar, com as vacas.

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Desastre em construção

Quando se fala em dirigíveis vêm-nos de imediato à memória os Zeppelin, as aeronaves alemãs que carregavam o nome do criador do conceito, o conde Ferdinand von Zeppelin. Inventados e patenteados em finais do século dezanove, os dirigíveis pareciam, nas primeiras décadas do século vinte, ser a aposta certa no que diz respeito ao transporte aéreo em longas distâncias. As desconfortáveis e pouco fiáveis máquinas voadoras dos irmãos Wright e sucessores pareciam mais coisa de aventureiros que um promissor negócio de viagens.
Porém, nesse período, não foram apenas os alemães, pela mão do sucessor do falecido Ferdinand von Zeppelin, o dr. Hugo Eckener, a desenvolver grandes projectos de naves mais leves que o ar. Os americanos, nos finais da década de vinte, através de um ramo da corporação GoodYear, desenvolveram uma linha para a marinha americana.Os britânicos, ainda antes, desenvolveram a partir de 1925, por iniciativa  governamental liderada pelo ministro do ar, Lord Thomson, o seu próprio projecto orientado para ligar o extenso império britânico.

autor não identificado,
Dirigivel R101 durante a construção, cerca de 1928,
Cardington, Inglaterra
imagem obtida aqui


A imagem da construção do R101, um dos dois grandes dirígiveis do programa britânico, parece insuflada de orgulho e optimismo. O invulgar contrapicado e a temática industrial transporta-nos para o universo construtivista e para o imaginário fotográfico de Rodchenko.

Este optimismo seria trágicamente desmentido pela realidade. A aparente segurança e fiabilidade que a placidez do voo e o conforto das cabines transmitiam revelou-se profundamente enganadora.
Quando se fala no fim da era dos dirígiveis é recorrente a referência ao acidente de 4 de Março de 1936, do  LZ 129 Hindenburg, em Lakehurst, onde morreram 35 pessoas. No entanto, esse não foi nem o primeiro nem o mais mortal dos acidentes com dirigíveis. Três anos anos antes o americano ZRS-4 USS Akron, depois de três acidentes menores, despenhara-se no mar matando 73 homens. E o R101 da imagem, acabaria por colapsar durante a viagem de longo curso inaugural, sobre a frança, em Outubro de 1930.  A bordo e a caminho da Índia, seguiam as altas figuras do estado envolvidas no projecto incluindo Lord Thomson, que não sobreviveria ao acidente. Dos cinquenta e quatro ocupantes do R101, apenas oito escaparam com vida ao despenhamento em solo francês.

A desgraça do LZ 129 Hindenburg não foi a primeira, nem a mais fatal, mas o facto de ter sido registada em fotografia e em filme acabou por ajudar a pôr termo a uma teimosia que, alicerçada no optimismo inicial dos projectos, se recusava a aceitar a extrema fragilidade das naves. E mesmo assim a coisa não seria imediata. A iniciativa alemã continuou em bases menos ambiciosas, e já não transatlânticas, sendo apenas cancelada quando, durante a segunda guerra mundial, o duralumínio das estruturas passou a ser requisitado exclusivamente para os aviões. Esses sim, foram a aposta ganhadora.
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Morte despejada sobre Hull

Ouve-se dizer, por vezes, que os bombardeamentos aéreos sobre as cidades republicanas, durante a guerra cívil espanhola, foram um primeiro ensaio para essa  forma de mortícinio urbano (técnica mais de desmoralização cívil do que de combate verdadeiramente militar) que atingiria a sua maturidade na Segunda Guerra Mundial, poucos anos depois.
Porém tal não é exactamente assim. Se é certo que no conflito espanhol se ensaiariam os procedimentos de bombardeamento concentrado e massificado que desfigurariam Londres e destruiriam Dresden, a verdade é que o momento primeiro da técnica se dera muito antes, durante a primeira mundial.
A escala e a intensidade não foram as mesmas (nenhuma cidade britânica foi significativamente destruida), e a tecnologia não era a mesma. Em 1915, os aviões estavam na sua infância, eram geringonças de madeira, arame e tela. Os motores de combustão eram arcaicos, ineficientes e pouco fiáveis. O seu peso elevado consumia grande parte da capacidade de sustentação que a aerodinâmica incipiente de então fornecia, e a autonomia possível impossibilitava grandes raides transfronteiriços. Em contrapartida, a tecnologia das aeronaves mais leves que o ar encontrava-se já praticamente na sua maioridade.Os dirigíveis, sobretudo os alemães, ofereciam um contraponto notável em termos de fiabilidade, autonomia e capaciadade de carga. E não foram dispensados na primeira verdadeira guerra industrializada.
Na manhã de 19 de Janeiro de 1915 partiram de Fuhlsbüttel, na Alemanha, dois dirigíveis Zeppelin, o L3 e o L4. Preparados para trinta horas de voo, carregavam cada um 8 bombas e 25 engenhos incendiários. Tinham como plano atacar instalações industriais e militares em localidades na linha costeira de Norfolk. Depois de cruzado o canal, e atingida a costa inglesa, os aparelhos que até então tinham seguido juntos, separaram-se. O L3 seguiu para norte e atacou King's Lynn, ao passo que o L4 rumou a sul e bombardeou Great Yarmouth. Os danos provocados poderiam ser classificados como muito limitados, nove mortos e alguns edifícios danificados, mas este ataque teve um impacto enorme na população britânica. Até então esperava-se que a guerra se travasse à distância, nos campos de batalha do continente. Quando a morte foi súbita e silenciosamente despejada sobre o território inglês, passou a não haver um lugar totalmente seguro, a invasão alemã começou a parecer eminente e a moral foi tremendamente afectada.
Diz-se que o imperador alemão autorizara este primeiro ataque na condição de que natureza dos alvos fosse a descrita e de que a cidade de Londres não fosse visada, por temer que a família real britânica (à qual estava unido por laços de parentesco) fosse atingida. Este pejo inicial rapidamente seria ultrapassado e Londres, tal como outras grandes cidades inglesas, não escaparia aos Zeppelin nos anos de 1915 e 1916.


Autor não identificado,
Danos do bombardeamento em Porter street,
Hull , Junho de 1915
imagem obtida aqui


Em 16 de Junho de 1915, o dirigível L9 viu-se impossibilitado de chegar a londres por acção de vento contrário, e a (má) sorte calhou à cidade portuária de Hull, onde seria largada a carga destrutiva destinada à capital. Em resultado, contar-se-iam 24 mortos e vários armazéns e casas destruídos.
A fotografia dos danos em Porter Street permite-nos um vislumbre sobre o impacto destes ataques.
A imagem constroi-se a partir de um ponto de vista situado num interior, o que de imediato facilita uma identificação do observador com os habitantes do espaço destruído. Depois, observa os danos de uma forma subtilmente certeira. Fá-lo centrando a atenção sobre as vítimas que, conformadas mas ainda em espanto, observam a destruição que lhes foi infrigida. Paira sobre a fotografia uma sensação de impotência que reflecte os factos desse  junho de 1915.
Incapazes de enfrentar os dirigíveis que atacavam silenciosamente, do nada, sem armas eficazes, os populares tiveram como única reação um acto inútil. Turbas juntaram-se, destruiram e pilharam tudo o que tivesse um nome que soasse a alemão, como a loja Kress and Wagner.

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