segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O Sobrevivente e o Demónio

Texto publicado inicialmente em A LENTE LENTA do Obvious lounge

Arnold Newman, Auto-retrato,
Baltimore, E.U.A., 1939


Dizem-nos os manuais feitos para instruir os novatos na técnica fotográfica que, num retrato, se deve evitar quaisquer elementos que distraiam a atenção do observador. Que o foco tem de estar no rosto. Que o fundo deve ser neutro ou desfocado. Dizem-nos, de certa forma, que a face é uma porta para alma e que tudo o mais nos afasta do verdadeiro ser do retratado.

O fotógrafo norte-americano Arnold Newman (1918–2006) construiu porém a sua longa carreira, assente sobretudo em fabulosos retratos, desdizendo estas regras de bom senso técnico. Fotografava os seus modelos muitas vezes de corpo inteiro, em cenários familiares, rodeados das ferramentas do seu ofício, nem sempre em pose frontal. Fazia-o com uma câmara de grande formato e tripé, registando com grande detalhe os elementos da cena. E apesar de aparentemente contornar todos os princípios da boa prática do retrato, as suas imagens parecem-nos transmitir de forma particularmente viva a essência da vida e da obra das personalidades com que se cruzou. É creditado, por isso, como sendo o fundador daquilo que os anglo-saxónicos chamam de "environmental portraiture", traduzível por algo como "retrato de ambiência".


Com a modéstia dos talentosos, atribuía o sucesso das suas imagens ao trabalho prévio. Criara um método, dizia, e aplicava-o. Estudava as personalidades que iria retratar, lia ou ouvia as suas obras, analisava os seus feitos. Depois procurava um ambiente que pudesse, da forma mais eficiente, transmitir as qualidades do retratado. Preparava a iluminação e estudava o posicionamento. Por vezes, mandava construir estruturas que facultassem a perspectiva certa à sua lente. Por fim, afirmava, bastava colocar o alvo das suas imagens no local, conversar um pouco e esperar que as coisas acontecessem.

Arnold Newman, Max Ernest,
Nova Iorque, 1943
Colecções do The Arnold Newman Archive




Mas, como se sabe, as grandes teorias não explicam tudo. Nalgumas entrevistas que deu, Newman confessou que nem sempre conseguira previamente ter uma ideia clara acerca da forma como abordar os seus modelos. E que nem todos os seus trabalhos foram planeados com antecedência. Por vezes, era evidente que o acaso e a intuição tinham um papel bem mais decisivo que o método.

Uma das mais tocantes fotografias de Arnold Newman, o retrato de Otto Frank, é um desses casos. Não foi propositada a coincidência de Newman se encontrar em Amesterdão, acompanhado da esposa, no dia em que a casa-refúgio de Anne Frank era inaugurada enquanto museu, a 3 de Maio de 1960. Não foi igualmente preparado o facto de estar instalado no mesmo hotel em que o pai de Anne Frank se encontrava. Foi acidental o encontro do casal Newman com Otto Frank no átrio do hotel, na tarde da véspera do evento, quando este descansava de um longa sessão de discursos do presidente da câmara e de outros dignitários. Foi num impulso que Newman se apresentou e iniciou uma conversa. Descobriram ter amigos comuns e, quebrado o gelo, o fotógrafo perguntou a Otto Frank se poderia fotografá-lo. Este aquiesceu e combinaram então que, no dia seguinte, duas horas antes da inauguração, fariam a sessão fotográfica.

Otto Frank, fora o único sobrevivente de uma família judia alemã que se refugiara na Holanda em 1933, fugindo da ameaça nazi que crescia de tom no país natal. Otto era casado com Edith Frank-Holländer, e tivera, ainda nascidas na Alemanha, duas filhas - Margot, a mais velha e serena, e Annelies (Anne), a mais nova e de temperamento mais vivo. Em Maio de 1940, a Alemanha nazi invadiu a Holanda e a situação dos Frank, até então relativamente confortável e próspera, começou a estar em risco. Em 1941, para evitar a confiscação das suas empresas comerciais, Otto transferiu as suas acções para funcionários de confiança, holandeses não judeus, e conseguiu por algum tempo garantir a sobrevivência económica da família. Porém, em Julho de 1942, um mal que se temia precipitou-se e atingiu os Frank. Foi recebida uma ordem de deportação para um campo de trabalho.
Não sendo ingénuo, Otto encontrava-se a preparar na sede de uma das suas empresas, a Opekta, um esconderijo para a sua família e para amigos judeus mais chegados, e a entrada na clandestinidade foi antecipada. Na manhã de 6 de julho, uma segunda-feira, os Frank abandonaram a sua casa, deixada desarrumada para simular uma partida precipitada, e dirigiram-se para o anexo secreto, um apartamento recuado de três divisões e um sotão, acedido por uma porta dissimulada por uma estante, nos escritórios da companhia.
Será aí que, ajudados por amigos, os Frank viverão (acompanhados da família Van Pels e por Fritz Pfeffer, que a eles se juntaram mais tarde) até 4 de Agosto de 1944 quando, alertada por informador até hoje não identificado, a polícia militar alemã irrompeu pelo esconderijo e deteve os residentes. Um mês depois, a família foi deportada para Auschwitz, um complexo de campos de trabalho e extermínio situado na actual Polónia, transportados no último comboio que partiu da Holanda para esse destino.

Como disse, apenas Otto frank sobreviveu. As mulheres foram separadas e as irmãs, Margot e Anne,mais tarde seriam transferidas para outro campo de morte, Bergen-Belsen, na Alemanha. A mãe morreu em Auschwitz, e as filhas pereceram no campo alemão. Primeiro, a primogénita, em Março de 1945, e pouco tempo depois, Anne Frank, a escassos dias da libertação do campo por tropas britânicas, em 15 de Abril de 1945.



George Rodger, Prisioneiras após a libertação do campo,
Bergen Belsen, Alemanha,1945
Arquivo da revista Life


Após o fim da guerra, Otto Frank retornou à Holanda e foi acolhido por Jan e Miep Gies, um casal que o auxiliara durante a clandestinidade. Estes entregaram-lhe o que haviam conseguido resgatar do refúgio após a operação policial alemã. Fotografias, documentos diverso e um pequeno caderno- um livro de autógrafos que fora oferecido a Anne pouco antes da ida para o anexo, e que esta usava como diário. A adolescente, inconformada e com aspirações jornalísticas, escrevera aí o registo dos dias de clausura no edifício da Opekta, e registara aí igualmente a sua vida interior, os seus desejos, frustrações, medos e desconfortos. Quando o caderno acabou, Anne continuou o registo noutros blocos de notas, e em folhas avulsas, que os Gies haviam também conseguido recolher. Otto agarrou-se a estes fragmentos soltos, que eram o que lhe restava da família perdida, e deu-lhes ordem. Depois de os organizar, encaminhou-os para uma historiadora, Annie Romein-Verschoor, que com o apoio de marido, o jornalísta Jan Romein, conseguiria a sua primeira publicação, em 1947.
A história do diário de Anne Frank tornou-se depois sobejamente conhecida, com inúmeras traduções e uma versão cinematográfica logo em 1959. A par das obras notáveis de Primo Levi e de Imre Kertész, é um dos mais importantes registos da tragédia do Holocausto, demonstrando, de uma forma particularmente pessoal, a brutalidade e o arbritário irracional que irromperam pela normalidade humana, no mundo das décadas de vinte, trinta e quarenta de novecentos.

Autor não identificado,Anne Frank,
Amesterdão, Maio de 1942
colecções da Anne Frank House, Amesterdão, Holanda


Quando na manhã de 3 de Maio de 1960, Arnold Newman se encontrou com Otto Frank no antigo refúgio de Amesterdão, não fazia a mínima ideia como o iria fotografar. Numa entrevista posterior, à Apogee Photo Magazine, disse que a questão de pedir a Otto que tivesse uma determinada pose simplesmente não se punha. Não o podia fazer, pôde observar como o deambular pelas divisões do anexo era uma experiência esmagadora pesarosa. E pôde ver como Otto Frank ia progressivamente ficando pensativo, fechado, com o semblante carregado. Ao chegarem ao sótão, fragilizado, Otto apoiou-se num pilar com o ombro, e aí o fotografo teve o seu momento decisivo, obteve a sua imagem. Acto contínuo, começaram a tocar os sinos de uma igreja próxima, e este virou-se para Newman e disse: "São estes os sinos sobre os quais Anne escreveu". Após esta frase, perdeu o controle emocional e abraçou o fotografo. Choraram ambos.
A segunda esposa de Otto Frank interveio nesse momento e terminou a sessão fotográfica, pondo igualmente termo a um dos instantes emocionalmente mais fortes da vida de Arnold Newman. Confrontara-se de forma muito próxima, e única, com o lastro que carregavam os sobreviventes do Holocausto.

Arnold Newman, Otto Frank,
Amesterdão, Holanda, 3 de Maio de 1960




Uma experiência diametralmente oposta (mas, apesar de tudo, relacionada) seria vivida por Newman, poucos anos depois, em 1963. Raras vezes o fotógrafo retratou gente que desgostava. Mas nesse ano, a revista Newsweek solicitou-lhe que fotografasse o industrial alemão Alfred Krupp. A sua primeira reacção foi recusar. Os sentimentos que nutria pela figura em causa ultrapassavam a indiferença ou a antipatia. Situavam-se numa escala de puro desprezo. Como ser humano dotado de valores, e como judeu, não o podia suportar.

Alfred Krupp havia feito parte da elite económica alemã que prosperara com os nazis durante a segunda guerra mundial. Mais do que meramente colaborar no esforço de guerra, os negócios de Krupp haviam tido uma ligação umbilical com os aspectos mais negros do devaneio nazi. Explorara mão-de-obra escrava, desde prisioneiros de guerra e trabalhadores recrutados à força (nos países ocupados) até às vítimas dos campos de morte- judeus, ciganos, homossexuais, resistentes políticos. E com isso lucrara grandemente.
Derrotada a Alemanha, estivera preso durante um curto período, como criminoso de guerra. Mas a política de normalização dos aliados ocidentais, alarmada com a possibilidade de alastramento dos soviéticos, acabaria por fazer sobrepor os objectivos de recuperação económica a “pruridos” éticos e morais. Apesar da condenação dos membros mais graduados do regime nazi, nos chamados julgamentos de Nuremberga, muitos dos colaboradores próximos acabariam por escapar incólumes. Como outros homens de negócios alemães, Krupp foi solto, recuperou a fortuna e as indústrias, e viu ser passado um pano sobre o seu muito sujo passado. E tornou a prosperar, desta feita na democrática República Federal da Alemanha.

Perante a recusa declarada por Arnold Newton, os editores da Newsweek insistiram. Não havia qualquer problema em que considerasse o alemão como uma figura diabólica, como alguém que planava acima da moralidade e da consciência. Eles próprios partilhavam desse sentimento e não lhe solicitavam um retrato que favorecesse o magnata. Antes pelo contrário.

Newton acabou por aceitar o serviço.

Alfred Krupp gostava do trabalho de Arnold Newton. Gostaria de ficar para eternidade registado numa dessas belas imagens que o americano conseguia compor. Ao contactá-lo pessoalmente, Arnold pôde confirmar um axioma comum, o que nos diz que os grandes vilões não são imediatamente detectáveis a olho nu, passam indistintos em sociedade. Krupp apresentava-se como um cavalheiro distinto, de trato simpático e conversa elevada. Nada nele denunciava o empresário que descartava, anos antes e em cadência regular, os operários escravos que se iam tornando menos produtivos ( vítimas da subnutrição e da sobrecarga de trabalho) traçando a sua sorte na máquina de morte nazi.

Para a sessão fotográfica mandou construir uma plataforma com dois metros de altura numa fábrica que produzia carruagens ferroviárias e eléctricos*. Sobre ela colocou uma secretária e uma cadeira, bem como a iluminação. Sobre a luz, evitou o óbvio : não colocou um foco luminoso único, abaixo do rosto. Optou por colocou dois focos laterais, mais expressionistas que a típica iluminação frontal difusa.
As primeiras fotografias e poses, não sendo fracas, não o satisfizeram. Após várias experiências , lembrou-se de pedir ao industrial que se debruçasse um pouco sobre a secretária. Alfred Krupp pousou os cotovelos no tampo do móvel e, entrelaçando os dedos, pousou o queixou sobre as mãos.
Fez-se magia! O polido empresário adquirira, de súbito, um ar maquiavélico que era potenciado pelo fundo industrial. As soldagens que ocorriam nos planos traseiros, e mais rebaixados, evocavam ressonâncias infernais. Newman percebeu imediatamente o que tinha perante si. Fotografou como um louco, com tudo o que estava à mão: filme a cores, película preto e branco e polaroid. Não se podia dar ao luxo de perder o momento.

Arnold Newman, Alfred Krupp,
Essen, Alemanha, 1963


Quando imagem escolhida foi publicada, Krupp ficou furioso, ao que se diz. Não conseguira o retrato simpático para a posteridade que antecipara. O que a Newsweek transmitiu para o mundo era antes a sua incarnação como um demónio.
Com grande satisfação pessoal, Alfred Newman dizia que, com essa fotografia, se tornara durante anos persona non grata na República Federal da Alemanha.


*bondes, no português do Brasil.


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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Brandos costumes (9)

Pouco após a implantação da República, Portugal entrou numa espécie de guerra civil não declarada que, entre tentativas de restauração monárquicas, lutas facciosas entre republicanos, a aventura Sidonista, a ditadura militar e o reviralho, só viria a terminar bem adentro dos anos trinta do século passado, quando a estabilização do Estado Novo serenou pela força o país .

A chamada Revolução do Castelo foi dos muitos episódios desse período.
Não foi dos mais violentos, mas no final sete mortos figurariam no balanço das baixas. Embora tenha tido dimensão nacional, o nome que lhe é atribuído adveio do seu ponto de partida, o batalhão de Caçadores 7 do Castelo de S. Jorge, em Lisboa.

Iniciados os eventos a 20 de julho de 1928, o regime da ditadura militar conseguiria garantir o controle da situação no dia seguinte, sobretudo pela acção do coronel Farinha Beirão, em Lisboa, e do major Lopes Mateus, em Viseu. A 27 de Maio, encerraria definitivamente o episódio com um decreto que condenou os revoltosos entretanto dominados.

Mário Novais registou, em Lisboa, o momento em que um dos sete mortos é transportado, sem grande urgência, por um largo de calçada deserto.

Mário Novais, Revolução do Castelo,
Lisboa, 20 a 27 de Julho de 1928

imagem obtida aqui



Mário Novais, Revolução do Castelo (pormenor),
Lisboa, 20 a 27 de Julho de 1928

imagem obtida aqui



Mário Novais, Revolução do Castelo (pormenor),
Lisboa, 20 a 27 de Julho de 1928

imagem obtida aqui

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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Augusto Mayer (1926-2012)

Existe uma relação amorosa (muitas vezes consumada) entre a fotografia e o Jazz. Para prová-lo basta citar o caso de William Gottlieb e das fotografias que fez nos anos trinta e quarenta de novecentos, quando o Jazz tansitou das big bands e do swing para a sua fase de "câmara", o BeBop, em clubes fumarentos dos Estados-Unidos.

William P. Gottlieb, Charlie Parker e Tommy Potter,
Nova Iorque, Agosto de 1947
imagem obtida aqui

Em Portugal, salvaguardadas as devidas distâncias, o papel de cronista fotográfico desses tempos heróicos terá cabido a Augusto Mayer, que cobriu as jam sessions que tentaram abanar o status quo da cena musical do Portugal dos anos quarenta, e a actividade do Hot Club, em Lisboa.

Augusto Mayer, 1ª jam session no Café Chave d'Ouro,
Lisboa, Fevereiro de 1948
imagem obtida aqui


Augusto Mayer faleceu recentemente, a 22 de Dezenbro de 2012, com 86 anos.

João Moreira dos Santos, autor de vários livros sobre Jazz em Portugal, encontrava-se a preparar uma obra centrada no espólio do fotógrafo. Obra essa que ganha agora uma nova premência.

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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Porque, enfim, é Natal...

Horácio Novais, Iluminações de Natal, Lisboa, s/data
Imagem obtida aqui


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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Limpeza é Saúde

Navegando pelas imagens do projecto In the camps, do falecido fotógrafo Erich Hartmann, retenho-me perante uma em particular.
A fotografia, da estrutura das barracas de Birkenau, reaviva a memória da minha própria passagem pelo megacampo de Auschwitz, na Polónia.

Quem lá for pela primeira vez poderá pensar ingenuamente que, imunizado por leituras e  documentários, se pode sair livre de choques e surpresas.

Mas, mesmo nas visitas guiadas a passo acelerado que o museu proporciona, raro é o estreante que abandona o complexo sem se sentir abalado.
Todos sabemos coisas acerca do Holocausto nazi. Alguns, como eu, leram Primo Levi e Imre Kertez, cronistas da rara sobrevivência nos campos de concentração. Outros não esqueceram A Lista de Schindler, ou as aulas de História do seu ensino secundário.
Porém, provavelmente, ninguém está a par de tudo acerca da Solução Final de Hitler. A dimensão e a natureza do Mal patente no complexo de Auschwitz é avassaladora, e o mais "preparado" dos excursionistas é atropelado, ou pelos pormenores que desconhecia, ou pela crua confrontação directa com as provas.

Num corredor dum dos edifícios de Auschwitz, os visitantes são expostos a um aspecto perturbador, mas central do projecto de extermínio. Dezenas de fotografias de prisioneiros dos primeiros tempos do complexo estão penduradas nas paredes. Rostos retirados dos cadastros do campo, de pastas com imagens de frente, perfil e três-quartos, organizadas pelo aparelho contabilístico/burocrático que fazia tudo funcionar com eficiência fabril .
Junto às imagens, informações mínimas acerca dos retratados. Dentro destas, destacam-se duas: a data de entrada e data da morte. Separam-nas, por norma, poucas semanas.
O campo estava projectado para extrair  dos condenados o máximo de trabalho, com o mínimo de investimento (comida, roupa, alojamento), em menos de cem dias. Nesse período, os prisioneiros, ainda saudáveis nas fotos do dia da sua entrada, seriam esgotados enquanto mão de obra e convertidos em matéria-prima.

Wilhelm Brasse, 
Fotografia do cadastro da prisioneira 22193,
Auschwitz, Polónia
A planificação industrial do acto de reduzir um ser humano, em poucas semanas, de trabalhador a fertilizante e tecido, choca-nos até às entranhas, e potencia a nossa incredibilidade quando vemos como os autores do extermínio faziam gáudio de bombardear os seus condenados, num acto de profundo cinismo, com frases de alento ou de doutrina.

Erich Hartmann, no projecto In the camps, esquiva-se a fotografar o portão de Auschwitz que contem a célebre "Arbeit macht Frei"- o Trabalho liberta ( ver A mais cínica das frases). Mas, numa das barracas de Birkenau, repara nas vigas e fotografa-as. Decoram-nas alguns slogans.
Num campo em que as condições de alimentação e higiene faziam morrer muitos dos prisioneiros por disenteria e tifo, o vigamento de um dos edifícios recebia-os não só com incentivos à honestidade, à ordem e à boa postura, como com um pérfido Sauberkeit ist Gesundheit - a Limpeza é Saúde.

Erich Hartmann, Slogans em vigas,
Auschwitz, Polónia, 1994
imagem obtida aqui

Erich Hartmann,
Ehrlich währt am längsten - 
a Honestidade é a melhor política,
 pormenor de "Slogans em vigas", 
Auschwitz, Polónia, 1994
imagem obtida aqui





Erich Hartmann,
Sauberkeit ist Gesundheit - a Limpeza é Saúde,
 pormenor de "Slogans em vigas", 
Auschwitz, Polónia, 1994
imagem obtida aqui


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domingo, 9 de dezembro de 2012

A mais cínica das frases

Autor não identificado, Portão em Auschwitz,
Polónia, 11 de Maio de 1945,



É conhecida praticamente de toda a gente a frase forjada em ferro que encima uma das entradas do campo de concentração de Auschwitz, perto de Oswiecim, na Polónia. Com dureza metálica, recebia os que entravam com uma mensagem de alento. ARBEIT MACHT FREI, o trabalho liberta, garantia aos que chegavam. Ali perto, no campo anexo de Birkenau, aos que eram seleccionados para o trabalho forçado e adiavam a morte, os Kapos ( prisioneiros, normalmente de delito comum, que controlavam os outros condenados) de imediato, na primeira formatura, retiravam quaisquer ilusões. Ao campo chegava-se de comboio e só se saía através das chaminés, no fumo dos fornos crematórios.

Mas o cínico enunciado metálico de Auschwitz não era uma singularidade, um assombro casual  de humor negro dos projectistas desse campo. Como tudo na máquina do Holocausto nazi, não nasceu dum acaso ou dum improviso. 

Erich Hartmann, fotógrafo da famosa agência Magnum, desenvolveu, já  nos últimos anos da sua vida, um projecto que se tornara uma obsessão pessoal. 
Nascido na Alemanha, numa família de classe média judaica, Hartmann escapara ao Holocausto porque a sua família tivera a oportunidade de emigrar para junto de parentes que tinha nos Estados Unidos. Mas septuagenário, no início dos anos noventa de novecentos, retornou à Europa natal e, durante oito semanas, percorreu vinte e dois antigos campos de concentração. Neste périplo gastou mais de uma centena de rolos de película que, depois de muita selecção, culminariam nas setenta e quatro imagens que seriam incluídas no livro "In the Camps", publicado em 1995.

Na obra não aparece o famoso portão de Auschwitz que, quer se queira quer não, se tornara um lugar-comum do mais incomum e maléfico dos projectos humanos. Mas, depois da muita escolha que o fotógrafo fizera do produto da sua excursão, a promessa de liberdade pelo trabalho aparece por duas vezes. Não em Auschwitz, Polónia, mas em Teresin, na República Checa, pintada num arco de alvenaria, e em Dachau, Alemanha, feita no ferro dum portão como em Auschwitz.

Sistematicamente, repetidamente, pelos vários países por onde passou a Solução Final de Hitler, os nazis deixaram, marcada na arquitectura dos campos, a mais cínica das frases.


Erich Hartmann, Entrada da Prisão da GESTAPO,
Terezin, República Checa, 1994
imagem obtida aqui



Erich Hartmann, Dachau, Alemanha, 1994
imagem obtida aqui


Quem estiver interessado, e tiver um dinheirinho extra ( não é o caso, infelizmente, deste vosso escriba ) pode comprar aqui o livro "In the camps", de Erich Hartmann.



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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Os cliché verre da veterana

O cliché verre é uma técnica fotográfica invulgar, realizada sem câmara, algo aparentada com os fotogramas. Ao contrário destes últimos, os objectos que irão originar a imagem não são colocados directamente sobre o material fotossensível, são intermediados por vidro ( verre em francês,daí o nome), acrílico, acetato ou outro material transparente.
Tradicionalmente era uma técnica de gravura, em que a superfície do vidro era coberto com tinta preta ou betume, e posteriormente raspada de maneira a formar desenhos que era reproduzidos por processo fotográfico. Camille Corot e outros artistas oitocentistas utilizaram-na pronta e eficazmente desde o início.


Camille Corot,  Le Songeur, cliché verre, papel salgado, 1854
imagem obtida aqui


Depois, ao longo do tempo, foi-se afastando do campo estritamente gráfico e os experimentalistas do século XX tornaram-na uma prática fotográfica de pleno direito. Com os avanços tecnológicos do século passado, passou a ser possível aplicar as "sanduíches" de vidro a ampliadores fotográficos e as imagens dos cliché verre ganharam uma natureza muito distinta dos fotogramas. As suas características algo "artísticas" não permitiram à técnica, no entanto, uma entrada maior no corpus da Fotografia mais conceituada.

Hoje, com o recuo muito acelerado da fotografia analógica, os cliché verre parecem estar remetidos para o nicho excêntrico dos que insistem em usar e ensinar coisas obsoletas (onde o autor destas linhas se inclui).

Mas verifica-se a existência de notáveis resistentes. A quase centenária e norte-americana Maggie Foskett, nascida no Brasil no distante ano de 1919, e em tempos uma discípula de Ansel Adams,  tem desenvolvido nas últimas década um interessante trabalho assente neste procedimento.
O cliché verre propicia-se a descobertas estéticas e a surpresas sem que os praticantes tenham de se deslocar ao outro lado do mundo (ou ao fim da  rua, tão somente). Parece adequar-se extraordinariamente bem a esta mulher que se habituou a olhar para as coisas bem de perto,  nas suas férias escolares, quase um século atrás, passeando pelos campos brasileiros. E que não podendo continuar a carregar câmaras e tripés, continua a descobrir o mundo no seu laboratório.

Maggie Foskett, Bits and Pieces, 2007
imagem obtida aqui


Maggie Foskett, O papagaio vermelho, 1994
imagem obtida aqui


Maggie Foskett, Cavalos marinhos, sem data
imagem obtida aqui


Maggie Foskett, Floresta húmida, 1996
imagem obtida aqui


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