quarta-feira, 31 de julho de 2013

ONTOS : A Pata quebrada do volátil

Léon Vidal, abastado industrial francês e um reconhecido fotógrafo, foi um dos primeiros que vislumbrou a importância e valor cultural da fotografia científica, e acalentou o projecto de criar no seu país um museu da Fotografia documental. A tal instituição terá chegado a ser anunciada em 1898, em Paris. Mas não vingou. A colecção de Vidal encontra-se hoje depositada na Biblioteca Nacional de França, e nela podemos encontrar um pequeno conjunto de fotografias de Albert Peignot, um técnico do curso de física do Conservatoire national des arts et métiers.
Feitas em 1896, demonstram a facilidade de circulação das novidades técnicas e científicas nesse período. Em Novembro do ano anterior, o alemão Wilhelm Röntgen descobrira os raios x e a capacidade destes produzirem imagens em suportes fotossensíveis. Uns poucos meses depois era possível a Peignot replicar, com clara desenvoltura técnica e estética, o procedimento.

Albert Peignot, Radiografia de um volátil, 1896
imagem obtida
aqui

Do referido conjunto, a Bibliothèque nationale de France escolheu a imagem acima para uma recente exposição de 100 fotografias que os curadores entenderam serem as obras-primas da sua colecção fotográfica.
A Albert Peignot terá certamente interessado a pata quebrada da ave para demonstrar a novíssima possibilidade de dar a ver o invisível e as portas que tal facto abria. Para nós, seres por demais demasiado habituados a contar com o poder da técnica, o lado científico da imagem não será o factor maior de interesse. Como o crânio nas mãos de Hamlet, esta bela imagem desperta-nos para divagações mais filosóficas. Ou estéticas.

___________________________________________________________________

terça-feira, 30 de julho de 2013

A mão da senhora Röentgen

Como muito outras descobertas, a dos raios X deu-se por acaso.
Enquanto experimentava com um aparato designado por tubo de Crookes, no ano de 1895, o  físico alemão Wilhelm Röntgen apercebeu-se que este emitia um tipo de radiação que ficava registada em papel fotográfico. De imediato, decidiu fazer experiências adicionais, colocando alguns objectos entre o tubo de Crookes e o papel, realizando aquilo que normalmente se designa por fotograma.
Descobriu então que os objectos, ao contrário do que acontece na fotografia comum, atenuavam mas não impediam a sensibilização do suporte fotossensível. Ficavam impressos com um determinado grau de transparência, apesar de serem opacos. Estavam descobertos os raios X, nome que Röntgen usou para designar essa radiação até então desconhecida.
E nesse mesmo dia 8 de Novembro de 1895, o alemão inventou uma outra coisa. Num comportamento que não era invulgar na época, socorreu-se dum familiar como cobaia, sem medos nem pruridos. Pediu à esposa que avançasse com a sua mão para a posição onde onde antes tinham estado os objectos do fotograma. Depois da exposição aos raios X, foi possível obter uma imagem onde, pela primeira vez, os ossos de um humano vivo eram visíveis sem qualquer incisão ou ferida. A esta segunda descoberta chamou radiografia.

Wilhelm Conrad Röntgen,
A mão da senhora Röntgen,
8 de novembro de 1895
imagem obtida aqui


Wilhelm Conrad Röntgen,
A mão da senhora Röntgen (pormenor),
8 de novembro de 1895
imagem obtida aqui


___________________________________________________________________

quinta-feira, 25 de julho de 2013

As icónicas operárias do Office of War Information

Um novo texto meu, publicado na OBVIOUS.

J. Howard Miller,
"We can do it", cartaz da Westinghouse Company, 1943
imagem obtida aqui


É bastante conhecido o cartaz norte-americano "We can do it", de 1943, em que a ilustração de uma operária plena de força e resolução, mas ainda assim graciosa, aparece a garantir que as mulheres fariam a sua parte na frente doméstica enquanto os homens eram recrutados e encaminhados para as batalhas da Segunda Guerra mundial.

O cartaz, encomendado por uma empresa privada que participava no esforço de guerra, não foi um acto isolado no país. Embora feito por iniciativa particular, enquadrou-se num amplo esforço de comunicação que tinha como epicentro o governo federal.

Em Dezembro de 1941, o ataque japonês a Pearl Harbour, porto sede da frota americana do Oceano Pacífico, precipitou a entrada, que se antecipava já há algum tempo, dos Estados Unidos da América na guerra. Em Junho do ano seguinte foi criado o Office of War Information, uma agência governamental que tinha como missão não só definir e coordenar a informação sobre o conflito, como delinear uma política comunicativa que favorecesse o esforço de guerra e o patriotismo.

Howard R. Hollem,
Irma Lee McElroy, Corpus Christi, Texas,
Agosto de 1942
imagem obtida aqui

Leia mais aqui.

___________________________________________________________________

quarta-feira, 24 de julho de 2013

À paulada

Em tempos um professor de sociologia, ao tentar explicar que certas ideias feitas resultam de enganos, repetições e desconhecimento, e não propriamente duma tradução da realidade no senso comum, deu o exemplo da China e da proverbial "paciência de chinês". Ele, que conhecia bem o país, e que o visitara ainda antes de ele se ter tornado a fábrica do mundo, dizia que encontrar um chinês paciente não era tarefa fácil, mesmo em tempos bem mais controlados, anteriores a Deng Xiaoping. A cultura chinesa não é uma cultura de silêncio, de calma e de rituais longos e silenciosos. As cidades chinesas eram locais bulíciosos, barulhentos, dizia ele, onde à mínima coisa havia logo uma grande possibilidade de desatar tudo à estalada, ao murro e ao grito.
A ideia do chinês introspectivo, meditativo, dotado duma sabedoria milenar era uma concepção criada no ocidente, baseada não numa experiência real e pessoal (para o perceber, basta ler a "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, um dos primeiros relatos na primeira pessoa de um ocidental no Império do Meio) mas antes numa mistura de informações, oriundas quer de outros países asiáticos ( do Japão, nomeadamente), quer de contactos com aspectos particulares da cultura chinesa, como o mundo burocrático imperial, a filosofia taoista e a religião budista. Tudo isto, bem amalgamado e repetido vezes sem conta junto dum mundo ocidental que nunca vira a China, e para quem tudo se confundia no Oriente, permitira a convicção profunda ( e falsa) que os chineses são, de uma maneira geral, calados, pacientes e superiormente organizados.

Essa aula, que bem me divertiu, vem-me com frequência à memória sempre que esbarro com o lugar-comum de Portugal como país de brandos costumes, o do português como povo sereno.
Se nos dias que correm a coisa (momentaneamente, talvez) até parece ser assim, afirmar tal historicamente é algo que não aguenta a confrontação com a realidade.
Um dos aspectos em que o Estado Novo foi mais bem sucedido foi no profundo apaziguamento do país, e na efectiva implementação do monopólio da força por parte do Estado. Para tal, criou um aparelho repressivo assente nas forças policiais que, ao longo do tempo, conseguiu fazer chegar a todos os recantos do território, e fez silenciar através da censura os relatos de alterações de ordem pública. Esta percepção de que nada acontecia, associada à certeza de um uso indiscriminado da força policial em caso de conflito, e a um sistema judicial que, em caso algum, questionaria as forças policiais, resultaram no referido apaziguamento.

Mas extrapolar esse facto para tempos anteriores é algo muito errado.  Antes do sucesso do Estado Novo, os brandos costumes e o povo sereno só podem ser retóricos. Portugal era um país em alvoroço constante. Entre guerras civis, um regicídio, vários assassinatos políticos, duelos de deputados, revoltas, guerrilhas e salteadores, muito pode ser dito sobre os dois últimos séculos, para não ir mais longe.

Quando, no meio da conturbada primeira república, se decidiu enviar um Corpo expedicionário para as trincheiras da primeira guerra mundial, as tropas apressadamente reunidas, e instruídas no Ribatejo, foram depois sujeitas,em Inglaterra e em França sobretudo, a novo processo de instrução militar para as habilitar para a realidade dos combates nas trincheiras.
Aí, alguns relatos indicam que os soldados portugueses espantaram os seus instrutores britânicos pela relativa facilidade com se adaptavam às técnicas de luta com baioneta, ao combate próximo nas trincheiras. De pequena estatura na sua maioria, vinham de realidades pré-industriais, onde andar à luta era quase um desporto entre aldeias. No Norte de Portugal, em particular, praticava-se uma forma de arte marcial, o chamado jogo do pau, cujas demonstrações em terras de França e Inglaterra provocaram a curiosidade dos oficiais aliados, que as filmaram e fotografaram.

Autor não identificado,
Soldados portugueses executam demonstração do Jogo do pau,
Roffey Camp, Horsham, Sussex, Inglaterra,
15 de Agosto de 1918
imagem obtida aqui
Portugal, antes do Estado Novo, não era bem um local de brandos costumes. Era simplesmente um país habituado a andar à paulada.

___________________________________________________________________

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A posição correcta


Lewis W. Hine, Posição sentada correcta,
Boston, Massachusetts, E.U.A.
1917
imagem obtida aqui

Encontrar torsos femininos nus na obra de Lewis Hine não significa encontrar aí exercícios de esteta ou citações da arte dos clássicos. Hine tinha uma concepção instrumental da fotografia. Esta era para ele um meio de explicitação de uma ética, de uma postura política e sociológica. A obra fotográfica de Hine é uma das primeiras que se constitui como documento de louvor ao trabalho e de combate à exploração laboral.
A sua causa inicial (e talvez a maior) foi o registo e denúncia do trabalho infantil, algo que assume quando é contratado para esse efeito pelo National Child Labor Committee, uma organização progressista norte-americana, no ano de 1908. A partir daí o seu trabalho alastra para campos adjacentes, para as condições de vida de trabalhadores, imigrantes ou de minorias étnicas, para a dignificação estética do trabalho, e até para a documentação e estudo da relação entre trabalho e a doença.

Nas primeiras décadas do século vinte, no mundo industrializado de então, a atitude em relação ao trabalhador industrial não era muito distinta da que se verifica hoje nos redutos de exploração onde a indústria mundial concentra a sua produção. O trabalhador era um elemento a usar o mais eficazmente possível, de forma a obter o máximo de proveito com o mínimo de custos.
A preocupação com as doenças profissionais, com a segurança e higiene no trabalho e com a ergonomia, que hoje são imposta por lei no chamado primeiro mundo (um mundo que se desindustrializou alegadamente por excesso de regulamentação), não existiam verdadeiramente. Iniciados na infância no trabalho pesado e fabril, muitos trabalhadores desenvolviam ainda antes da idade adulta deformações ósseas  e problemas graves a nível articular, muscular e tendinoso.

É por aí que entram os torsos femininos nus no trabalho de Hine. Não são uma decorrência estética, uma declaração de apreço pela beleza feminina. São a forma de tornar visível as deformações que anos de posturas incorrectas e tarefas repetitivas em elevada cadência produziam em jovens mulheres americanas nos inícios de novecentos. Vestidas com as pesadas roupagem do pudor pós-vitoriano, a evidência do problemas não seria possível nelas. A fotografia é aqui puro documento, algo que se quer a caminho da ilustração científica.

Lewis W. Hine,
Mildred Benjamin, 17 anos de idade,
Curvatura dorsal no lado direito, Escoliose,
Boston, Massachusetts, EUA,
1917
imagem obtida aqui
Lewis W. Hine,
Posição erecta razoavelmente correcta,
Boston, Massachusetts, EUA,
1917
imagem obtida aqui
Lewis W. Hine,
Fannie Bowman, 15 anos de idade,

Deformação postural,

Boston, Massachusetts, EUA,
1917
imagem obtida aqui


Lewis W. Hine,
posição correcta,
Boston, Massachusetts, EUA,
1917
imagem obtida aqui

Denunciar o problema, registá-lo, aconselhar soluções, esta era para Lewis Hine a posição correcta. E as suas fotografias estavam ao serviço dela.


___________________________________________________________________


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma honra dispensável

Algumas cidades portuguesas possuem uma rua António Gonçalves Curado.
A atribuição de um nome pessoal a uma rua, a um largo ou até a um beco, geralmente é uma homenagem a alguém que se distinguiu pelos seus feitos, a alguém a quem os factos da História dão relevância.
Mas António Gonçalves Curado não foi um político notável, nem um escritor dotado, nem ainda um professor amado. O grande facto da vida (passe a expressão) de António Gonçalves Curado foi o facto de ter morrido.
Ele foi simplesmente a primeira vítima, de muitas, da estranha aventura que foi a participação portuguesa na frente europeia da primeira guerra mundial.
Um conjunto de ambições, pressupostos e ilusões levaram a que os governantes da primeira república se decidissem pelo envio de um corpo expedicionário para a França e a Bélgica, arregimentado à pressa e verdadeiramente sem logística própria. Esta foi uma ajuda não desejada pelos aliados, que tiveram de o equipar e treinar para a realidade das trincheiras, algo muito diferente dos campos abertos do Ribatejo onde foi feita a instrução militar em Portugal.
Despejados na frente ocidental, os soldados do Corpo Expedicionário Português viveram a brutal natureza dos dois últimos anos dum conflito que se notabilizou por produzir mortos a uma cadência industrial, sem qualquer benefício militar para qualquer das partes. Com a agravante de, a partir de certa altura, terem sido abandonados pelo liderança política portuguesa, que envolvida nas reviravoltas e revoltas da primeira República, interrompe o envio de novas tropas, impedindo a rotações dos contingentes e prolongando os períodos de combate na frente muito para além do sustentável.
Mas António Gonçalves Curado não teve sequer a possibilidade de viver a desesperança do período final do CEP. Morreu logo a 4 de Abril de 1917, na sequência de um bombardeamento alemão que o soterrou nos escombros do abrigo onde se encontrava, na Flandres, Bélgica.

Autor não identificado,
Sepultura do primeiro soldado português morto
em combate na frente europeia da 1ª guerra mundial,
França, 1917
imagem obtida aqui

O Imperial War Museum , de Londres, que alberga a colecção de fotografias do Consulado Geral Português, conserva a imagem da sua sepultura provisória em França, onde ficariam os restos mortais até à trasladação para Portugal, em 1929, operação custeada pelo município da sua terra natal, Vila Nova da Barquinha.
António Gonçalves Curado inaugurou a lista enorme de vítimas do sector português da frente ocidental, um esforço militar em que até nas lápides e cruzes as tropas portuguesas estavam dependentes dos seus aliados britânicos (os quais, por diferenças linguísticas alteravam frequentemente os nomes). Com isso ganhou a notoriedade que lhe valeu um lugar na toponímia das cidades portuguesas.
Sem conhecer mais da personalidade e biografia do homem, arrisco-me a dizer que essa foi uma honra que que ele certamente dispensaria, tivesse ele a oportunidade de escolher o seu destino.

____________________________________________________________________