quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os "Bravas"

 Lewis Hine, nos seus anos ao serviço do National Child Labor Committee, concentrou-se no motivo central, as crianças que desde quatro, cinco anos, eram lançadas no mercado laboral em inícios de novecentos. Esta realidade era esmagadora entre as minorias étnícas e entre as comunidades imigrantes.
Ocasionalmente, o foco saía dos pequenos trabalhadores e ia para aspectos associados - alojamentos miseráveis, escolas decrépitas e quase vazias, outros membros das referidas comunidades.

Na sua viagem de anos por essa América omissa, cruzou-se várias vezes com um pequeno e singular grupo.
Nos registos refere-se a eles como "Bravas", "black portuguese" ou simplesmente "portuguese".

Ora esses "portuguese" tinham uma origem diferente dos outros "portuguese" que aparecem muito mais frequentemente nas suas fotografia do trabalho infantil. Esses outros provinham do território continental e das ilhas atlânticas, dos Açores sobretudo. Os "Bravas" eram também ilhéus, mas de outro arquipélago, de outro continente. Eram oriundos de Cabo Verde, muitos da ilha Brava, o que daria origem à designação que Hine usa.
Os cabo-verdianos, que acorriam às mesmas zonas atlânticas que a maioria dos imigrantes portugueses, eram igualmente empurrados pela  miséria ( maior em grau, decerto, a aridez das ilhas provocava fomes recorrentes) e concentravam-se na pesca e na agricultura, sobretudo na apanha de bagas. Foram a primeira comunidade  africana que emigrou deliberadamente para os Estados Unidos, e distinguiam-se, a fazer fé nalguns relatos de descendentes, por ser gente profundamente orgulhosa da sua origem e cultura.

Os habitantes de Cabo Verde constituíam uma singularidade no contexto colonial português, eram bastante  miscigenados, descendentes não só de povos africanos levados para as ilhas, nos tempos da escravatura, mas também de portugueses e de todo um conjunto de gentes de diferentes origens que aportava às ilhas, um importante ponto de abastecimento nas rotas marítimas. Embora não fossem exactamente considerados cidadãos (essa condição apenas lhes seria reconhecida em 1947), não estavam abrangidos pelas limitações do estatuto de indigenato e conseguiam mover-se com liberdade.  À semelhança dos libaneses que chegavam ao Brasil e ficavam conhecidos como turcos, pela soberania otomana no território, também os cabo-verdianos eram chamados de portugueses na América. 
Mas a questão rácica impunha uma separação.  Somando à discriminação naturalmente votada aos emigrantes não anglo-saxónicos, sofriam um preconceito acrescido pela sua origem africana, vivendo e trabalhando em condições piores ainda.

Lewis Hine, Barraca com sete portugueses,
Falmouth, Massachusetts, E.U.A.,Setembro de 1911
imagem obtida aqui


Lewis Hine, Barraca com sete portugueses(pormenor),
Falmouth, Massachusetts, E.U.A.,Setembro de 1911
imagem obtida aqui

Lewis Hine, Barraca com sete portugueses (pormenor),
Falmouth, Massachusetts, E.U.A.,Setembro de 1911 
imagem obtida aqui


Em Setembro de 1911, Lewis Hine realizou, na zona de Falmouth, no estado do Massachusetts, uma série de fotografias acerca das crianças que trabalhavam, juntamente com a família,  a partir dos três anos de idade, na apanha de bagas. Uma parte significativa era de origem portuguesa.  No meio destes, uma minoria das ilhas cabo-verdianas participava também na colheita. Uma das raras fotografias apenas com adultos capta a barraca minúscula, atolada de beliches rudimentares onde sete "portuguese", cabo-verdianos na verdade, viviam.

O abrigo , de cerca de 10 m2, continha 12 camas e encontrava-se imundo. Funcionava como alojamento para homens sem família, que não eram pagos senão no fim da temporada.


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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Recenseamento, Matrícula, Frequência

As relações entre Fotografia e legenda são alvo de análise há muito(Susan Sontag, por exemplo, escreveu umas valentes linhas sobre o assunto). Mas continuam a fazer-nos pensar.

Lewis Hine, no seu trabalho de denúncia do trabalho infantil, em inícios do século vinte, registava sistematicamente as circunstância que envolviam as suas fotografias. Fazia-o de uma forma magistral.
Com poucas linhas, os detalhes suficientes, traçava uma história que hoje conseguimos reconstruir e imaginar sem esforço, conjugando as suas imagens e as suas palavras.
Por vezes a coisa é romanesca, com vários personagens e enredos complexos. Outras vezes, tudo é clinicamente descritivo.

Na imagem abaixo, a legenda apenas amplifica o que pressentimos na imagem. O interior de uma escola segregada, miserável, para crianças negras, quase vazia, abre-nos a compreensão para o que não está lá. O que a legenda caracteriza com dados friamente apresentados:

"Recenseamento 27, Matrícula 12, Frequência 7. A professora espera ter 19 matrículas após o trabalho de colheita. O Tabaco mantém-os fora, há falta de braços."


Lewis Hine, Escola para negros em Anthoston,
Kentucki, E.U.A.
13 de Setembro de 1916
imagem obtida aqui


Lewis Hine,
Escola para negros em Anthoston (pormenor),
Kentucki, E.U.A.
13 de Setembro de 1916
imagem obtida aqui


Lewis Hine,
Escola para negros em Anthoston (pormenor),
Kentucki, E.U.A.
13 de Setembro de 1916
imagem obtida aqui

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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Um retrato não tão perfeito

Steve Schapiro,
Woody Allen a passear a sua formiga de estimação, 1964
imagem obtida aqui


Falei aqui desta imagem recentemente.
Foi feita no ano seguinte ao retrato de Ruth Orkin (ver Um retrato perfeito). No entanto, apesar de divertidíssima, é uma imagem muito mais presa ao tempo. Diz-nos muito de Woody Allen em 1964 e  menos do Woody Allen de hoje.
Ao contrário da fotografia de Orkin, que se furtou ao restrito com subtilezas e referências, este retrato é ilustrativo. Apresenta (com precisão fulminante, é certo) o momento do comediante, o seu tipo de abordagem nonsense e apalhaçada. Ilustra a persona excêntrica, insegura e patética que o nova-iorquino incorporou sobretudo nas suas actuações e filmes iniciais.

É um belíssimo retrato da personagem, não do homem. E Woody Allen sempre fez questão de tentar afastar a ideia de que a criatura que ostenta nas obras corresponde à sua personalidade.

Com menos sucesso do que desejaria.


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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Um retrato perfeito

A temática do retrato fotográfico é quase tão antiga quanto a própria técnica.
Inicialmente, a Fotografia socorreu-se das convenções da Pintura, mas depressa as possibilidades únicas do meio permitiram-lhe emancipar-se. O instantâneo fotográfico facultaria um outro olhar sobre a alma humana.

Teorias sobre como obter o retrato perfeito não faltam. Livros que as explicam também não.
Eventualmente não há O retrato prefeito. Há retratos perfeitos.

Fred Stein obtinha-os. Arnold Newman também. E não há maneiras mais diferentes de tratar o tema. Um trabalhava cirurgicamente sobre o rosto, o corpo, a postura e o movimento, com a agilidade da sua Leica (ou, quando muito, com uma Rolleiflex). O segundo, trabalhava sobre a identidade, o retratado era capturado com as referências visuais do seu trabalho, com as ferramentas, na sua casa. E fazia-o muitas das vezes com uma pesada câmara de grande formato.

Gosto bastante de Woody Allen.
Conheço-lhe vários retratos. Gosto bastante do que foi feito por Newman. O de Steve Schapiro diverte-me. Mas o seu retrato perfeito, para mim, foi feito por Ruth Orkin.

Data de 1963, e Woody Allen era então apenas um comediante e um escritor de gags para televisão.Não realizara ainda nenhum filme, não estreara peças e nem se sonhava com a complexidade de  referências  que a sua obra futura tomaria.
Mas este retrato consegue a proeza de tudo isso enunciar.

Ruth Orkin, Woody Allen no Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque, 1963
imagem obtida aqui
Há na imagem a ironia fina e triste que será característica da obra madura do nova-iorquino. Há igualmente o sentido de auto-exposição, da apresentação do seu corpo e dos seus trejeitos. 
E depois, há uma assumpção que é interessante por ser dada num retrato. 
Nos retratos ambiciona-se capturar a verdade psicológica do retratado. A imagem criada por Orkin e Allen subverte essa ambição. Este retrato confronta-nos com a construção de uma representação, e com essa natureza muitas evitada, e negada, do retrato enquanto construção.

À primeira vista temos um efeito cómico, com Woody Allen armado em mimo a replicar a pose do aristocrata  da pintura, mas o olhar sério deste destrói a comicidade óbvia.  E acabamos com um jogo que evidencia a impossibilidade de darmos aos outros uma representação que respeite plenamente as convenções.


Somos sempre patéticos quando comparados com aquilo que devíamos ser.

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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Se eu fosse um cavalo

O documentarismo social é uma corrente fotográfica que depende da existência dum olhar empático em relação aos seus sujeitos. Para o inglês Ian Beesley, esta premissa base nunca foi um problema. Quando começou a fotografar o operariado britânico, espécie em vias de extinção nos finais do século vinte, não o fazia com o olhar de um estranho. Não o fazia porque, pura e simplesmente, era um deles.

Concluíra a sua escolaridade básica em Bradford, em 1972, sem ter tido acesso a qualquer tipo de formação artística, vítima de um ensino e de um sistema de opções orientado para uma certa visão de sociedade. Aos filhos de operários, futuros operários, não se via qualquer necessidade de lhes alimentar devaneios culturais.

Após os estudos básicos fora trabalhar para uma fábrica têxtil,  depois para uma fundição e, finalmente para a central municipal de tratamento de resíduos de Esholt , em Bradford. Foi a trabalhar aí que conseguiu juntar dinheiro para comprar a sua primeira câmara. E foi aí que começou a usá-la, retratando o local e os seus colegas.

Estranhamente, foi também em  Esholt, num ambiente que classifica hoje de dickensiano, rodeado de sujidade e de gente endurecida pela vida, que encontrou estímulo para seguir adiante. Bob Rowell, o capataz da equipa em que estava integrado, um homem duro, sem paciência para ronhas, que combatera na segunda guerra mundial e que a cada momento demonstrava que a inteligência não dependia da escolaridade, disse-lhe, olhando para as suas primeiras imagens, que quem fotografava assim devia esforçar-se para entrar numa academia de artes. E todos os outros concordaram que não devia ficar encalhado alí.

Apesar da ausência de uma formação específica, o portefólio que elaborou então conseguiu convencer o júri de admissão do Bradford Art College. E Beesley cumpriu o vaticínio dos seus colegas. O operário de  Esholt tornou-se um fotógrafo. Um fotógrafo com um olhar muito agudo sobre as realidades sociais.

Ian Beesley, Capataz após receber carta de dispensa,1977
imagem obtida aqui
Pouco tempo depois, em 1977, Ian (que não perdera o contacto com os seus antigos camaradas) soube que a central ia fechar.
Retornou de imediato para registar a ocasião e o lugar. Nos balneários, encontrou Bob Rowell sentado. Pensou que estivesse a descansar e fotografou-o. Ouvindo disparo da câmara, o homem olhou para cima e Ian Beesley pôde perceber que Rowell estivera a chorar.
Perguntando o que se passara, obteve como resposta que, após trinta anos de serviço, o velho capataz acabara de receber a carta de dispensa. " É o fim. Se eu fosse um cavalo, davam-me um tiro", disse-lhe Bob.
Quando Beesley se desculpou por o estar a fotografar nesse momento, este disse-lhe que não tivesse problemas. Fotografar era agora o seu trabalho.

Leia mais neste artigo do Guardian.

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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Brandos costumes (10)

No meio da amnésia colectiva que se apoderou dos primeiros quarenta anos do século vinte português, um dos aspectos recorrentes é a assunção de que nada de significativo ocorreu, excepto o episódio da implantação da República, e que tudo o mais se resumiu a um jogo político de intrigas palacianas e partidárias que culminou no Estado Novo.
Mas uma olhadela para os registos factuais, demonstra uma realidade diferente.
Não só as conspirações extravasavam para os movimentos civis, como a componente militar era bastante activa e determinante. As revoltas e as  insurreições não eram episódios de excepção, e não se limitavam a desfiles combinados do quartel ao governo.

Mário Novais, Revolução do Castelo,
Lisboa, 20 a 27 de julho de 1928
imagem obtida aqui

Umas características mais dramáticas  das revoltas era a utilização de armamento pesado em meios urbanos. A tomada  dos pontos privilegiados para a colocação de artilharia, como as colinas de Lisboa ou a Serra do pilar, em Vila nova de Gaia, era uma prioridade em muitos dos levantamentos. E o seu uso ocorreu sem grandes pruridos, por vezes de forma continuada.

As fotografias de Mário Novais da chamada Revolução do Castelo ilustram bem essa componente pouco branda da história do país.

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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Retorno


Ernst Haas, Soldado em retorno, 
Viena, Austria, 1946-1948
imagem obtida aqui

Há imagens que carregam em si o imenso potencial de se tornarem simbólicas. E há, é claro, fotógrafos que têm a clarividência de as antecipar e de as capturar.

Ernst Haas, austríaco, não participou na estranha euforia que tomou de assalto muitos dos seus compatriotas, quando as tropas de Hitler consumaram a anexação do país, em 1938.

Historicamente autónomo e multi-cultural, o estado austríaco lidara muito mal com perda do império após a primeira guerra mundial, e entrara numa deriva autoritária. Falhada uma tentativa de seguir o modelo de Mussolini, pela acção do partido social cristão do chanceler Dollfuss, o país acabaria por ver a acção dos nacionais socialistas austríacos (que entretanto haviam assassinado Dollfuss, num golpe de estado falhado) ser premiada com a entrada, sem resistência significativa, das tropas alemãs.
A orfandade do império foi compensada com a integração na grande família alemã nacional socialista, e a avaliar pelas fotografias coloridas de Hugo Jaeger da recepção a Hitler, em Viena ( ver A verdadeira causa de espanto), tal terá acontecido com apoio entusiástico de uma grande parte dos austríacos.

Mas Haas não terá feito parte da turba em semi-transe que recebeu o Führer nas ruas da capital. Como bastantes austríacos, não se enquadrava no padrões de pureza ariana que a nova situação exigia. A sua ascendência parcialmente judaica rapidamente lhe trouxe consequências, desde várias exclusões do sistema de ensino até à feliz não incorporação no exército.

A sua imagem, a preto e branco, do soldado estropiado que retorna, alguns anos após o fim da guerra, e que, hesitante, nada parece ter à sua espera, funciona como um triste contraponto do delírio que fora a aventura nazi retratado por Jaeger, quase dez anos antes. E funciona igualmente como uma metáfora da Europa do imediato pós-guerra, antes do Plano Marshall.
Estropiada também ela, esperava hesitante, sem planos e sem direcção, o retorno à normalidade.

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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

ONTOS: Ninho perturbado

Gosto bastante de algumas imagens de Maggie Foskett. Gosto do seu processo.

Há cerca de vinte anos, à medida que a idade a ia atropelando aos poucos, a agora nonagenária americana começou a construir pequenos cosmos que recolhia em passeios junto a sua casa. Remete ela a origem desta abordagem para a sua infância nos matos do Brasil, em que nas férias escolares calcorreava incessantemente o campo, sempre com atenção ao que se lhe aparecia pela frente ou por debaixo dos pés. E ali havia que ter cuidado onde se punha o pé, há coisas que não se quer pisar, ou que simplesmente não se quer deixar de ver.

Essa atenção ao mundo das pequenas coisas e o processo que usa (uma adaptação do cliché verre) unem-se numa simbiose funcional. Pequenos grãos, asas de insecto, folhas, secções de vegetais, tudo ensanduichado entre duas pequenas chapas de vidro, transfiguram-se pela ampliação e pela acção da luz. O insignificante e o banal são intensificados e transformados. Há algo de revelação, de epifânia, nos seus melhores trabalhos.
Foskett associa esta alteração ontológica ao processo científico, ao seu questionar metódico e à introdução de um novo olhar que transforma o insignificante na explicação de uma parte do universo.

Nem sempre as suas imagem passam por uma grande ampliação, por uma abordagem declaradamente microscópica. Aliás, em nada o trabalho de Foskett se liga com o comum universo da Fotografia macro que enche revistas e sites de aficionados da Fotografia.

As suas fotografias não explicam. Não são cartesianas, resolvendo o todo pela somas das suas pequenas partes. A sua aproximação à ciência é metafórica e poética.


Maggie Foskett, Ninho perturbado, 1996
imagem obtida aqui


Em "Ninho perturbado", de 1996, posso pressentir a perturbação do Mundo, a dureza da Existência. Mas não me peçam para explicar porquê.

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