quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A família Andrade

Aproxima-se do seu termo uma belíssima, muito interessante e invulgar exposição do Museu Municipal de Tavira / Palácio da Galeria - A família Andrade, olhares sobre Tavira. Poderei ser suspeito na apreciação que fiz por, apesar do meu nascimento e primeira infância em latitudes bem mais meridionais, me identificar com a terra onde cresci e vivo, e onde radica a minha família materna. Mas creio serem verdadeiros os méritos desta mostra do Palácio da Galeria.
O título da exposição poderá parecer sugerir  uma dessas exposições locais, pitorescas e olhando para o umbigo de uma povoação. Mas tal impressão é profundamente falsa. Centrada decerto num facto local, a permanência na cidade de uma família de fotógrafos durante várias gerações, a verdade é que acaba por nos dar uma fabulosa visão diacrónica da Fotografia, dos seus aspectos técnicos, estéticos, comerciais e sociais.
Reside aí a invulgaridade de A família Andrade, olhares sobre Tavira. Fugindo dos padrões mais comuns das mostras fotográficas, centrados em aspectos autorais ou temáticos, apresenta-nos a história da Fotografia comercial em Portugal, desde a fixação dos fotógrafos itinerantes ( a forma profissional mais corrente no século dezanove) à transição do negócio para o paradigma digital. Observa-se a evolução dos equipamentos e materiais fotossensíveis, da chapa de vidro (com emulsão de gelatina e sais de prata)  e da pesada câmara de madeira assente em tripé ao quiosque de impressão digital, passando pelas câmaras reflex e de médio formato, pelas películas de 35 mm a preto e branco e a cores, pela iluminação de estúdio e pelo laboratório minilab. Mostra-nos a evolução dos modelos que estruturaram a prática e a acessibilidade da fotografia, do retrato formal e pesado, cheio de adereços e cenários pintados ( à maneira do francês Disdéri), em que a quase totalidade do processo fotográfico era controlada pelo fotógrafo,  à fotografia do it yourself, da era do telemóvel e do facebook, em que o profissional apenas fornece o equipamento para as raras impressões. Apresenta-nos aspectos menos conhecidos, ou quase esquecidos, do retoque e coloração das impressões e da impressão por contacto à fotografia obituária.
E faz isto ( e mais) mostrando-nos a História recente de uma cidade ( e, na verdade, a de um país), desde o tempo em que a fotografia era apenas acessível a uns poucos até à actualidade, em que de tão acessível se torna desmaterializada e menos significativa ( veja-se o quase desaparecimento do hábito de manter álbuns familiares). Vê-se a evolução das indumentárias, dos hábitos, das forças sociais. Vai-se de uma sociedade fortemente estratificada, com grupos sociais visivelmente separados pela roupa e pela postura, da presença constante da forças armadas (natural em Tavira pela presença de um quartel, mas não incomum no resto país no período pós Primeira Guerra Mundial), a uma sociedade democratizada e muito mais uniformizada nos comportamentos e aparência. Pelo meio passa-se pelo Estado Novo, com a inevitável visita de Américo Tomás, acenando aos populares de uma posição elevada, e os postais de um Portugal típico com chaminés algarvias, carroças e burros. E pela Guerra Colonial, um conflito pouco fotogénico por vontade oficial e em que as imagens de Luís Andrade permitem um dos raros vislumbres que vão além da foto do soldado-fotógrafo-amador, das poses para a família e das curiosidades bélicas ou africanas.
A exposição resulta de uma óptima iniciativa do Museu Municipal de Tavira/Palácio da Galeria e do seu quadro, de uma investigação histórica de Rita Manteigas que é apresentada no catálogo da exposição, e sobretudo do cuidado e da capacidade de preservação de um espólio fotográfico espantoso, demonstrados pela família Andrade, numa atitude rara e que nos enriquece a todos.

Família Andrade, Militar, Tavira, 1920-1940
imagem obtida aqui

A exposição termina a 7 de Janeiro de 2012, e se ainda não a viu dê corda ao sapatinho. Vale bem a pena.

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domingo, 18 de dezembro de 2011

Com as vacas

Depois de dois textos sobre dirigíveis ( recentes, que há um outro mais antigo), sobre a seriedade do seu papel bélico e do optimismo exagerado quanto ao seu futuro, apresento agora uma imagem de contraponto, mais divertida.

Autor não identificado, R101 com vacas,
cerca de 1929, Grã-Bretanha
imagem obtida aqui

A fotografia é britânica e apresenta o R101, uma grande aposta do Reino Unido, em cenário bucólico pairando e sombreando vacas que pastam. Desconheço as intenções do fotógrafo (aliás, desconheço o fotógrafo) mas aparece aqui uma das formas mais comuns de criar humor, colocar em conjunto duas coisas que se contradigam e fazê-lo de forma a que pareça natural.
A imagética mais corrente da época faz associar os dirigíveis a coisas que os liguem ao progresso. Apresenta-os em gigantescos hangares, eles próprios exemplos notáveis dos progressos da engenharia, regista-os a flutuar sobre as notáveis e novas cidades de arranha-céus. Os ângulos são oblíquos, sugerem movimento. Nada disso aqui acontece. A coisa paira sobre vacas que, como é natural nestes bichos, pastam indiferentes e pachorrentas. A torre de ancoragem não é um estiloso espigão Art Deco, como o que pontua o edifício Empire State de Nova iorque, assemelha-se antes a um rústico depósito de água.  A imagem capta o engenho num ponto de vista perpendicular ao seu comprimento, o que acentua o carácter estático da cena. Este dirigível parece dizer que o seu destino não é ligar os pontos mais distantes do império britânico, que o seu futuro não é levar a lado algum. É antes ficar ali. A pairar, com as vacas.

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Desastre em construção

Quando se fala em dirigíveis vêm-nos de imediato à memória os Zeppelin, as aeronaves alemãs que carregavam o nome do criador do conceito, o conde Ferdinand von Zeppelin. Inventados e patenteados em finais do século dezanove, os dirigíveis pareciam, nas primeiras décadas do século vinte, ser a aposta certa no que diz respeito ao transporte aéreo em longas distâncias. As desconfortáveis e pouco fiáveis máquinas voadoras dos irmãos Wright e sucessores pareciam mais coisa de aventureiros que um promissor negócio de viagens.
Porém, nesse período, não foram apenas os alemães, pela mão do sucessor do falecido Ferdinand von Zeppelin, o dr. Hugo Eckener, a desenvolver grandes projectos de naves mais leves que o ar. Os americanos, nos finais da década de vinte, através de um ramo da corporação GoodYear, desenvolveram uma linha para a marinha americana.Os britânicos, ainda antes, desenvolveram a partir de 1925, por iniciativa  governamental liderada pelo ministro do ar, Lord Thomson, o seu próprio projecto orientado para ligar o extenso império britânico.

autor não identificado,
Dirigivel R101 durante a construção, cerca de 1928,
Cardington, Inglaterra
imagem obtida aqui


A imagem da construção do R101, um dos dois grandes dirígiveis do programa britânico, parece insuflada de orgulho e optimismo. O invulgar contrapicado e a temática industrial transporta-nos para o universo construtivista e para o imaginário fotográfico de Rodchenko.

Este optimismo seria trágicamente desmentido pela realidade. A aparente segurança e fiabilidade que a placidez do voo e o conforto das cabines transmitiam revelou-se profundamente enganadora.
Quando se fala no fim da era dos dirígiveis é recorrente a referência ao acidente de 4 de Março de 1936, do  LZ 129 Hindenburg, em Lakehurst, onde morreram 35 pessoas. No entanto, esse não foi nem o primeiro nem o mais mortal dos acidentes com dirigíveis. Três anos anos antes o americano ZRS-4 USS Akron, depois de três acidentes menores, despenhara-se no mar matando 73 homens. E o R101 da imagem, acabaria por colapsar durante a viagem de longo curso inaugural, sobre a frança, em Outubro de 1930.  A bordo e a caminho da Índia, seguiam as altas figuras do estado envolvidas no projecto incluindo Lord Thomson, que não sobreviveria ao acidente. Dos cinquenta e quatro ocupantes do R101, apenas oito escaparam com vida ao despenhamento em solo francês.

A desgraça do LZ 129 Hindenburg não foi a primeira, nem a mais fatal, mas o facto de ter sido registada em fotografia e em filme acabou por ajudar a pôr termo a uma teimosia que, alicerçada no optimismo inicial dos projectos, se recusava a aceitar a extrema fragilidade das naves. E mesmo assim a coisa não seria imediata. A iniciativa alemã continuou em bases menos ambiciosas, e já não transatlânticas, sendo apenas cancelada quando, durante a segunda guerra mundial, o duralumínio das estruturas passou a ser requisitado exclusivamente para os aviões. Esses sim, foram a aposta ganhadora.
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Morte despejada sobre Hull

Ouve-se dizer, por vezes, que os bombardeamentos aéreos sobre as cidades republicanas, durante a guerra cívil espanhola, foram um primeiro ensaio para essa  forma de mortícinio urbano (técnica mais de desmoralização cívil do que de combate verdadeiramente militar) que atingiria a sua maturidade na Segunda Guerra Mundial, poucos anos depois.
Porém tal não é exactamente assim. Se é certo que no conflito espanhol se ensaiariam os procedimentos de bombardeamento concentrado e massificado que desfigurariam Londres e destruiriam Dresden, a verdade é que o momento primeiro da técnica se dera muito antes, durante a primeira mundial.
A escala e a intensidade não foram as mesmas (nenhuma cidade britânica foi significativamente destruida), e a tecnologia não era a mesma. Em 1915, os aviões estavam na sua infância, eram geringonças de madeira, arame e tela. Os motores de combustão eram arcaicos, ineficientes e pouco fiáveis. O seu peso elevado consumia grande parte da capacidade de sustentação que a aerodinâmica incipiente de então fornecia, e a autonomia possível impossibilitava grandes raides transfronteiriços. Em contrapartida, a tecnologia das aeronaves mais leves que o ar encontrava-se já praticamente na sua maioridade.Os dirigíveis, sobretudo os alemães, ofereciam um contraponto notável em termos de fiabilidade, autonomia e capaciadade de carga. E não foram dispensados na primeira verdadeira guerra industrializada.
Na manhã de 19 de Janeiro de 1915 partiram de Fuhlsbüttel, na Alemanha, dois dirigíveis Zeppelin, o L3 e o L4. Preparados para trinta horas de voo, carregavam cada um 8 bombas e 25 engenhos incendiários. Tinham como plano atacar instalações industriais e militares em localidades na linha costeira de Norfolk. Depois de cruzado o canal, e atingida a costa inglesa, os aparelhos que até então tinham seguido juntos, separaram-se. O L3 seguiu para norte e atacou King's Lynn, ao passo que o L4 rumou a sul e bombardeou Great Yarmouth. Os danos provocados poderiam ser classificados como muito limitados, nove mortos e alguns edifícios danificados, mas este ataque teve um impacto enorme na população britânica. Até então esperava-se que a guerra se travasse à distância, nos campos de batalha do continente. Quando a morte foi súbita e silenciosamente despejada sobre o território inglês, passou a não haver um lugar totalmente seguro, a invasão alemã começou a parecer eminente e a moral foi tremendamente afectada.
Diz-se que o imperador alemão autorizara este primeiro ataque na condição de que natureza dos alvos fosse a descrita e de que a cidade de Londres não fosse visada, por temer que a família real britânica (à qual estava unido por laços de parentesco) fosse atingida. Este pejo inicial rapidamente seria ultrapassado e Londres, tal como outras grandes cidades inglesas, não escaparia aos Zeppelin nos anos de 1915 e 1916.


Autor não identificado,
Danos do bombardeamento em Porter street,
Hull , Junho de 1915
imagem obtida aqui


Em 16 de Junho de 1915, o dirigível L9 viu-se impossibilitado de chegar a londres por acção de vento contrário, e a (má) sorte calhou à cidade portuária de Hull, onde seria largada a carga destrutiva destinada à capital. Em resultado, contar-se-iam 24 mortos e vários armazéns e casas destruídos.
A fotografia dos danos em Porter Street permite-nos um vislumbre sobre o impacto destes ataques.
A imagem constroi-se a partir de um ponto de vista situado num interior, o que de imediato facilita uma identificação do observador com os habitantes do espaço destruído. Depois, observa os danos de uma forma subtilmente certeira. Fá-lo centrando a atenção sobre as vítimas que, conformadas mas ainda em espanto, observam a destruição que lhes foi infrigida. Paira sobre a fotografia uma sensação de impotência que reflecte os factos desse  junho de 1915.
Incapazes de enfrentar os dirigíveis que atacavam silenciosamente, do nada, sem armas eficazes, os populares tiveram como única reação um acto inútil. Turbas juntaram-se, destruiram e pilharam tudo o que tivesse um nome que soasse a alemão, como a loja Kress and Wagner.

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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O presidiário 4100

Foi relativamente rápida a absorção da Fotografia, enquanto ferramenta, pela burocracia. Se, no início, as limitações técnicas do daguerreótipo e do calótipo inviabilizavam um uso corrente, com o aparecimento e a expansão do processo do colódio húmido a situação altera-se. A título de exemplo, e usando dois casos já aqui abordados neste blog, o corpo de engenharia do exército britânico ( os Royal Engineers) inicia na década de sessenta de oitocentos uma secção fotográfica (cuja formação inicial esteve a cargo de um civil, Charles Thurston Thompson, o fotógrafo oficial do South Kensington Museum), em que as missões iniciais eram sobretudo de carácter burocrático, centradas na reprodução de documentos. O South Kensington Museum é outro caso em a fotografia é convocada de forma pioneira para o registo e catalogação, tendo o referido Charles Thurston Thompson realizado cerca de 10.000 fotografias com esse fim.
A voragem da Burocracia, máquina autofágica e em constante expansão, e um determinado espírito científico positivista (que acreditava que registando tudo, tudo poderia ser explicado e controlado) faria que os aparelhos judicial, policial e médico, começassem a apreciar a possibilidade de cadastrar sistematicamente os seus objectos de trabalho - réus, suspeitos, doentes, dementes, cidadãos nas franjas da normalidade.
Estas fotografias instrumentais, produtos de uma rotina de registo, acabam por funcionar como pequenas máquinas do tempo. Transportam-nos para a sua época, revelam-nos a radical diferença entre o conceito de normalidade do presente e o desse passado, apesar de tudo, relativamente próximo.

É muito comum a referência ao aparecimento de uma cultura adolescente no pós segunda guerra mundial. Previamente a esse facto, a transição entre a infância e a idade adulta não comportava um hiato, uma espécie de limbo mais ou menos longo, entre estes dois estágios de da existência. A passagem de um estado para o outro era, de certa forma, abrupta. Em certas cultura, o momento era (e é ainda, nalguns casos) marcado por um ritual de iniciação ou um outro acto de natureza simbólica- Na Africa do sul, entre os zulus e os Xhosa, a circuncisão dos jovens marca esse momento; noutros lugares, entre outros povos, uma festa promovida pelos parentes marca o momento em que se transita para a esfera dos adultos (caso dos judeus, com o Bar Mitzvah).
Menos abordada é, no entanto, a questão do estreitamento da faixa etária entendida por infância. A infância era historicamente uma fase pouco valorizada no Ocidente. Por um lado, a elevada mortalidade infantil e a elevada natalidade ajudam a explicar o relativamente reduzido investimento que se parece poder depreender da análise de fontes anteriores ao século XIX. Por outro lado, as difíceis condições de vida impunham aos sobreviventes da infância a rápida assumpção de responsabilidades hoje consideradas próprias de adultos, fossem as de simplesmente prover ao sustento familiar, fossem até as de iniciar uma carreira militar.
A inimputabilidade das crianças, a fase não responsável, estava longe de ser estendida aos actuais dezasseis anos, a fronteira legalmente definida na maior parte dos países ocidentais. O culto da infância, período mágico e lugar da inocência, começa a definir-se no século dezanove, e faz-se de forma claramente dual. A proliferação de romances e peças teatrais com heróis infantis que se verifica nesse século, contrasta com a atitude maioritariamente indiferente perante a exploração do trabalho infantil, o abuso físico e inexistência de cuidados dedicados. O fascínio burguês do século dezanove pelas crianças é eminentemente literário e classista. O direito à infância é estabelecido então apenas para as crianças de origens abastadas. Às outras estava-lhes destinado, sem escândalo, o trabalho, a ignorância e a dificuldade. Um exemplo: enquanto a burguesia inglesa e internacional percorria embasbacada o Palácio de Cristal, na Grande Exposição de Londres, em 1851, um pequeno exército de crianças percorria acocorado, por baixo, o espaço exíguo existente entre o soalho e solo, apanhando as beatas e os detritos, para prevenir incêndios e infestações.

Autor não identificado, George Davey, Londres, 1872
imagem obtida aqui


A fotografia de George Davey, de 1872, transporta-nos de forma dura para essa realidade. O sistema penal britânico, por aquela altura, evoluira já bastante relativamente ao século anterior, altura em que, para qualquer crime, a pena se resumia à forca ( ou à alternativa deportação para as colónias, nos casos de crimes que não envolvessem morte). Porém, para os padrões actuais, apresentava ainda punições particularmente pesadas, e a imputabilidade dos réus parecia quase não ter limites. Davey, um miúdo de dez anos, roubou dois coelhos. Apanhado e presente a tribunal, acabou condenado a um mês de trabalhos forçados. 
Pena que cumpriria na prisão de Wandsworth, um estabelecimento que começara em 1851 por ser um edifício modelo, construído segundo os princípios da panóptica, com 400 celas individuais dotadas de instalações sanitárias. Quando George Davey é condenado, já a situação se alterara radicalmente. As latrinas haviam sido removidas das celas para ganhar espaço extra para uma população prisional que não parava de aumentar. O miúdo seria fotografado para registo com o número 4100.
O tratamento dado a Davey estava longe de ser excepcional, quer na pena quer na idade da vítima. Observando-se os documentos dos National Archives, da Grã-Bretanha, verifica-se que crianças mais novas ainda eram sujeitas a prisão repetidas vezes pelo crime de vagabundagem ( não ter lar era uma malfeitoria grave) , que a chicotada antecedia por vezes os trabalhos forçados e que à prisão se seguia amiúde o reformatório, instituição tenebrosa e livre de decisão judicial. Oliver Twist de Charles Dickens não é, de todo, uma obra fantasiosa.
Abstraindo-nos um pouco do contexto, e centrando-nos na imagem, impressiona o rosto de George Davey. Uma face que parece evidenciar muito mais que os dez anos que tinha no momento do retrato. Impressiona igualmente a expressão triste do rapaz. Lembra o esgar recorrente de Buster Keaton, o actor de cinema mudo americano (em Portugal e Espanha chamavam-lhe Pamplinas), cujas personagens sofriam todas as desgraças com uma desolação impassivel. Desconheço o resto da biografia de George Davey, mas ao Pamplinas nada corria bem.

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Uma mascarada maior

O uso de gás nas frentes de combates da primeira guerra mundial provocou um enorme choque.
Primeiramente fê-lo entre os próprios militares. Nenhuma outra arma demonstrava de forma tão absoluta a desumanidade daquela guerra. Com o gás que deslizava pelas trincheiras desapareciam todas as noções românticas e romanescas associadas ao ofício militar, não havia bravura alguma em morrer asfixiado por um inimigo quase invisível, não havia baioneta ou pistola que valesse, o gás era um inimigo sem corpo. E era uma arma cega, difundia-se pela acção do vento. Não raras vezes, por súbitas alterações atmosféricas, surpreendia as tropas do lado que lançara o ataque. Provocava uma morte dolorosa, muitas vezes lenta, e deixava aos sobreviventes mazelas duradouras, nas vias respiratórias, na vista e na pele. O terror que provocava fez nascer uma nova palavra no léxico popular, o termo “gaseado”. Embora tenha agora caído em desuso, foi muito comum até aos anos oitenta e noventa (curiosamente, ou talvez não, o seu uso coincidiu com o tempo de vida dos veteranos portugueses da chamada Grande Guerra) e servia para designar alguém que apresentava comportamentos irracionais ou perturbações mentais.
A primeira guerra mundial provocara, pelas suas condições específicas (um condicionamento forçado de milhares de homens num espaço diminuto, sem as mínimas condições de vida, e com a quase certeza estatística de uma morte, fosse por bombardeamentos aleatórios, ataques de gás ou avanços verdadeiramente suicidas frente às metralhadoras e morteiros inimigos), o aparecimento invulgarmente alto de soldados incapacitados por problemas psíquicos. Inicialmente, o fenómeno foi lidado com a brutalidade que se esperaria das incompetentes chefias de então, que associavam estas debilidades dos soldados à cobardia. Nalguns contingentes, nomeadamente o francês, tentou-se resolver a coisa, antes que alastrasse, com o rápido e exemplar fuzilamento dos soldados. O que obviamente não resultou, e levaria a que finalmente a histeria do combatente fosse equacionada como uma questão médica.
Os problemas mentais não eram necessariamente uma sequela física do gás, muitos dos doentes não tinham sido vítimas desse tipo de ataque específico, mas o facto é que no imaginário popular os soldados que retornaram da frente da Flandres alterados só poderiam estar assim por acção de algo profundamente diabólico. E o gás era o candidato perfeito.
Entra assim o gás de forma fulgurante na consciência pública, depois de o ter feito na vida militar, como símbolo do terror da guerra moderna. Na eminência de uma guerra nos países ocidentais aparece geralmente o fantasma da guerra química, e para sossegar as populações são comummente usadas as máscaras de gás como recurso. As máscaras eram, e ainda são, usadas como um conforto psicológico. O veneno gasoso das trincheiras era cego e retirara qualquer papel activo à vítima. Com as protecções respiratórias pretende-se restituir a acção. Devolve-se ao indivíduo a capacidade de proteger-se e de resistir. A imagem da máscara fornece a ilusão (é disso que se trata, a eficácia real de muitas máscaras é na verdade mínima) de uma possibilidade de normalidade. Fazem-se máscaras para os soldados e para os civis, para adultos e para crianças, para humanos e para animais, para animais de estimação e para bestas de carga. Antecipando guerras, distribuem-se e com elas faz-se um simulacro de segurança, encena-se uma vida normal com o gás. Na antecâmara da segunda guerra mundial, na Europa e nos Estados Unidos são recorrentes os exercícios em que os envolvidos fingem exercer actividades regulares apenas com as máscaras, vão à escola de máscara e trabalham na fábrica com esse novo equipamento.
No primeiro trabalho que realiza para a revista LIFE, Marie Hansen fotografa em 1942 a actividade de um campo de treino das WAACs (Women Army Auxillary Corps), um corpo feminino e auxiliar do exército americano. Aí regista uma dessas situações em que se comprova que o irracional e o inverosímil se introduzem sorrateiramente no quotidiano (e onde, apesar de óbvios, parecem permanecer indetectados) - filas e filas de jovens mulheres, fardadas e sentadas, aguardam compostas e com aparente naturalidade enquanto usam o equipamento de protecção respiratório e ocular.

Marie Hansen, Rows of WACS with Gas Masks , 1942
imagem obtida
aqui


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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma mascarada

A primeira guerra mundial confirmou algo que a guerra cívil americana já evidenciara: a natureza da guerra alterara-se significativamente com o progresso industrial.
Na guerra da secessão dos Estados Unidos, com a maior cadência de fogo das armas modernas e a insistência em práticas militares arcaicas, como o avanço em linha para as posições inimigas, as taxas de sobrevivência dos combatentes desceram para níveis espantosamente baixos. Na primeira grande guerra, aproximadamente meio século depois, as mentalidades das chefias militares não se modificara de forma assinalável, viviam ainda em quadros mentais muito próximos das guerras napoleónicas. O mundo mudara muito, porém. As armas eram muito mais potentes, mais precisas, e muitas inovações na arte de matar haviam aparecido. Este desenquadramento entre tácticas e armas haveria de ser profundamente desastroso. A matança tornara-se industrial, o morticínio cifrar-se-ia pelos milhões.
Este desenquadramento vivia-se igualmente ao nível da mentalidade das elites. Muita da aristocracia e da burguesia partia para a guerra imbuída de um espírito de galanteria e de panache (em certa medida, sofria de uma espécie de complexo de D. Quixote). Nalguns círculos, como era o caso dos futuristas, louvava-se inclusivamente o poder regenerador, purificador, dessa nova guerra que haveria de ser mecanizada e regular, enfim, moderna. O choque com a realidade acabaria por ser brutal e encheria de sobreviventes com perturbações mentais os hospitais militares.
Os governos envolvidos e os seus exércitos experimentavam novas armas, testavam as sua características e documentavam-nas. A imagem abaixo, proveniente dos National Archives da Grã-Bretanha apresenta-nos um equipamento respiratório, desenvolvido pela secção de combate nas trincheiras do Ministério das Munições, para uso em caso de ataque com gás. A fotografia foi feita obviamente longe da frente de guerra, e parece permanecer nela, pela pouca praticabilidade do aparato e pela postura do modelo, um pouco dessa atitude blasé em relação aos combates. A coisa parece uma pausa num musical cómico de Gilbert e Sullivan. Aos cavalheiros britânicos da era eduardiana era suposto combaterem valentemente, mas não só. Tinham que fazê-lo com compostura e pausa para o chá.


Autor não identificado,
Equipamento respiratório para ataque de gás,
1914-1918
imagem obtida aqui


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domingo, 20 de novembro de 2011

Do homem que inventou o Postal de Natal


Quando  Henry Cole decidiu, no Outono de 1843, pressionado pelo seus múltiplos afazeres e pela decorrente incapacidade de escrever uma missiva de Natal personalizada a todos os seus conhecidos (conforme era esperado de um cavalheiro inglês), mandar imprimir cartões com imagens alusiva à quadra, estava longe de saber que, com este pequeno facto da sua vida, iria ficar marcado para a História como o Homem que inventou o Postal de Natal.

Lock&amp & Whitfield, Henry Cole, cerca de 1877
imagem obtida aqui

O primeiro Postal de Natal,
desenho de John Calcott Horsley
por encomenda de Henry Cole,
1843

imagem obtida aqui


Pode-se pensar que há algo de irónico nesta associação a uma criação que parece um hino à preguiça (o postal de Boas Festas do século XIX era algo como as actuais mensagens SMS e os memes de facebook, pré-elaborados e iguais, que milhões de pessoas insistem em trocar si, no Natal e Ano Novo) quando, analisada a sua vida e a sua obra, se verifica que Henry Cole seria tudo menos alguém que divinizava o ócio. Mas, na realidade, a invenção do Postal de Natal que lhe é atribuída revela verdadeiramente uma faceta marcante da sua personalidade - a capacidade de cumprir objectivos e de realizar tarefas, independentemente das dificuldades, e nem sempre da forma mais convencional. Na casa dos seus vinte anos encabeçou uma campanha visando a melhoria das condições dos arquivos do governo britânico, onde trabalhava desde a adolescência, não hesitando em apresentar publicamente uma das muitas ratazanas que povoavam esses serviços. Enquanto comissário da Grande exposição de Londres, de 1851, pressionado pelos prazos curtíssimos, atribuiu o projecto não a um arquitecto com devaneios neopaladianos ou neogóticos, mas a um construtor de estufas relativamente desconhecido, Joseph Paxton, que concluiu a tempo um fabuloso e monumental edifício de vidro e aço – o Palácio de Cristal, objecto fundador duma nova estética arquitectónica industrial.

Cole era um verdadeiro rolo compressor quando se tratava de ultrapassar obstáculos, contornar problemas, fazer o que parecia impossível. Diz-se que entre a família real britânica ( a sua figura é fortemente associada ao príncipe consorte Albert, esposo da Rainha Victoria, patrono das artes e defensor da educação artística) corria um adágio que, fazendo um trocadilho ente Cole e coal (carvão), afirmava “ If you want steam, you must have Cole”. Tendo em conta que se estava na Era da máquina a vapor, e traduzindo de forma não literal (e atabalhoada como é meu hábito), temos algo como “ Se queres energia, tens de ter o Cole”. Henry Cole era o homem que punha as coisas a andar, por mais pesadas que fossem, e as fazia acontecer.

Henry Cole, embora não seja um dos nomes mais populares quando se vai buscar algo ao baú oitocentista da Cultura e das Artes para impressionar, é uma das personalidades mais notáveis do período e a sua acção marcará profundamente a cultura erudita e popular, o ensino e a divulgação das artes e desenvolvimento da indústria. Associou a sua formação artística a uma longa carreira de servidor público (iniciada, como vimos, com uma árdua defesa dos Arquivos britânicos), a sua faceta de editor, divulgador e teórico de uma nova estética industrial à de projectista , as suas capacidades de gestão de grandes projectos públicos à defesa da reforma do ensino artístico.

Cole foi igualmente fotógrafo, o que dadas as condições técnicas da época, comprova a irrequietude laborosa, intelectual e estética do homem. Fotografar na década de cinquenta de oitocentos era um acto quase heróico, que envolvia o fabrico dos suportes e das emulsões, o carregamento de câmaras de madeira pesadas, e o confronto com um enorme grau de incerteza relativamente ao resultado final.
Mas a relação de Henry Cole com a Fotografia não se esgota no seu exercício pessoal da técnica. Eventualmente, este será até um aspecto algo secundário.
Quando na sequência da Grande Exposição de Londres de 1851 ( a exposição que inaugurará a era das Exposições Universais), que geriu magistralmente e que foi um enorme sucesso popular e comercial, lhe foi facultado um fundo para a criação de uma colecção com os objectos mais notáveis que aí foram expostos, e com outros que fossem projectados com igual qualidade, Henry Cole inicia um processo que culminará na criação de um novo museu. Este terá alguma dificuldade em se auto-categorizar , fosse de arte aplicada, de arte decorativa, de arte industrial, e talvez por isso acabará designado como o Museu de South Kensington, e mais tarde, em 1899, adquirirá o actual nome de Victoria & Albert Museum . 

Será aí, na qualidade de director, que realizará um acto fundador (mais um). Numa altura em que a Fotografia estava longe de, unanimemente, ver ser-lhe concedido o acesso ao estatuto de Arte, Henry cole entenderá que num museu que patrocina a nova estética que resulta do cruzamento de Arte, do utilitário e da indústria, fazia todo o sentido incorporar a Fotografia nesse panteão. E, numa altura em alguns museus tinham um relação profundamente conflituosa com a Fotografia (como era o caso das colecções Florentinas, que sob a direcção de Michele Arcangiolo Migliarini, excluíam inclusivamente qualquer possibilidade de registo fotográfico das suas peças), iniciará a partir de 1856 a primeira colecção fotográfica pública com a aquisição de trinta imagens da exposicão anual da Photographic Society of London. Em 1865,adquirirá as primeiras fotografias da mais original praticante da época vitoriana, Julia Margaret Cameron, reforçando a perspectiva autoral e artística da colecção. 
Ainda na década de cinquenta de mil e oitocentos, nomeou como fotógrafo oficial do South Kensington Museum Charles Thurston Thompson, que o auxiliara na exposição de 1851 e se tornara entretanto seu cunhado. Este realizará, no âmbito das suas funções, cerca de 10.000 fotografias, quer das peças da colecção, quer da instalação do museu, quer ainda de actividades da instituição. Procederá também a reportagens fotográficas no estrangeiro, nomeadamente em Espanha e Portugal.

Charles Thurston Thompson, Espelho veneziano, 1853
imagem obtida aqui





Retornando a Henry Cole enquanto fotógrafo, pelo menos parte do seu trabalho encontra-se nas colecções do Victoria &; Albert Museum, depois da sua aquisição em 1987. Infelizmente, as suas fotografias não se encontram acessíveis via internet, pelo que apenas pude ver quatro delas num vídeo de uma conferência de Christopher Frayling no V&A Museum. Se funcionarem como amostra fiável do universo completo do trabalho fotográfico, poder-se-á dizer que não assistia a Cole a mestria técnica de nomes como Julia Margaret Cameron, Charles Lutwige Dodgson ou Henry Peach Robinson. Mas servem as quatro imagens, registos da seu retiro de Elm Cottage, em Shere, Surrey,para vislumbrar o ambiente doméstico, a intimidade de um homem que pretendia reformar o gosto dos vitorianos.
Com o pseudónimo de Felix Summerly, desenhara na década de trinta e quarenta diversos objectos que entraram em produção, nomeadamente um muito bem sucedido serviço de chá, da Minton, e de 1849 a 1852 edita, conjuntamente com Richard Redgrave, o The Journal of Design and Manufactures, periódico onde se pugnará pela criação de uma estética mais apropriada à era industrial, mais racional, e pela crítica da profusão formal e o abuso decorativo, dominantes à época e degenerados a partir da matriz rococó e barroca. Estes factos farão com que o historiador da arquitectura e do design Nikolaus Pevsner, no incontornável Pioneers of Modern Design, coloque Cole na categoria de precursores do movimento moderno, e que daí decorra alguma ilusão que difunde abusivamente a imagem do inglês como um modernista antes do tempo (o que nada tem a ver com que Pevsner escreveu, há que esclarecer!).
Henry Cole era um homem do seu tempo, e a observação dos seus objectos, e do que faz publicar no The Journal of Design and Manufactures, não permitem quaisquer veleidades de o pensar envolvido em conjecturas estéticas minimalistas, em ambientes de planos uniformes de cores primárias, ou algo do género.
A sua linhagem estética assenta mais numa depuração de referências clássicas, e numa defesa de padrões geometrizados e vegetalistas ( próxima do movimento arts&Crafts de William Morris), do que em cenários fantasiosos de um modernismo avant-la-lettre. As quatro imagens que Christopher Frayling apresentou na conferência referida, mostram-nos claramente isso.

As três imagens da sala de desenho confirmam-nos que Cole partilhava algo típico dos vitorianos, algo que podemos definir como o “horror ao vazio”, demonstrando uma divisão profusamente coberta de decoração e de quadros. Onde estes espaços se distinguem de outros casos mais comuns do universo vitoriano, especialmente no caso da imagem de um quarto, é sobretudo na cobertura da parede, que aos papéis de parede exuberantes, berrantes, de padrões complexos, amiúde de vegetação realista e de animais, maioritários nos interiores oitocentistas, contrapõe um padrão abstracto, geométrico, que permite uma maior sensação de espaço e uma leveza incomuns à época.

Henry Cole, as filhas Mary, Letitia e Henrietta
na sala de desenho ,
Surrey, 1856
imagem obtida aqui

Henry Cole, Sala de desenho,
Surrey,1856
imagem obtida aqui

Henry Cole, Sala de desenho,
Surrey,1856
Prova parcialmente colorida com aguarela
imagem obtida aqui

Henry Cole, A filha Mary Charlotte Cole
num quarto de Elm Cottage,
Surrey, 1856
imagem obtida aqui




Tal como as fotografias de Charles Thurston Thompson registam as colecções e a fase inicial do South Kensingthon Museum, estas fotografias de Henry Cole são documentos incontornáveis da verdade da sua estética.

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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Cara lavada

Quem chegar a este blog pela primeira vez não notará nada e, se calhar, ainda bem. Os outros, os que revisitam, regularmente ou quando calha, notarão que esta coisa tem outro aspecto, apresenta-se agora de cara lavada.
Anteriormente a aparência era propositamente franciscana, fruto de decisões de poucos minutos aquando da criação da conta no blogspot. Uma opção motivada pela preguiça, claro, mas também por um certo fastio de sites artilhados com tralha ( por cima, por baixo, aos lados, com coisas que se mexem e piscam, quais árvores de Natal) e que distraem do conteúdo, quando efectivamente o há.


O anterior aspecto da coisa

Quando o número de visitantes chegou à fasquia de alguns (valentes)milhares, comecei a achar que, até por uma questão de respeito por aqueles que resistem e lêem as coisas que aqui insisto em publicar, se impunha uma reformulação da coisas, uma melhoria da fachada.
Mantem-se, espero eu, alguma contenção, continua  a não haver nada que pisque e provoque ataques epilépticos (excepto, eventualmente, a fraca qualidade de alguns textos).
Recorrendo a uma imagem da entomologia, que é sempre uma área interessante para se ir buscar conversa, espero que o anterior visual tenha sido a necessária fase de pupa ( ou de crisálida, se preferirem) deste projecto, da qual saiu uma criatura mais vistosa e que voa. Não posso garantir se será uma bonita borboleta ou uma irritante traça, mas farei o meu melhor.


Júlio Assis Ribeiro, 
SP_A_PPNDTRMND_01 - Pupa de insecto não determinado,
2011

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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Portugueses em tempos difíceis

1940 não será decerto um ano complicado de categorizar como de tempos difíceis. Na Europa, a segunda grande guerra ( ainda não mundial) grassava e espalhava destruição. Portugal, país habituado à miséria, penava mais que o habitual com a escassez e o açambarcamento de bens alimentares, cuja importação fora drasticamente reduzida em virtude do conflito, preparando caminho para o racionamento generalizado com que o Estado Novo tentaria controlar a situação. Os Estados Unidos, enquanto estavam na antecâmara da guerra, lidavam com a esteira da Grande Depressão que, apesar do New Deal de Franklin Roosevelt, ainda deixava marcas na economia e no tecido social. Nesse ano, trabalhando para o projecto fotográfico da FSA ( Farm Security Administration), Jack Delano, o fotógrafo nascido na Ucrânia que era também músico, fotografou Manuel Almeida, um agricultor natural de S. Miguel, nos Açores, e a sua filha.
A imagem capta um certo ar do tempo. Não obstante se situar em Rhode Island, o ambiente grave da cena, tão caro aos fotógrafos do FSA, agradaria e encaixaria certamente no gosto dos neorealistas portugueses, seus contemporâneos.

Jack Delano, O agricultor Manuel Almeida e a filha,
Rhode Island, Dezembro de 1940
imagem obtida aqui


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terça-feira, 25 de outubro de 2011

O país das sombras de chumbo

Alturas há em que, sobre os países, as nuvens parecem carregar chumbo.
Nascida da súbita (mas não totalmente inesperada) morte da União Soviética, a Rússia actual titubeava no último decénio de mil e novecentos. O seu líder inicial, Ieltsin, fora em larga medida o coveiro mor da aventura soviética e partindo de uma aura de coragem acabaria os seus dias de presidente num registo patético, como uma personificação do estereótipo do russo beberrão. Num par de anos, o país decaíra de cabeça dum império que financiava pretendentes a revolucionários e “repúblicas democráticas” a uma nação caótica que depende de ajuda externa durante alguns invernos. O entusiasmo pelo mercado redundara na apropriação dos negócios mais rentáveis por milionários instantâneos, uma enorme parte do aparelho industrial colapsara, o secessionismo aparecera no Cáucaso, as máfias e o poder confundiam-se. Tentavam-se revoltas e bombardeava-se o parlamento.
Foi uma altura de deriva, de abuso solto, de desesperança. O país imenso e a sua enorme população pareciam mexer-se sobretudo por inércia acumulada e sem destino. A Rússia foi então uma nação movida pelo passado e pelo orgulho ferido.
Poder-se-ia ilustrar a década perdida com as fotografias de Jim Nachtwey, da Grozni destruída de 1996, talvez as das crianças de cabelo rapado a brincar em tanques destruídos. Mas seriam demasiado documentais e precisas, demasiado parciais e específicas. A realidade da Rússia desorientada da era Ieltsin parece-me agarrar-se de forma muito mais forte às imagens das séries City of Shadows e Time standing still de Alexey Titarenko. O fotógrafo russo trabalha nelas a sua cidade, S. Petersburgo, e recorre a exposições longas e enquadramentos que combinam elementos arquitectónicos e pessoas em movimento.
Na década de oitenta, quando a União Soviética se tentava redefenir e regenerar , desenvolvera a série NomenKlatura of Signs, procurando fazer a crítica de uma sociedade repressiva que reduzia os cidadãos a signos, a inscrições. Embora o tom fosse de crítica, e se situasse claramente fora do campo da propaganda oficial soviética, esta primeira série baseada no uso de colagens, duplas exposições e montagens era no entanto devedora de uma tradição fotográfica soviética, de experimentalismo e fusão entre grafismo e fotografia.

Alexey Titarenko, série Nomenklatura of signs,
1986-1991,
imagem obtida aqui

 A Fotografia de Titarenko parece depois mudar com o país, nos anos noventa. Da câmara escura e dos artifícios das montagens, o seu foco transita para o trabalho com a câmara e as exposições alongam-se. Da denúncia da desumanidade soviética transita para a documentação do negrume da alma russa, mas o seu trilho não é o do fotojornalismo envolvido. Contorna o imediato pela via da metáfora e reside aí a força das suas imagens.
As enevoadas massas humanas que povoam as fotografias de S. Petersburgo, resultantes dos tempos demorados que usou, carregam um discurso sobre o imutável e a desconsideração do indivíduo na história russa, onde a força do Estado acaba sempre por ser o valor basilar. As imagens densas, pouco contrastadas, destas séries remetem-nos para a dureza do ambiente urbano e o peso dos destinos pessoais, ressonâncias do universo de Dostoievski. 
Particularmente poderosas são as imagens feitas na escadaria da estação de metro de S. Petersburg. A multidão desvanecida que as percorre convoca-nos as escadarias Primorsky ,em Odessa, local da mais recordada cena do Couraçado Potemkin, um dos filmes maiores de Serguei Eisenstein. À brilhante propaganda de 1925 e à construção da mitologia soviética, com um massacre que não existiu de facto na revolta de 1905, Titarenko contrapõe os degraus de uma rotina quotidiana e desanimada. Não há nelas a caminhada para a construção do Homem Novo, apenas gente que se movimenta pela cidade em busca de armazéns com bens para levantar com os cupões de racionamento. Ao contrário das imagens do filme de Eisenstein, estas fotografias não contêm o optimismo de sacrifícios sofridos por um futuro grandioso, carregam somente o peso do desencanto.

Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui


Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui




Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui

Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui
Alexey Titarenko, série Time standig still,
1998-2000
imagem obtida aqui


Alexey Titarenko, série Time standig still,
1998-2000
imagem obtida aqui
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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A destruição de Moby

Há definitivamente algo nos aeroportos de Nova Iorque. Depois de ter aqui tido o caso de Taryn Simon, e a sua série “Contraband” realizada no aeroporto JFK, deparo-me com a fotografia que dá o mote aos álbuns musical e fotográfico “Destroyed”, de Moby, tirada no La Guardia.
Moby, músico nova-iorquino estimável, decidiu este ano assumir-se como fotógrafo. Nascido numa família ligada às artes visuais, desde muito jovem decidira seguir um percurso privado de experimentação visual, a par da faceta mais pública ligada à música. Foi por bastantes anos um frequentador regular de câmaras escuras e apreciava particularmente o trabalho de Irving Penn, Dorothea Lange e André Kertész. Durante muito tempo, diz-nos ele, fascinou-o a questão técnica, coisas como qual o filme a usar para obter uma determinada gama tonal ou que recursos usar no laboratório para uma determinada riqueza de detalhe.
Nos anos noventa o contacto com o trabalho do alemão Wolfgang Tillmans, e o seu gosto pelo casual e o informal, foi decisivo numa mudança que o afastou dessa concentração no apuro técnico das imagens a preto-e-branco.
Há cerca de três anos atrás quando, durante a tournée, começava a compor as músicas de um novo álbum, interessou-o captar a estranha dualidade do ambiente da digressão. Aos momentos de euforia com o publico contrapunham-se enormes períodos de tempo solitário em espaços impessoais - hotéis, aeroportos, aviões e bastidores. Esta ideia, no inicio, meramente de interesse pessoal, acabaria por se tornar no álbum fotográfico Destroyed, lançado em conjunto com o novo álbum de mesmo nome, formando um conjunto em que as duas componentes se complementam e se citam. O nome dos álbuns decorre de uma fotografia tirada no aeroporto La Guardia, em Nova Iorque, onde Moby observou num corredor vazio um painel informativo electrónico, onde corria uma informação relativa ao destino de bagagens não reclamadas. Fazendo jus à descrição do fotógrafo como um caçador de imagens, Moby esperou que a palavra destroyed ficasse isolada no painel e "disparou".

Moby, La Guardia, do livro Destroyed, 2011
imagem obtida aqui



Observando a amostra de 15 imagens disponibilizadas pelo British Journal of Photography, parece-me que Moby é mais feliz nos registos dos espaços vazios que percorre, seja um corredor de aeroporto ou um túnel. Nas duas fotografias de espectáculos que se observam, não me parece que consiga ilustrar a pretendida oposição com os espaços de espera impessoais, fico com a sensação que são mais um ponto de uma rotina bem planeada e mecânica. Permanece nelas uma frieza e uma distância que deveriam ser a marca-de-água apenas das imagens dos tempos que medeiam as actuações.
Moby, Los Angeles, do livro Destroyed, 2011
imagem obtida aqui


Moby, Luxemburgo, do livro Destroyed, 2011
imagem obtida aqui

Moby, Paris, do livro Destroyed, 2011
imagem obtida aqui
Moby, Perth, do livro Destroyed, 2011
imagem obtida aqui
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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Taryn Simon, por ela mesma


Eis a ligação para uma conferência da série TED Talks, que em Portugal vai passando na SIC Radical, onde Taryn Simon fala do seu processo de trabalho e das suas fotografias.
Interessante o facto de começar dizendo que 90% do seu processo não é fotográfico, é burocrático. Trata-se de escrever cartas e pedidos de autorização para fotografar as coisas que a interessam.

Taryn Simon photographs secret sites | Video on TED.com



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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Os inocentes

A série fotográfica The Innocents, de Taryn Simon, tem a sua génese num trabalho fotojornalístico que realizou em 2000, ao serviço do The New York Times Magazine. Ao fotografar homens injustamente condenados, e posteriormente ilibados enquanto aguardavam a execução da pena capital, a norte-americana começou a questionar o papel da Fotografia nos sistemas judicial e de investigação criminal dos Estados Unidos. Viajou depois pelo país, entrevistando e fotografando homens e mulheres erradamente condenados. Daí nasceu a constatação que a Fotografia se transformara em muitos casos, não num meio de obtenção da verdade, mas num instrumento espantosamente eficaz de construção de uma versão credível, mas falsa, dos factos investigados. As condenações investigadas por Taryn resultavam, não de provas materiais, mas sobretudo de identificações resultantes de um processo consistente que passava sucessivamente pelo uso de retratos robot, fotografias de cadastro e polaroids, e finalmente pelo alinhamento de suspeitos.

O peso destas identificações revelava-se esmagador em tribunal. Num sistema judicial assente na apreciação de um júri, a palavra das vítimas cilindrava os álibis dos réus, e a ausência de provas materiais acabava por não ser suficiente para criar dúvida razoável. Esta importância dada ao testemunho das vítimas assentava na convicção da inquestionabilidade da memória. Porém, como as provas de ADN mais tarde vieram a comprovar, a memória é um processo profundamente plástico. Taryn Simon verificou nos casos investigados como as identificações dos réus foram moldadas num procedimento (intencional por vezes, involuntário e inconsciente noutras) que reconstruía a memória que as testemunhas tinham dos factos.

Perante uma dificuldade de descrição, de retenção da imagem dos criminosos, as vítimas eram frequentemente confrontadas com imagens daqueles que os agentes policiais consideravam potenciais suspeitos. A pressão dos agentes, comentários ouvidos, legendas de imagens, a repetida confrontação com retratos de indivíduos alegadamente duvidosos, pormenores que faziam salientar uma das imagens (num dos casos, o condenado era o único retratado a cores num conjunto de fotografias policiais), e todo um conjunto de passos encadeados, levavam a que as testemunhas, quando chegassem à fase de reconhecimento de suspeitos num alinhamento, identificassem não exactamente quem haviam observado durante o crime, mas simplesmente quem lhes era mais familiar. Essa familiaridade com um rosto fundia-se com a memória dos factos, e em muitos dos depoentes em tribunal gerou-se uma profunda convicção que apenas a posterior utilização do ADN veio a abalar.

Na série The Innocents, Taryn Simon parte da leitura dos processos, dos perfis dos suspeitos e das entrevistas e recoloca os condenados, entretanto ilibados e soltos, em localizações que foram fulcrais na investigação criminal - o local do crime, da detenção, do álibi, da errada identificação. Recentra a questão no papel do contexto em que uma imagem fotográfica é apresentada, e na relação ambígua entre a Fotografia e a verdade.

A Fotografia tem uma relação ontológica com a realidade. Não é uma representação, é uma marca da realidade num suporte bidimensional. Daí advem a percepção de que o que é registado fotograficamente é verdadeiro. Mas, tal como acontece com factos presenciados, com a confrontação com a realidade, a percepção do que vemos numa fotografia depende fortemente da nossa experiência, dos nossos (pré)conceitos e do enquadramento momentâneo. Uma mesma fotografia assume diversos significados para diferentes pessoas, e a introdução de uma legenda altera profundamente a sua leitura. Uma encenação, uma manipulação, uma indicação transforma em prova algo que objectivamente não o é.

Em The Innocents, a chave da interpretação das imagens está contida na legenda e no facto de conhecermos o fundamento da série. Isoladas desta chave, as imagens limitam-se a apresentar personagens que nos confrontam, que nos questionam algo. Com a chave, estas imagens de ex-prisioneiros em locais de crimes onde não estiveram, em locais onde estavam de facto sem o conseguir provar, a questão última que nos apresentam é a interrogação acerca do significa realmente uma fotografia.

Taryn Simon,Charles Irvin Fain,local do crime
Rio Snake Idaho, 2002
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Taryn Simon, Jeffrey Pierce
Lago Huron, Port Huron, Michigan, 2002
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Taryn Simon, Larry Mayes,
Local da detenção, The Royal Inn,
Gary, Indiana, 2002
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Taryn Simon, Troy Webb,
local do crime, The Pines,
Virginia Beach, Virginia, 2002
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terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Contrabando de Taryn Simon

Através do Photojournal fiquei a conhecer a série fotográfica Contraband, de 2010,  da norte-americana Taryn Simon, onde regista objectos retidos pela alfandega dos Estados Unidos, no aeroporto internacional JFK, em Nova Iorque, a sua cidade natal.
Dela conhecia a série The Innocents, mais antiga, e que partilha com Contraband a temática da relação entre a Fotografia e os processos de investigação criminal. Formalmente  simples, as imagens de Contraband apresentam toda uma panoplia de artigos apreendidos a passageiros ou retirados do interior de correspondência. Isolados, ou agrupados em conjuntos de objectos iguais ou semelhantes, foram fotografados cuidadosamente num fundo neutro claro.
Estas imagens parecem querer evitar associações, ser literais, ser de uma clareza fria e científica.
Não o podem conseguir plenamente. Observando-se muitas delas, saltam questões. O porquê de transportar gordura animal, e de tal ser ilegal. Qual a eficàcia de uma pasta de dentes feita a partir de esterco de cabra. O porquê de transportar partes de animais mortos, muitas vezes orgãos sexuais. O porquê de transportar pós não identificáveis.
Tanto quanto evidenciar actuações ilícitas, como contrafacções e tráfico de substâncias ilegais, esta série centrada nas apreensões registadas em 2009 no JFK demonstra o tremendo choque entre a cultura americana e os hábitos e crenças de muitos dos que procuram sediar-se em solo dos Estados Unidos.

Taryn Simon, Gordura, série Contraband, 2010
Imagem obtida aqui


Taryn Simon, Toucinho proveniente da Ucrânia,
série Contraband, 2010
Imagem obtida aqui





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domingo, 18 de setembro de 2011

Olha o boneco!

Entre a interessante quantidade de coisas que Félix Nadar e os seus ajudantes levaram para o subsolo parisiense nos Outonos de 1861 e 1864, e nos Invernos de 1862 e 1865, encontravam-se manequins. A razão da presença destes fracos substitutos de gente, entre os recursos técnicos que o fotógrafo fez transportar pelas catacumbas e pelos esgotos, prendia-se com o seu desejo de colmatar uma falha que detectara - em muitos dos registos fotográficos com que os exploradores novecentistas apresentavam outros espaços de espanto verificava-se a ausência de uma noção de escala.
Para os desenhadores e pintores, a resolução deste problema não oferecia grande dificuldade. Junto ao monumento e à ruína pitoresca, num recanto da paisagem desafiadora, colocava-se a representação de algo familiar, normalmente uma figura humana. Este recurso técnico esclarecia todos acerca da dimensão da coisa representada. Nadar, agente de uma disciplina nascente, a Fotografia, socorre-se do saber acumulado da Arte Ocidental e tenta reproduzir a solução nas catacumbas e nos esgotos de Paris. Contra si tem as limitações técnicas de então: emulsões pouco sensíveis e iluminação artificial muito limitada. Com exposições de dezoito minutos, está fora de questão obter um retrato de figura humana com a qualidade que o caracteriza. Mesmo com muita boa vontade e com as ferramentas de estabilização do modelo, comuns na época, objectos metálicos que constrangem os movimentos segurando o retratado pelas costas e pelo pescoço, o resultado final é necessariamente um figura tremida. A solução de nadar é fazer uso de manequins realistas, com roupas verdadeiras e em poses verosímeis. Espera assim obter uma justa representação documental dos espaços subterrâneos.
Olhando agora estas imagens, com o olhar de mais de quase duas centenas de anos de Fotografia (um olhar muito menos ingénuo que o dos contemporâneos de Nadar), o resultado distancia-se bastante dos propósitos do fotógrafo. A colocação do manequim dá às imagens um carácter de farsa, de falsificação, que corrói as suas intenções documentais. Gera um ruído que perturba a leitura, afasta as imagens do campo da representação da verdade. Embora verdadeiras imagens das catacumbas e dos esgotos, estas fotografias tendem a ser lidas muito mais como reconstituições, sejam didácticas (como as dos museus), sejam lúdicas (como as dos parques de diversões e feiras, veja-se a título de exemplo, imagens de figuras dos túneis do horror ). Enquanto documento, estes trabalhos são imensamente mais fracos que outras fotografias de Nadar, dos mesmos espaços mas sem o recurso a manequins.

Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861/1862
imagem obtida aqui

Félix Nadar, Esgotos de Paris, 1864/1865
imagem obtida aqui

Radicalmente diferente nos resultados e na experiência é trabalho de Hiroshi Sugimoto, na série Portraits. Realizada nos finais da década de noventa do século passado, esta série do fotógrafo japonês parte da possibilidade de fotografar a figura de cera de Henrique VIII de Inglaterra, criada pelos artesão do Museu de cera da Madame Tussaud, em Londres. Trabalhada com enorme profundidade e detalhe a partir das pinturas de Hans Holbein, o Novo, a escultura traz-nos com realismo o polémico rei. E permitiu a Sugimoto iniciar uma série em que trabalha alguns dos seus temas de eleição - a natureza da Fotografia e os seus limites, a realidade e a sua percepção, a apreensão dos conceitos de vivo e morto. Partindo de Henrique VIII, utilizando técnicas de iluminação que reproduzem a luz com que Hans Holbein terá trabalhado, fotografou outras figuras do passado anterior à Fotografia, recuperadas da pintura europeia pelos artesãos do Madame Tussaud, e por fim, as estátuas de cera de personalidades contemporâneas de Sugimoto, como Fidel Castro e o imperador Hirohito.
O resultado é perturbador. Trabalhando com o mesmo material de Nadar, simulacros da figura humana, o produto e os objectivos são diametralmente opostos. Ao passo que nadar pretendia fornecer uma melhor percepção da realidade que assistia, Sugimoto parece querer confrontar-nos com a nossa propensão para sermos iludidos, mesmo sabendo da impossibilidade do que nos é oferecido à vista. Vemos Henrique VIII fotografado, sabemo-lo morto muito antes do tempo da Fotografia, mas tendemos a vê-lo como verdadeiro. Oscila-se entre a percepção de um retrato fotográfico verdadeiro e a percepção de uma reprodução preto e branco de uma pintura (talvez por isso as imagens das estátuas de figuras históricas sejam as mais fortes da série). Ao contrário das imagens dos esgotos e das catacumbas, que apesar de verdadeiras nos soam falsas de imediato, os retratos de Sugimoto, apesar de os sabermos improváveis, parecem-nos verdadeiros.

Hiroshi Sugimoto, Henrique VIII,
série Portraits, 1999
imagem obtida aqui
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