quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Horizonte de estranheza

Há muito que se sabe do papel transformador que o tempo tem na fruição duma obra de arte. Marguerite Yourcenar, notável escritora, dedicou aliás um belíssimo livro ao tema. E se essa realidade é aplicável aos textos dramáticos, à pintura e à escultura, é-o talvez ainda mais à fotografia.

Há na fotografia, sobretudo naquela que se pretende constituir como documento, um discurso implícito sobre o tempo. A fotografia “congela” um instante, extraindo-o do devir temporal. Mas esse isolamento criada pelo fotógrafo, não é controlado por ele. Os materiais “degradam-se”, os contrastes atenuam-se, os brancos amarelecem. Mais ainda, o tempo acaba quase sempre por criar um horizonte de estranheza, para lá do qual se situa a imagem.

A legenda ou o título são um último recurso, a linha que tenta puxar para nós o instante definitivamente alienado, condenado a essa desafiante e encantadora estranheza.


Berenice Abbott,
Montagem de um computador IBM,
EUA, cerca de 1958
imagem obtida aqui

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Diogo Margarido e o particular contexto da fotografia amadora em Portugal

Diogo Margarido (n. 2 de fevereiro de 1932) é um bom exemplo do particular contexto da fotografia, e da fotografia amadora em especial, no Portugal da segunda metade do século vinte.

Nascido fora de famílias ligadas ao ofício, e num contexto humilde que não lhe permitiu uma formação estética e técnica precoce no exterior, a sua ligação à fotografia não pôde provir das duas formas mais informadas que a realidade portuguesa permitia à época. Acabaria por a ela começar a aceder através do forte associativismo operário da zona do Barreiro, cujas bibliotecas alimentaram um espírito curioso e insatisfeito, com câmara emprestada, e sem acesso a laboratório, dependendo, como quase toda a gente na época, das casas comerciais para revelação e ampliação.

Uma vida profissional intensa ligada à indústria não evitaria uma continuada prática fotográfica, numa aprendizagem esmagadoramente auto-didacta, fundada numa colecção de livros que foi acumulando com entradas nacionais e estrangeiras, e num investimento pessoal em equipamento. Nem impediu igualmente um papel importante no associativismo fotográfico, tendo sido dirigente da APAF – Associação Portuguesa de Arte Fotográfica e tendo promovido aí cursos de iniciação à Fotografia, poupando a muitos o difícil percurso de auto-aprendizagem que teve pessoalmente de percorrer.

Acumulou e construiu ao longo de décadas um organizado arquivo de milhares de negativos e diapositivos, cuja digitalização se encontra em curso, e que nos mostra o Portugal em mudança, às vezes lenta, às vezes acelerada, das décadas de cinquenta até à actualidade. Tendo fotografado longamente, mercê da sua carreira, a indústria e as suas instalações, fotografou igual e demoradamente os territórios do interior e as gentes amarradas a uma ruralidade áspera e difícil. Fê-lo mesmo com assinalável graça e familiaridade. Era aí que estavam as suas raízes.

Impõe-se que a fotografia de Diogo Margarido, em larga medida afastada do conhecimento público, seja apresentada e divulgada com maior destaque e consistência do que aqueles que ocasionais exposições têm permitido.

E esperam-se em breve agradáveis novidades editoriais a esse respeito.


Diogo Margarido,
Castelo de Vide,
Portugal, 1960
imagem cedida por cortesia do autor

sábado, 2 de fevereiro de 2019

A Arábia de Wilfred Patrick Thesiger [2]

Um dos aspectos mais interessantes das fotografias de Wilfred Thesiger na Península Arábica é a forma como nos afastam de alguns lugares-comuns.

Se é certo que fotografou os grandes mares de dunas que fascinam os ocidentais, a verdade é que, tendo-os atravessado, fê-lo da forma como os locais sempre o haviam feito, em pequenos grupos, recorrendo a camelos, transportando o essencial, vivendo com o mínimo. A admiração pelos povos da área, capazes de subsistir num ambiente agressivo, levou-o a procurar os seus costumes e mimetizar os seus hábitos. Atravessaria a Arábia, passando fome e sede por vezes, como eles, e criaria laços de grande amizade com alguns dos seus companheiros beduínos.
A Arábia de Thesiger não é apenas paisagem, é também frequentemente um espaço habitado. E as suas fotografias documentam um tempo prévio à grande uniformização que se abateu sobre essa parte do Médio Oriente. As gentes de Thesiger são muito mais variadas do que as visíveis nas imagens duma Arábia actual. Os diferentes grupos que perpassam pelas suas imagens vão muito além do universo masculino com as roupagens dos sauditas mais abastados da sua época, naquilo que será o estereótipo do árabe nos tempos correntes. Há diferentes penteados, trajes, hábitos. Há mulheres não encerradas em espaços fechados, não esmagadas em cobertas.
Os companheiros beduínos de Thesiger viriam mais tarde a aceitar as vantagens da uniformização. Receberiam o dinheiro dos petro-estados, fechariam as suas famílias em grandes casas com ar condicionado, deixariam de aguentar a aspereza das areias.
Mas William Thesiger consideraria essa sua nova Arábia algo bem mais pobre.

Wilfred Patrick Thesiger,
Beduínos Sa‘ar no poço Manwakh,
Iémen, 1948
imagem obtida aqui