quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A matéria-prima de Kipling

Havia no consultório médico onde me levavam em miúdo um quadro. Neste, uma ilustração algo acriançada ( que tanto quanto me recordo teria um comboio) conjugava-se com uma tradução do poema “If” de Rudyard Kipling. Aqueles versos, que não rimavam na versão portuguesa, foram das primeiras coisas que li.
Achava-os estranhos, provavelmente porque o elogio do estoicismo que corporizam é claramente antitético do padrão choramingas, coitadinho e desculpabizante da identidade nacional . Há fabulosos trechos choramingas na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o Bocage também por aí navega e o Fado é a nossa musica nacional. Até os nossos rappers conseguem fazer, imagine-se o prodígio, rap choramingas.
Mas voltando a Kipling, os versos amalgamaram-se na minha tenra idade com a figura de heróis que aguentavam sem gemer, corriam mundo e conheciam tudo. Um deles, que estranhei a príncipio, mas que se entranhou como a coca-cola, foi Corto Maltese, que conheci em revistas Tintim emprestadas, na “Balada do Mar Salgado”.
O personagem de Hugo Pratt percorre o mundo, dos Mares do Sul à Irlanda e à Etiópia, e cruza-se com um contigente de apátridas, oportunistas, militares, idealistas e demais gente estranha. Mas as improváveis histórias tornam-se verosímeis pela humanidade que nelas existe. Entenda-se aqui humanidade, não num sentido moralista ou piedoso, mas enquanto complexidade, variedade, realidade. Nas Aventuras de Corto Maltese há “underacting”, figuras que quase só respiram, um pouco ao modo de Clint Eastwood, e há “overacting”, personagens histriónicas que gesticulam e gritam. O preto e o branco das pranchas é complementado pelas inúmeras matizes de cinzento das histórias. Pressente-se um fervilhar nesse mundo que virava contrariado e atrasado do século dezanove para o vinte, dos heróis maiores que a vida, e do Romantismo, para uma outra coisa mais seca e mecânica. O Universo de Kipling, seria substituído por outro, com menos peso do indíviduo. As guerras mundiais que se adivinham, e entrelêem, em Corto Maltese serão já de outro século, matanças industriais e cegas. Criaturas imaginárias como Daniel Dravot e Peachey Carnehan, que se tentam tornar reis num recanto do afeganistão, em “The Man who would be King”, deixariam de fazer sentido. E assim será porque a matéria prima que as alimentava, gente verdadeira de feitos espantosos deixa de existir com esse carácter. Com a excepção de Lawrence da Arábia, as grandes figuras heróicas do século vinte são heróis da Máquina, ou da guerra mecanizada- Amelia Earhart, Charles Lindbergh, George Patton, Erwin Rommel.
Fica para trás toda uma galeria de aventureiros e exploradores mais ou menos oficiais que percorrem, ao longo do século XIX, as terras que se definiam como exóticas, estranhas ou desconhecidas- os nacionais Serpa Pinto, Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo; o americano Josiah Harlan; o alemão Adolf Schlagintweit e os britânicos James Brooke, David Livingstone e Tristram Speedy.
Este último, que inspirará em Kipling o pequeno conto “The Lang Men o’ Larut”, interessa-me em particular. Fisionomicamente grande ( o conto de Kipling tem a ver com uma disputa acerca de quem seria o mais alto homem num dos recantos do Império britânico), Tristram Speedy tem uma natureza que o leva a procurar deliberadamente a grandiosidade e a espectacularidade. Nascido na India, em Novembro de 1836, filho de um oficial do exército britânico, é educado na Inglaterra, mas retorna à Ásia natal seguindo a profissão do pai. Aí, em 1857, evidencia-se no esmagamento de revoltas na zona noroeste da India. Pouco depois, segue para o Corno de África, onde nomeado pelo Imperador da Etiópia, Tewodros II , assegurará o treino das tropas etíopes. Aprenderá amárico, a língua da corte, e adoptará as vestes locais, obtendo do imperador o título de Basha Felika. Cairá mais tarde em desgraça junto de Tewodros II , pelo que tem que abandonar o país. Será depois vice-consul britânico no porto de Massawa, no Mar Vermelho. Em 1864, dirigir-se-á para a Nova Zelandia, onde combaterá as revoltas maoris, e será promovido a capitão. A campanha militar da Abíssinia, leva-o de novo à Etiópia para assessorar o comandante britânico, Sir Robert Napier. O favorável desfecho desta expedição punitiva, que termina com o esmagamento do exército local e o suicído de Tewodros II, fá-lo retornar a Inglaterra com o cortejo triunfal, acompanhando o jovem herdeiro etíope, Alamayou Simeon, capturado aos sete anos de idade na capital etíope. O domínio da língua nativa da criança torna-o o tutor óbvio do pequeno príncipe, e Tristram fará do novo cargo uma espectacular operação de promoção pessoal. Faz-se fotografar, com roupas etíopes, por Julia Margaret Cameron e por Cornelius Jabez Hughes, na ilha de Wight, onde a Rainha Vitória tem uma das suas residências, e o nomeia tutor oficial de Alamayou. Faz também público gáudio em usar o título “Basha Felika” atríbuido pelo falecido imperador.
























Cornelius Jabez Hughes, Príncipe Alamayou da Etiópia e o Capitão Tristram Charles Sawyer Speedy,carte-de-visite de albumina,1868
imagem obtida aqui

Regressará à india em 1869 como superintendente da polícia do distrito de Oudh, acompanhado de Cornelia Cotton, com quem entretanto casara, e de alamayou. Porém a tutoria do príncipe é-lhe retirada, e a criança é levada para Inglaterra. Dois anos depois rumará à Malásia, como superintendente da polícia na ilha de penang. Demitir-se-á em 1873 para, à frente de um contigente de tropas indianas, ir para Larut ( daí o título do conto de Kipling) fazer frente às sociedades secretas chinesas que comprometiam a ordem nesta zona mineira da Malásia. Será bem sucedido e dois anos mais tarde seguirá para áfrica, desta feita para o Sudão. Entre 1883 e 1885 será novamente uma figura chave nas relações entre a Grã-Bretanha e a Etiópia. Participará na missão liderada pelo Vice-Almirante Sir William Hewett à corte do Imperador Yohannis IV da Etiópia, para resolver disputas sobre as linhas de Fronteira entre a Etiópia e o Sudão. Finalmente, em 1897, na participará na deslocação do Barão Rennell Rodd à Etiópia para, com o rei Menelik, negociar o Tratado Anglo-Etíope que definiu definitivamente a fronteira .

Porém, antes destas duas últimas deslocações , que nos fazem pensar num Tristram Speedy oficial, diplomático, formal, temos notícia de uma palestra sua num colégio feminino londrino. Aí, já a rondar os cinquenta anos, não se limitou a debitar factos e costumes da Etiópia. Mudou de figurino várias vezes, foi padre copta, cortesão, general, mercador, e entusiasmou a jovem audiência. Por fim , declarou “A própria palavra Abissínia significa confusão, as raças são confusas, a religião é confusa, as montanhas e vales são confusos e eu próprio me sinto confuso ao dirigir-me a tantas crianças. Assim, quanto mais confusos forem os vossos relatórios, melhor representarão eles o país e a palestra.”

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Brandos costumes (3)

Estúdio Horácio Novais, Rua S. Filipe Neri,Revolta de 26 de Agosto de 1931, Lisboa
imagem obtida aqui

Historicamente, a actual rotunda Marquês de Pombal era o epicentro das revoltas militares que decorriam em Lisboa. O Largo do Rato, Campolide e outras áreas adjacentes, por serem vias de acesso que a alimentam, eram palco de combates intensos.
A memória dos confrontos estranhamente quase desapareceu, raramente são referidos. Mas, na fonte existente no fim da rua da escola Politécnica, aqui vísivel à entrada do Rato, ainda perduram o buracos resultantes do impacto das balas na pedra.

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Brandos Costumes (2)

 Estúdio Horácio Novais, Revolta de 26 de Agosto de 1931
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Brandos Costumes


Estúdio Horácio Novais, Aviso à População, Agosto de 1931
imagem obtida aqui

A imagem não será brilhante e, dada a época, devo dizer que também não é natalícia ou festiva.
Mas, estranhamente, impressiona e lembra-me a imagem dos grafitos de sangue de Joshua Benoliel, de 1908 (ver Acalmação).
Data de Agosto de 1931, e reporta uma revolta contra a ditadura militar que estava em vias de se tranformar, qual crisálida, no Estado Novo. As forças da oposição, atabalhoada e descoordenadamente, tentam mais uma vez repor a ordem pré-1926.
Falham rotundamente, com um enorme tiro nos pés que incluiu bombardeamentos aéreos falhados e crianças mortas enquanto lançavam papagaios de papel. Ao todo saldou-se a revolta em cerca de quarenta mortos, e a acção do Governador militar de Lisboa e das forças da GNR foi decisiva no seu esmagamento.
A imagem capta um dos avisos à população que são afixados por Lisboa, onde o brigadeiro Daniel de Sousa faz imprimir, em letra a dar para o gótico, o seguinte :
" O Comandante militar determina e faz público:
1º - Que se mantenham em suas casas todos os cidadãos pacíficos e amigos da ordem.
2º- Que serão FUZILADOS todos os indíviduos da classe civil apanhados de armas na mão.
Lisboa, 26 de Agosto de 1931"

Estúdio Horácio Novais, Aviso à População (pormenor), Agosto de 1931

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sábado, 11 de dezembro de 2010

O olhar condescendente

Portugal, na transição de séculos, de dezanove para vinte, afigurava-se no contexto europeu como um paradoxo. Nação periférica, dependente, sem recursos materiais e humanos, quase um protectorado britânico, procurava no entanto impor-se como potência colonial.

Ao contrário de outros países, que começando tarde, se impunham por força do seu poderio industrial e humano, para Portugal a questão centrava-se sobretudo numa tentativa de não ser empurrado para fora do comboio. Resultava estritamente da forma como os portugueses se olhavam a si próprios, e não de um plano operativo organizado. Prestígio, História e orgulho nacional, eram os motores do colonialismo luso. A exploração dos recursos era acessória, limitada e muitas vezes concessionada a estrangeiros, sobretudo aos britânicos.

Faltava a indústria na metrópole para rentabilizar algodão e minério, faltavam recursos humanos para montar uma verdadeira estratégia de saque da riqueza das colónias. Este último ponto era deveras marcante.

Maioritariamente analfabeto, Portugal não possuía gente com capacidade técnica, em quantidade, que pudesse exportar. Às elites da época não era estranho o problema, preocupava-as a pouca qualidade dos colonos, que não tendo uma educação formal, vindos de uma cultura oral à semelhança dos povos indígenas, muito facilmente incorriam naquilo que era, por vezes, designado por cafrização. Misturavam-se, adquiriam hábitos e costumes locais, e aos olhos dos responsáveis coloniais não impunham correctamente a “superioridade” europeia .

Igualmente, esta dita incapacidade nacional não era desconhecida dos concorrentes europeus ou de origem europeia. Os boers, defensores acirrados da sua superioridade cultural, designavam como “cafres brancos” ou “cafres do mar”os portugueses que assumiam o papel de capatazes, intermediários na relação com os trabalhadores africanos.

Os direitos coloniais que os portugueses criam históricos não eram vistos como inquestionáveis pelos demais países. Opunham a este argumento a necessidade da ocupação real dos territórios. As tardias campanhas militares portuguesas tentaram colmatar as fraquezas, mas a fraqueza das forças não impediu o abdicar das pretensões sobre a ligação terrestre entre Angola e Moçambique para o categórico aliado, o Reino Unido, nem as várias disputas fronteiriças com outras forças, nomeadamente alemãs.

O sentido da História parecia virar a página, e os povos ibéricos aparentavam ser triturados pela roda do tempo. O império espanhol que se desfizera em grande parte com as vagas independentistas americanas, sucumbe quase totalmente com a guerra hispano-americana de 1898. O ainda mais fraco Estado português soava ser um improvável jogador no casino colonial, sem trunfos nem hipótese de bluff, sobrevivendo apenas na penumbra do poder britânico. A denunciada decadência dos povos ibéricos, além de ser inegável tema da intelectualidade local, afecta igualmente o olhar condescendente da florescente e industrial Europa do norte.

Insiro aí a imagem de Sarah Angelina Acland, que no início do século vinte se faz fotografar carregada numa rede por dois naturais da Madeira.
 
Sarah Angelina Acland, Auto-retrato em rede com dois carregadores e uma acompanhante, Madeira,Autocromo, 1908-1915
imagem obtida aqui


Poder-me-ão dizer que relacionar esta fotografia com a questão colonial é um exagero ou uma distorção. Que ainda hoje os veículos de tracção humana são uma das atracções turísticas da ilha e que ninguém vê nisso qualquer desconsideração. Porém, o que saliento é que a imagem nos apresenta, não os carros de cesto para turista usar , mas a rede de carregar em ombros, imagem que claramente nos remete para gravuras coloniais (algumas delas portuguesas) do Brasil, de África e do Caribe. Mas saliento mais o que considero ser o olhar da fotógrafa, neste caso. Não é o olhar caricatural, achincalhador, de certa imagética europeia relativa aos povos indígenas.

 J. Wexelsen, Mulher do fotógrafo,Beira,Moçambique,1907
 imagem obtida aqui


É antes um olhar sobre o exótico, o estranho, que é usado como figuração e cenário dos retratados. Uma perspectiva que assenta sobre a diferença do Outro, e a nossa demarcação relativamente a este. Um olhar que encontramos em outros exemplos da fotografia colonial, e que no contexto português é observável, por exemplo, em José Augusto Cunha Moraes, numa ou outra das suas imagens de Angola.

José Augusto da Cunha Moraes,
Caçada ao hipopótamo nas margens do rio Zaire,
Angola, cerca de 1878


Um olhar que perdurará e que ainda dura, mesmo que disfarçado de olhar antropológico ou turístico.
Não será particularmente interessante, para os que se deliciam com fotografias de revistas de viagens, ver o dia-a-dia dos corretores da Bolsa de Bombaim, com os seus fatos europeus e os seus carros alemães, ou uma mina altamente mecanizada no Chile. E no que nos diz respeito, lembro-me de um colega de faculdade austríaco, arribado por via do programa ERASMUS, que se dizia bastante surpreendido por não sermos um país de gente vestida de negro, de mulheres com lenço na cabeça. Percepção que tinha, sem saber explicar porquê.

E o porquê é um sul europeu vago, geograficamente indefinido (tanto pode ser Grécia, Espanha, Córsega ou Portugal), de casas brancas, roupa preta e carga em burros, que na Europa Central e do Norte ainda se vende em pacotes de viagem mais hotel com pequeno-almoço.

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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Natureza (a dar para o) morta


Alfred Robinson, Morangos, Diapositivo processo Paget,início do sec. XX
imagem obtida aqui

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O principezinho, o tutor e um outro

 



























Julia Margaret Cameron, Príncipe Alamayou com o Capitão Speedy e um dignatário abissínio anónimo,1868
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Principezinho

Julia Margaret Cameron, Princípe Alamayou, 1868
imagem obtida aqui


























Julia Margaret Cameron fotografou brilhantemente realeza e poderes imaginários de diferentes proveniências, do mito arturiano ao panteão greco-romano de deuses e reis. Fê-lo com encenação, com técnica e sem receio. Desfocava e expunha longamente, procurava o irreal e o inverosímel, e conseguia-o.
Mas, numa ocasião, fotografou um príncipe verdadeiro. Alamayou é a criança de sete anos que Cameron fotografa por várias vezes. Umas com o seu primeiro tutor inglês,o capitão Tristram Speedy. Outras, novamente com Speedy e um abissínio anónimo. Por fim, Alamayou figura só, em pose de descanso com suposto cenário abissínio e traje a condizer. Furta-se Julia Cameron ao fato de pequeno lorde inglês que o menino usará no seu dia a dia, e com que será registado noutros retratos. Quer o princípe de um império estranho, distante, orgulhoso, misterioso. E quere-o na ilha de Wight.
Mas creio que o ar obviamente triste do pequeno príncipe não é encenado. A sua presença em território inglês não é planeada ou desejada. Capturado meses antes em Magdala, capital provisória da Etiópia ( como quase todas as outras capitais que o reino teve), na sequência de uma expedição punitiva do império britânico, é levado para a Inglaterra após o tremendo massacre em que, quase sem baixas, as forças imperiais dizimam milhares de resistentes etíopes e levam ao suicído do pai de Alamayou, o imperador Tewodros II.
Em rigor, a criança é um troféu e acompanha o produto do saque da corte etíope, nomeadamente a coroa de Tewodros II, que é feito chegar à sede do império.
A rainha Vitória interessar-se-á pelo jovem herdeiro e providenciará para que seja educado como gentleman britânico, encaminhando a criança, que desconhecera a faca e o garfo até aos sete anos, para o mundo dos protocolos e convenções de Oxford. Esperava-se criar um novo imperador à imagem da Europa. Mas o príncipe será sempre um estranho, um prisioneiro, mesmo que sem grilhetas e vestido com o melhor tweed. Pede inúmeras vezes o retorno, ecoando o pedido que a avó tenta fazer chegar em cartas enviadas da terra natal, e que se pensa terem-lhe sido omitidas.
Não acontecerá nunca o retorno. Aos dezoito anos, falhados os estudos na Rugby School de Oxford, e insatisfeito com a academia militar de Sandhurst onde fora entretanto inscrito, Alamayou desvanece-se em seis semanas, após contrair pleuresia durante a estadia em casa de um seu antigo tutor, Cyril Ransome.
Sepultado na capela real de St. George, no castelo de Windsor, Alamayou é ainda hoje alvo de diferendo entre a Etiópia e o Reino Unido, exigindo a primeira o repatriamento dos restos mortais do princípe.

Há, nesta história de príncipes, muito pouco de Saint-Exupéry e bastante de Maquiavel.

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

SPECIMEN - O Dia da Naftalina


Júlio Assis Ribeiro, SP_A_TRÇ_01 - Traça, 2010


O bicho é aquilo a que chamam traça. Alguns chamam-lhe também mariposa. E já ouvi meterem-na no mesmo saco das borboletas, embora não ponha, quando em descanso, as asas ao alto.

Têm uma fama terrível as traças. Acusam-nas de comer roupa.
Confesso que nunca vi nenhuma a almoçar uma camisola ou um par de meias, mas juram-me que sim, que as desgraçadas se refastelam de algodão e lã. Até agora, por observação directa, culpo apenas as suas larvas de dizimarem aquilo que pomposamente chamo "O Meu Relvado", porque em resposta costumo tratar-lhes eu da saúde com um granulado que me empesta o quintal por alguns dias.
Mas retornando à roupa, da fama não se livram, e eram as responsáveis por um dia especial que acontecia duas vezes por ano.
Na mudança de estação, no primeiro mais quente ou mais frio, invadia as escolas onde estudei um cheiro adocicado. Em resposta à metereologia, muitos iam buscar roupas que haviam sido resguardadas em roupeiros e arcas, onde as mães, por claros maus instintos, tentavam impedir as comensais de se alimentarem com umas bolas brancas,venenosas, de cheiro forte, que amíúde se põem igualmente nos urinois públicos para disfarçarem o fedor ( conseguindo um inimitável bouquet, mistura sábia de vários pivetes).
Não sou senhor de um bom nariz. Desgraçadamente, essa minha protuberância fecha metade do ano  para obras, por alergias, e pensava que esta memória estudantil, se calhar, era criação mental minha. Mas, conversando com alguns companheiros da época, concluí que não. Todos se lembram daqueles dias de roupa subitamente agarrada das catacumbas, sem direito a lavagem profiláctica. Todos se lembram do Dia da Naftalina.

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domingo, 21 de novembro de 2010

ONTOS - Um atum da Madeira em Oxford

De entre a enorme gama de fenómenos que encontramos na Internet, e que incorrem na categoria de coisas simultaneamente patetas e sérias, existe um jogo intitulado The Oracle of Bacon, criado por Brett Tjaden. Esta pequena maravilha consiste simplesmente num único princípio, o de ser possível relacionar alguém, qualquer pessoa, que tenha tido um qualquer papel na indústria do cinema, com o actor norte-americano Kevin Bacon, em não mais de seis passos. O objectivo do jogo é, obviamente, conseguir fazer essa ligação. E, se possível, num número mais curto de passos.
O interessante é que algo que parece um óptimo exemplo de um produto destinado a queimar tempo de forma orgulhosamente fútil se baseia num estudo sobre a interacção humana , assente em várias experiencias conduzidas por Stanley Milgram e outros investigadores, sobre as redes sociais nos estados unidos, e que conduziram à chamada Teoria do Mundo Pequeno. Esta  parece confirmar cientificamente o velho lugar-comum de “O mundo é pequeno” e diz-nos que em sociedades abertas é possível relacionar qualquer dos seus membros em não mais de seis graus.
Este avanço científico glorifica formas absolutamente parvas de relacionar factos, e abre-nos todo um mundo novo de possibilidades sem que nos possam apontar um dedo acusador. Ao fim e ao cabo estamos a demonstrar o nosso muito douto know-how sociológico.

Um exemplo. Como se pode relacionar um pescador madeirense do século dezanove com a Alice do país das maravilhas?
É fácil! Em meados do século dezanove, pescadores madeirenses capturaram um atum que foi comprado por Henry Acland, médico e professor inglês que se encontrava na ilha acompanhando o paciente e amigo Henry Liddell, deão do Colégio universitário Christ Church, em Oxford. O deão encontrava-se na ilha, à semelhança de muitos dos seus conterrâneos abastados, por motivos de saúde, fugindo à agressividade do inverno britânico. Henry Acland adquire o enorme peixe e providencia que seja encaminhado para Oxford onde, depois de liberto das partes moles, será objecto de estudo nas aulas de anatomia de Christ Church. Actualmente, à semelhança de outras recolhas de Henry Acland, encontra-se ainda na cidade universatária inglesa, no Natural History Museum. Em 1857, Acland solicita ao jovem professor de matemática Charles Dodgson, que se dedicava à recente arte da Fotografia, que registasse o esqueleto do atum.

Charles Dodgson, Esqueleto de Atum, Oxford, 1857
imagem obtida aqui
 
Charles Dodgson fotografará o esqueleto e, mais tarde, fotografará igualmente a filha de Acland, Sarah Angelina Acland, e as crianças do deão de Christ Church, Henry Lidell.
As filhas de Lidell serão, aliás, durante algum tempo os seus modelos de eleição. E uma delas em particular, Alice Lidell, ficará para sempre ligada ao jovem matemático, muito embora essa ligação tenha sido mais tarde minorada por este. Nos passeios e expedições fotográficas que foram feitas, para entretenimento das crianças Dodgson desenvolveu uma narrativa em que estas são personagens. Por insistência de Alice, acabará por fazer um manuscrito com essa narrativa para lhe oferecer. E mais tarde desenvolverá, e apurará, a história, que será publicada com o título de “Alice in Wonderland”, assinada com o seu pseudónimo literário, Lewis Carrol.

E é assim que, aparvalhadamente, se liga um anónimo pescador madeirense a Alice no País das maravilhas em quatro passos.

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terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Madeira a cores (5)


Sarah Angelina Acland, Navio na baía do Funchal, Autocromo, Madeira, 1908-1915
imagem obtida aqui

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ONTOS - Pena de Pavão

As penas de pavão entraram, aí pelos anos sessenta e setenta, num certo imaginário decorativo, entre o freak e kitsch. No início do século vinte, porém, não creio que trouxessem tais evocações, e seriam vistas como um bom motivo para aplicar as nascentes técnicas fotográficas a cores.

Autor não identificado, pena de pavão, diapositivo Paget, início do século vinte
imagem obtida aqui

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domingo, 14 de novembro de 2010

ONTOS - Três ovos de Cuco

Sarah Angelina Acland fotografou (além da ilha da Madeira, de plantas e jardins, e de conhecidos) alguns especímenes científicos, animais embalsamados e, como é o caso, ovos recolhidos em saídas de campo.


Sarah Angelina Acland, Três ovos de pássaro, Diapositivo autocromo, 1908-1915
imagem obtida aqui

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Lendo - Rómulo de carvalho

Tive, quando miúdo, um ou outro professor que me falou com um certo fascínio de um homem chamado Rómulo de Carvalho, que assinava António Gedeão enquanto poeta, e que além de fazer versos se dedicava a ensinar (bem) ciências no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa.
Tenho encontrado pelas escolas que vou percorrendo como docente, nas bibliotecas, um pequeno livro publicado em 1960 que é precisamente escrito por ele. Por ser de carácter didactico, a obra foi assinada com o nome próprio e não com o pseudónimo literário. História da Fotografia é o seu título, e encontro-a quase sempre desgastada, a desfazer-se, sinal de fraca constituição, de papel baratinho e edição popular. Mas também indício de muito uso e interesse.
E percebe-se porquê. Apesar de ser uma história da Fotografia que se centra nos olhar de um cientista, concentrada nos seus processos químicos e físicos, nos avanços técnicos e em que abundam nomes como brometo, nitrato, albumina, colódio, mercúrio. E onde não há referências a Cartier Bresson, Capa ou Man Ray . Sim,  apesar disso, percebe-se. Lê-se com entusiasmo.
Rómulo apresenta pormenores invulgares e episódios rocambulescos, torna a criação da nova técnica ( esta história concentra-se sobretudo no século dezanove) uma aventura empolgante. Poder-se-á apontar-lhe um excessivo centramento nos desenvolvimentos de origem francesa, o que se compreende observando a bibliografia. Mas francamente, tal não interessa muito se se pretende uma pequena História da fotografia que se leia dum ápice e que entusiasme quem nada conhece de químicos e de fotografia.
Recomendo-a aos meus alunos, sem medos das lacunas e da data de publicação, e gostaria de contribuir para o já acentuado desgaste dos pobres livros. Que se edite de novo...

























Rómulo de Carvalho, História da Fotografia,colecção Ciência pra gente jovem,
Ed. Atlântida, Coimbra, 1960

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A madeira a cores (4)



Sarah Angelina Acland, Casa com trepadeiras, Madeira, Autocromo, 1908-1915
imagem obtida aqui


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terça-feira, 9 de novembro de 2010

A madeira a cores (3)
























Sarah Angelina Acland, Jardim com rede de dormir, Madeira, Autocromo, 1908-1915
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

ONTOS - Phronima sedentaria

Um pequeno crustáceo, Phronima sedentaria, deambula no fundo do mar inserido no corpos cilindricos e vazios de tunicatos mortos. Os adultos da espécie depositam os seus juvenis no interior destes receptáculos.
Diz-se que o Phronima obteve razões acrescidas de interesse por ter inspirado H.R. Giger na criação do monstro extraterreste da série de filmes ALIEN, iniciada com filme homónimo de Ridley Scott.

I. MacDonald,Phronima sedentaria, 2009
imagem obtida aqui

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A Madeira a cores (2)
























Sarah Angelina Acland, Auto-retrato com guitarra e cão, Oxford,
Autocromo,1908-15
imagem obtida aqui

 A maior parte da obra fotográfica de sarah Angelina Acland encontra-se presentemente à guarda do Museum of the History of Science, em Oxford, Inglaterra. Este espólio foi parcialmente digitalizado e é possível a consulta de imagens de baixa resolução através da Internet. Um bom exemplo a ser seguido, em Portugal, por quem guarda e zela documentos fotográficos que caíram fora do âmbito dos direitos de autor. Facilita-se o conhecimento e a investigação- coisas, como se sabe, de pouca importância...
A imagem abaixo é parte dessa obra, e trata-se de um autocromo, de cerca de 1908, com uma vista do Funchal.

Sarah Angelina Acland, Vista do Funchal,Madeira, Autocromo, cerca de 1908 imagem obtida aqui

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domingo, 7 de novembro de 2010

A Madeira a cores

Sarah Angelina Acland nasceu a 26 de Junho de 1849, em Oxford, Inglaterra. O pai, Sir Henry Wentworth Acland, foi um importante professor desta cidade universitária que, conjuntamente com o deão Henry Lidell ( de quem era médico pessoal), ajudou a revitalizar a instituição universitária. Promoveu a criação de uma colecção que permitisse impulsionar os estudos das Ciências Naturais, e deve-se a ele, em grande medida a criação do Oxford University Museum.

Angelina cresce num ambiente onde notórias figuras da cultura e ciência da segunda metade do século dezanove se movimentam e cruzam, e travará conhecimento com muitas delas, nomeadamente John Ruskin, amigo intimo da família. Manter-se-á sempre solteira, gerindo a casa do pai após o falecimento da mãe, Sarah Cotton, em 1878. Depois da morte de Henry Acland, desempenhará diversas actividades beneméritas e, mercê duma confortável situação económica, gozará de uma evidente independência, livre das correntes obrigações da vida familiar.

O contacto com a Fotografia terá provavelmente sido muito precoce dado que o pai, à semelhança de muitos cientistas da época, foi um praticante desta novidade técnica. Foi igualmente uma das muitas crianças fotografadas por Charles Dodgson ( Lewis carroll). Em 1892, tornou-se uma executante de fotografia, facto raro, mas não único, entre as mulheres da sociedade vitoriana. Porém, o que em larga medida distinguirá Sarah Acland, será o pendor experimentalista. Praticará processos técnicos de grande grau de complexidade- trabalhará a platinotípia e será uma pioneira da fotografia a cores. Colaborará com Sanger Shepherd no desenvolvimento do processo que terá o nome deste, e que passava por três exposições simultâneas monocromáticas, com filtros coloridos distintos, que sobrepostas e tingidas forneciam uma imagem diapositiva a cores. Recorrerá igualmente a outros processos que entretanto irão aparecendo como o Autocromo, dos irmãos Lumière, o Dioptícromo de Louis dufay, ou o processo Paget, patenteado por G. Sidney Whitfield.

Senhora de saúde frágil, Sarah Acland irá com alguma frequência, durante o inverno, rumar a espaços de clima mais agradável que o inglês. E à semelhança do que fizera antes o seu pai, optará várias vezes pela ilha da Madeira. Será aí que, nas duas primeiras décadas de novecentos, realizará algumas das mais antigas fotografias a cores feitas em território português.
























Sarah Angelina Acland, Foguetes (Kniphofia uvaria), diapositivo Sanger Shepherd, Madeira, cerca de 1905
imagem obtida aqui 

Como curiosidade, pode-se acrescentar que gozava da fama de ser uma poliglota, e que no seu obituário, publicado no The Times, de 4 de Dezembro de 1930, este facto é salientado indicando que, entre outras línguas, dominava até o português.

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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

ONTOS - vespa vulgaris

Eis uma fotografia da 55º exposição anual da Royal Photographic Society of Great Britain, em 1910. O autor foi Phillip J. Barraud, membro da  Royal Entomological Society.




Phillip J. Barraud, Queen Wasp -Vespa vulgaris , 1910
imagem obtida aqui

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domingo, 31 de outubro de 2010

Cavalos de luto

Em 1 de Fevereiro de 1908, a família real retorna de Vila Viçosa e chega a Lisboa num vapor, desembarcando junto ao Terreiro do Paço. Esperam-na alguns populares, na curiosidade que a pompa régia desperta. Esperam-na igualmente dois homens, Manuel Buíça, um professor que tentara a carreira militar e fora expulso, e Alfredo Luís da Costa, um empregado do comércio que publicava textos de polémica, ambos conspiradores ligados à Carbonária. Aquando da passagem do cortejo real, estes porão em acção o seu plano para matar o rei, Dom Carlos I, no que serão bem sucedidos. O príncipe herdeiro, Dom Luis Filipe, que resiste aos homens que disparam sobre o pai, será igualmente assassinado. Os regícidas são depois imobilizados, após confusão, tiros e golpes de sabre, e são prontamente mortos pelos polícias presentes.
A 8 de Fevereiro realizar-se-á o funeral régio, o ultimo a ter lugar em território nacional. O trajecto fúnebre inicia-se no Palácio das necessidades e passará pelo Terreiro do paço, local do acontecimento fatídico. Joshua Benoliel faz a cobertura fotográfica e das muitas chapas de vidro que gasta, salta-me ao olho um pormenor marginal. O fotógrafo, que capta os dignitários presentes, as carruagem, as coroas de flores, os auxiliares fúnebres e todos os demais aspectos deste tipo de evento, concentra-se algumas vezes em dois animais enlutados, cobertos de tecido negro. Um, Júpiter, é o cavalo do rei e também ele participa no funeral. O outro, cujo nome não descobri, é o cavalo do falecido príncipe herdeiro e a sua imagem parece-me ser a que melhor descreve o abatimento que a morte de alguém próximo acarreta. Jurar-se-ia que há, da parte do animal, um luto deveras sentido.

Joshua Benoliel, o cavalo que pertenceu ao Príncipe Dom Luís Filipe, 8 de Fevereiro de 1908
imagem obtida aqui

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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Amores pelos automóveis

Trabalhar a muitos quilómetros da residência, nesta terra de transportes públicos labirínticos, significa estarmos dependentes de um automóvel. Automóvel que nos pode avariar, assim sem mais aviso, junto a uma curva, e nos faz perder uma tarde de trabalho.
A mim irrita-me perder uma tarde de trabalho. E fazer dessa tarde um episódio de uma comédia fraquinha, que envolve ligar a um serviço de atendimento eficaz (como se fosse alemão), mas que depois me faz, após seguir para oficina como pendura no reboque (onde sou informado que é coisa pouca, nada que MUITOS dias de trabalho não paguem), ter de arranjar boleia para uma cidade a quilómetros, e meia hora, de distância para aceder a um veículo de substituição, pelo qual tenho de avançar com uma caução. Quando finalmente sou senhor deste carro provisório, é demasiado tarde para percorrer os quarenta quilometros que faltam para chegar à última aula que ainda poderia dar.
Não, hoje não estou de amores pelos automóveis.

Estúdio Mario Novais, Garagem, s/data
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lendo
























Fotobiografias do século XX - Joshua benoliel, de Joaquim Vieira,2009, Edição Círculo de leitores.

Não é barato, mas comprado online fica mais em conta. Vale a pena, não será exaustivo (nem sei se tal será possível em 200 páginas, com um homem que fez milhares de fotografias), mas anda perto e abre-nos o apetite para saber mais.

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A Formiga Branca

Associar num texto as formigas, insectos sociais hierarquizados, a exércitos, humanos organizados e hierarquizados, não é uma imagem inovadora. Porém, olhando-se para a Fotografia jornalística portuguesa dos primeiros anos do século vinte, podemos observar situações em que esta associação não é um recurso estilístico,  é antes algo bem literal.
Veja-se, abaixo, a fotografia de Anselmo Franco.

Anselmo Franco, Revolução de 14 de Maio de 1915
imagem obtida aqui


A imagem refere-se a acontecimentos de Maio de 1915, em que uma revolução armada pôs termo à chamada Ditadura de Pimenta de Castro. A dita ditadura nascera de uma iniciativa institucional promovida, em Janeiro de 1915, pelo presidente Manuel de Arriaga, que convidara o general para chefiar o governo, ignorando o parlamento dominado pelo Partido Democrático de Afonso Costa.
Pese embora o título, o governo nunca se impôs na verdade, minado quer internamente, com ministros em desacordo, quer pela acção dos democráticos.

O Partido Democrático,  que em rigor era o velho Partido Republicano Português (onde apesar das dissenções dos Unionistas e Evolucionistas, se mantivera a quase totalidade da máquina propagandistica e da estrutura organizativa prévias), organizou-se e, entre apelos públicos à insurreição, preparou o golpe.
No início de Maio,o governo perdeu definitivamente também o apoio dos Unionista e então tudo se precipita. A 14 de Maio alguns membros da armada, forças do exército, da GNR, e muitos civis tomaram de assalto o arsenal da Marinha. Durante três dias, trocou-se fogo entre diversos pontos de Lisboa, e entre estes e vasos de guerra no Tejo. Haverá cerca de 200 mortos e mais de 1000 feridos.
A 17 de Maio está concluído o episódio com a vitória dos revoltosos. Anselmo Franco capturou um cortejo marchante dos vencedores. Encabeçam-no civis armados, homens da Formiga Branca, uma milícia mais ou menos informal, mais ou menos reconhecida, constituída em larga medida por membros da Carbonária. Esta milícia funcionou durante grande parte da 1ª República como tropa de mão do Partido Democrático, agindo como uma polícia política por vezes (denunciando,atacando e prendendo opositores dos Democráticos),e como uma força musculada outras vezes (cortando estradas, atacando sedes de jornais e até derrubando governos).

Voltando às figuras de estilo, pode-se ver na Formiga Branca uma alegoria. O nome do bicho é um sinónimo de térmita, insecto também sociável e que atacando a madeira, de que se alimenta, é responsável pela destruição contínua e vagarosa de muitas construções. A milícia a que o Partido democrático recorria minou, anos a fio, um dos princípios base do tecido social do Estado -o monopólio da força. À semelhança de térmita em casa de madeira, a Formiga Branca era um sinal, e uma causa, da derrocada lenta do edifício institucional da primeira república.

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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

SPECIMEN - O Carrapato

Existe uma espécie de lei natural que impele os miúdos pequenos a evitar qualquer troço de calçada ou de piso alcatroado, optando por terreiros enlameados e matagais. É assim hoje, com os meus rebentos, era assim nos anos setenta, quando eu era um rebento, e só não era assim no tempo dos Neanderthais porque estes ainda não se dedicavam à grande e nobre arte portuguesa de fazer estrada.
Existe igualmente uma lei universal, e perene, que leva os pais a importunarem os petizes por comportamentos tão pouco lógicos e asseados. Comportamentos que, a seu tempo, estes aprendem a negar ter tido (os famosos “ Eu? Eu não! … Eu não andei na lama” ou “ Não tive culpa, empurraram!”). Mas o dom de ocultar factos leva tempo a apurar, e nem todos chegamos à mestria. Os adultos apanham-nos pelos indícios, a lama salpicada nas costas, as palhas agarradas à roupa, a areia transportada dentro dos sapatos.
Quando era miúdo um dos sinais mais bufos das minhas escapadas por atalhos cheios de ervas era o Carrapato. Espécie de coroa minúscula de espinhos, existe aos milhares e agarra-se à roupa como uma carraça (daí lhe vem o nome). Para meu infortúnio, funcionava melhor, muito melhor, com os tecidos sintéticos baratos que abundavam na época em que o país se entretia, e exaltava, com palavras fabulosas como reaccionário, neocolonialismo, proletariado e imperialismo. Por mais que os retirasse das meias, das calças e das camisolas, havia sempre alguns que escapavam.

Assim, já sabia quem era culpado quando, ao chegar a casa, a minha mãe me recebia com um “ Mas por onde é que tu andaste?...”. Era o carrapato.

Júlio Assis Ribeiro, SP_V_CRRPT_01 - Carrapato, 2006

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

ONTOS - Uma diatomácea em 1911

Eis uma diatomácea capturada em imagem, ampliada com um factor de 2000, e exposta na 56ª exposição da Royal Photographic Society of Great Britain. O autor,  T. W. Butcher, era médico e membro da  Royal Microscopical Society.


T.W. Butchet,Navicula Lyra Smithii, 1911
imagem obtida aqui

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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ao que iam

Joshua Benoliel, Força de Cavalaria na lagoa da Murta, em exercícios de preparação do Corpo Expedicionário Português, Tancos, 1916
imagem obtida aqui

Insisto no Benoliel .
Acompanhando a tropa que se preparava para ir para a Flandres, onde até 1918 combateria os alemães (e a lama, o frio, os piolhos, as epidemias e as rações de combate inglesas) enterrada nas tricheiras, o fotógrafo apanha-a em terreno aberto e alagado - cenário john wayniano avant la letre.
Olhando-os quase cem anos depois, perguntamo-nos quantos daqueles homens saberiam ao que iam.

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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Portugal enquanto ponte de barcas

Joshua Benoliel, Preparação para a guerra - Passagem da Cavalaria pela ponte de barcas, Tancos, 1916
imagem obtida aqui

Há algo de metafórico nesta imagem de Benoliel.
Em 1916, Portugal e o ainda recente regime  republicano estavam longe de ser um modelo de estabilidade, progresso económico e paz social. Elevada conflituosidade entre republicanos, entre estes e a Igreja e os monárquicos, golpes, greves, inflação, muitos são os males que se enfrentam na altura. E então, como quase sempre entre nós, foge-se para a frente.
Olhando a grande guerra, o poder decide participar no teatro bélico europeu.
O país, instável, sem estruturas, arrigementa tropa sem equipamento e logística para o combate, cuja verdadeira natureza desconhece, e para ser recebida com enfado pelos aliados. A guerra pesará e marcar-nos-á demoradamente. Inflacionará o número de militares que, retornados da Flandres, se recusarão muitas vezes a abandonar os quarteis e o soldo. O Exército torna-se um lastro extra. Um factor acrescido de instabilidade numa sociedade que aguenta com dificuldade e abana como a ponte das barcas em Tancos. E que, como os remadores erguidos, espera por algo.
Algo que chegará, tristemente, dez anos depois da fotografia.

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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SPECIMEN - Passer domesticus

Num tempo em que até Lisboa era pontuada por quintas e terrenos com mato, e em que não se sonhava com Playstations e Xboxes ( alguns afortunados almejavam uma coisa a que pomposamente chamávamos computador - o seu nome verdadeiro era Spectrum- e que era um objecto que se ligava a uma televisão e a um gravador de cassetes, durante meia hora, para carregar uma coisa a que pomposamente chamávamos jogo, e que quase invariavelmente dava erro durante o carregamento), a miudagem praticava toda uma variedade de actividades de exterior.

De entre estas, uma era dominada pela passarada. Dominada salvo seja. A moçanhada perseguia, apanhava, aprisionava e matava a passarada das mais estranhas às mais banais formas. Havia uma mistura de crueldade infantil com o mesmo primevo entusiasmo predatório que leva anafados cidadãos a madrugar em dias de inverno, os arrasta para a lama e o frio a léguas de casa, e os faz regressar noite caída com um minúsculo e esquelético coelho.

À sua escala, a maltinha caçava impiedosamente. Com fisga e pressão-de-ar, com esparrela (pequena armadilha de arame com mola, parecida aos engenhos de caçar ursos e outra caça grossa) e com visgo ( cola semelhante à de sapateiro, que barrada em ramos prendia pelas penas os incautos bichos que tinham a infeliz ideia de ali pousar). Faziam-se esperas junto a bebedouros naturais ou a outros que eram feitos de propósito, construíam-se abrigos para dissimular os caçadores e aguentava-se horas se preciso. Usavam-se chamarizes, pássaros judas que presos em gaiolas atraiam os semelhantes a uma triste sorte.

Durante anos, até ser arrebatado por uma súbita consciência ecológica e por um desvio de interesses ( aos catorze ou quinze anos começa-se a encontrar outras belezas bem mais interessantes que a das aves canoras), madruguei e com outros percorri quilómetros de bicicleta, e dediquei-me à arte de armar ao pássaro. Encontrado um local promissor, montava-se uma armadilha de rede que era accionada puxando uma corda.

Ansiava-se apanhar pintassilgos, bicos-de-lacre ou pintarroxos, variedades vistosas que suportam gaiola e eram apreciadas pelos mais velhos. Mas a maior parte das vezes calhavam-nos apenas pardais, que apesar do nome científico passer domesticus, são demasiado cientes da liberdade, canas rachadas que não se alimentam e definham até à morte em cativeiro. O destino natural desses pardais era a companhia do azeite e do alho numa frigideira, petisco algarvio a que eu não era particularmente atreito. Por isso, quando armava sozinho libertava-os e regressava das caçadas de mãos a abanar.

Depois concluí que gostava mais de percorrer as estradas que acompanham as ribeiras do que de esperar por pássaros que não fazia questão de comer, e que gostava muito mais de os ver ao longe do que de limpar diariamente gaiolas, e desfiz-me da rede de armar.

Mas ainda dou por mim a seguir com os olhos estes pequenos dinossauros de penas que todas as noites fazem um tremendo escagaçal nas árvores junto à minha casa. Como um gato velho a olhar da janela os pardais.

 
Júlio Assis Ribeiro, SP_A_PRDL_01 - Pardal ( Passer domesticus), 2005

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domingo, 10 de outubro de 2010

A Morte de Miguel Bombarda

A revolução republicana de 1910 esteve prestes a não acontecer. Acordados os planos, um incidente fortuito leva-lhe o líder civil um dia antes da data definida para a acção. Sentindo o agoiro, numa reunião realizada nas instalações duma empresa de Inocêncio Camacho, alguns dos envolvidos no golpe pensam a desistência. Mas a postura decidida do líder militar, o almirante Cândido dos reis, força a manutenção da conjura que se virá a desencadear a 4 de Outubro. Para ele, a revolução ou se faz nessa noite, ou não se faz. E afirma, premonitoriamente, estar disposto a sacrificar a sua vida na realização dos movimentos acordados. Assim, a revolta militar desencadeia-se e, não sem percalços (ver A Revolução deles) como o do suicídio do almirante, acaba por ter sucesso.

Mas na manhã de 3 de Outubro, um jovem tenente de 31 anos, num episódio de doença mental e alucinação, quase precipita o abandono do golpe. Aparício Rebelo dos Santos, que um ano antes estivera internado, durante três meses, no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles, faz-se apresentar junto do gabinete do director e solicita ser recebido. Miguel Bombarda, o homem que transformara o tratamento da doença mental em Portugal, levando-a do enclausuramento e tratamento por castigos corporais para os enquadramentos positivistas que vigoravam então na disciplina, abandona os seus aposentos no Rilhafoles por volta das 11:00h e ao entrar no gabinete é informado do desejo do tenente. Bombarda, que aceitara contrariado dar-lhe alta, a pedido do pai do militar e para fins de consultar sumidades em Paris, um ano antes, recebe-o de imediato e sem desconfiança.


É pois num cenário de total surpresa que Aparício dos Santos ergue um revólver e dispara. O médico reage a um primeiro tiro que o atinge numa costela, e agarra o tenente tentando desarmá-lo. Inutilmente. Antes de ser agarrado por um auxiliar, conseguirá ainda desferir vários tiros no ventre de Miguel Bombarda, que começa a sangrar profusamente. Consciente, é levado para o Hospital S.José onde, segundo se diz, terá ainda entrado pelo próprio pé.


A notícia do atentado ao deputado republicano por Lisboa voa espantosamente rápida por Lisboa. Alguns, cientes das opiniões do médico, que equiparara o jesuitismo a um problema do foro mental, acusam os padres de instigar o agressor. Geram-se ajuntamentos, no chiado, na calçada do Combro e noutros locais, que acabam por confluir na rua Garrett junto à redacção do jornal monárquico O Portugal, dirigido pelo padre Matos, onde se dão confrontos com a policia.


Joshua Benoliel, que se revelou um homem com talento para estar nos sítios certos, assiste à preparação da operação que tentará salvar Miguel Bombarda. Fotografa-o numa sala do S. José, deitado, com a cabeça assente sobre duas almofadas e segurando o lençol e a manta que o cobriam, enquanto ao lado se atarefam nos preparativos da operação que os doutores Francisco Gentil e Oliveira Feijão irão realizar. É calma a imagem, não se observam sinais de pânico e precipitações. Desconhecendo-se os factos e os presentes, poder-se-ia pensar estar perante uma representação fotográfica de uma situação hospitalar corrente dos inícios do século vinte. A imagem confere verosimilhança a relatos que descrevem um Miguel Bombarda consciente da morte, sereno mas inconformado com o seu fim não a lutar pela queda da monarquia, que tivera como provável, mas na sequência dos actos de um louco.

Joshua Benoliel, Miguel Bombarda antes da operação, 3 de outubro de 1910
imagem obtida aqui

Morrerá pouco depois das seis da tarde de 3 de Outubro, em resultado de infecção abdominal, poucas horas antes do início da revolta militar que planeara e desejava. Mas a sua morte poderá ter tido um papel mobilizador nos civis que nos dois dias seguintes se somarão aos poucos militares resistente na rotunda, e que serão em boa parte a razão do sucesso do golpe.

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Revolução deles


 Alberto Carlos Lima, grupo de civis revolucionários, 5 de Outubro de 1910
imagem obtida aqui

Há cem anos e um dia uma revolução militar deu os primeiros passos de forma oleada e promissora. Depois tudo começou a correr mal.

O almirante Cândido dos Reis, que estava destinado a ser o elemento chave e o coordenador do golpe, fica retido por falta de transporte e não consegue embarcar para o navio da Armada determinado. Seguidamente recebe informações incorrectas que davam como frustrado o inicio da revolta, e desaparece sem que mais saibam dele até ser tragicamente tarde. Será encontrado morto, numa azinhaga, presumindo-se o seu suicídio. As unidades sublevadas do exército encontram resistência e não conseguem avançar. Acantonam-se na Rotunda e aí a revolução fica praticamente acéfala. Apenas um oficial, o comissário naval Machado Santos, fica com os sargentos e os praças. A acção parecia condenada ao mesmo desfecho da revolta portuense de 31 de Janeiro de 1891.

Seguem-se bombardeamentos mútuos. As peças ao dispor de Machado Santos disparam sobre o Rossio. A resposta do capitão Paiva Couceiro, com a artilharia vinda de Queluz, provoca baixas na Rotunda e o seu avanço parece ser retido apenas por ordens superiores. Os cruzadores Adamastor, controlado pelo tenente Mendes Cabeçadas, e S. Rafael contrapõem à aparente superioridade terrestre dos monárquicos um bombardeamento, a partir do Tejo, dos ministérios e do Palácio das Necessidades, levando à saída do rei.

A situação militar em terra está em risco, mas os cerca de duzentos militares revoltosos vêem as suas posições engrossar com chegada de contingentes de civis que, com armas próprias ou com as que os barricados lhe entregam, se revelam decisivos. A acção da Carbonária faz que com que uma massa de comerciantes, artesãos, funcionários e outros membros da incipiente pequena burguesia citadina aflua ao contingente revoltoso. Os oficiais ausentes, reflectindo a situação, retornam às hostes revolucionárias.

Na manhã de cinco de Outubro de 1910, após os fortes bombardeamentos monárquicos da madrugada, um caricato incidente fará os republicanos sentir o cheiro da vitória e precipitará o fim do impasse militar. Um diplomata alemão tenta negociar um armistício para permitir a evacuação de cidadãos estrangeiros, e a visão de uma bandeira branca leva a crer que os do governo se rendem. Na confusão gerada, as forças monárquicas revelam-se impotentes perante a afluência de populares que acorrem ao Rossio e aos Restauradores. Machado Santos que aceitara relutantemente o armistício proposto pelo representante alemão, sente-se em posição de força e impõe a rendição ao general Gorjão Henriques, que comandava os oponentes.

Às nove horas da manhã, Carlos Relvas, acompanhado de Eusébio Leão e de todo um pequeno directório republicano, proclama do alto da varanda dos paços do concelho a instauração da República.

Nas ruas os civis, que antes se aglomeravam junto a uns poucos militares revoltosos, festejam efusivamente. Vemo-los amontoados em cima e em torno de um dos raríssimos automóveis, acenando os chapéus. A revolução, que era deles, vencera.

E não adivinhavam então as desilusões futuras.


(atribuída a) Joshua Benoliel,
Implantação da República, 5 de Outubro de 1910
Imagem obtida aqui


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