sexta-feira, 27 de abril de 2012

Os amadores Kodak

No início de 1929, pouco antes do crash bolsista que iniciaria a Grande Depressão, a Kodak lançou o seu ambicioso concurso de Fotografia amadora com uma agressiva campanha publicitária que anunciava prémios exorbitantes para a época. Para a empresa, a motivação era clara: acreditava que por cada prémio mais câmaras, rolos e papel venderia e que pelo investimento feito na organização e em publicidade obteria um retorno bastante superior.

Anúncio de imprensa do Concurso Kodak, 1929
imagem obtida aqui


A estratégia desenhada sobreviveria à depressão iniciada em Setembro desse ano e dois anos depois, numa economia bastante fragilizada, o valor total dos prémios triplicara com a Kodak a  insistir no seu objectivo de manter as câmaras fotográficas a trabalhar. Nessa mesma edição de 1931, são pela primeira vez aceites participantes exteriores à américa do Norte e a competição torna-se global.
O espólio das edições do concurso, que duraria até aos anos quarenta, encontra-se presentemente na posse da Biblioteca da Universidade de Rochester, onde dois articulistas do Blog LENS, do The New York Times, folhearam os álbuns e puderam constatar que no meio de imensas imagens “fofinhas” de crianças, de longe a categoria com mais entradas (e a que mais era incentivada pela Kodak), apareciam algumas fotografias de invulgar qualidade e outras de natureza bastante inesperada e peculiar.

D. J. Ruzicka, Pennsylvania Station, Nova Iorque,1929
imagem obtida
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F.H. Stevens, sapatos engraxados, Massachussets, 1942
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Luis Garcia Gurbrindo, Tourada, Espanha,cerca de 1931
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Na primeira edição existia um primeiro prémio, global e anual, de maior valor e prémios para cada estado americano, e cada província do canadá, na categoria de Fotografia de bebés e crianças bianualmente, nos meses de Março e Abril. Depois havia ainda dez competições secundárias nas categorias de Cenas de exterior, Retrato informal, Registo de uma história, Desporto, Animais, Cenas de natureza, Arquitectura, Interiores, Natureza-morta e Fotografia invulgar.
Sobre os autores e as circunstâncias que envolveram a realização das fotografias concorrentes, regra geral, sabe-se hoje muito pouco dado que o formulário do concurso apenas exigia o nome do autor, a morada, o tipo de câmara e o tipo de filme.


Formulário de inscrição no concurso Kodak, 1929
imagem obtida
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Para mais informações e imagens, dê-se uma olhadela no texto do LENS.

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quinta-feira, 26 de abril de 2012

O sorriso de Manuel Ferreira


Insisto no retrato de Manuel Ferreira.
Em 18 de junho de 1916, Lewis Hine, o fotógrafo do National Child Labor Committee, dirigiu-se ao King Philip Settlement (uma instituição de base voluntária que garantia educação a crianças e jovens de comunidades desfavorecidas) de Fall River, nos Estados Unidos, e realizou várias fotografias, algumas de grupos e outras de retrato individual.

Lewis Hine, 
Aula do curso de entalhador do King Phillip Settlement,
Fall River, Massachusetts, E.U.A.
18 de junho de 1916
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Uma das imagens de grupo apresenta-nos os alunos do curso de entalhador que funcionava aos domingos, dia de descanso nas fábricas, onde, entre os vários miúdos imigrantes presentes, se encontra Manuel Ferreira. O rapaz de quinze anos é igualmente fotografado por Hine em retrato isolado, onde confronta a câmara em pose direita, com um sorriso contido mas confiante. A imagem furta-se aos estereótipos, não há nela a exposição da vítima que se poderia esperar de um fotógrafo empenhado na denúncia do trabalho infantil, nem o fascínio pictorialista pelo personagem tipo, nem ainda o lado “pobrete mas alegrete” tão caro a certa mentalidade e a certa Fotografia.

Lewis Hine, Manuel Ferreira,
Fall River, Massachusetts, E.U.A.
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui


Manuel, nas suas roupas domingueiras, lida com a câmara em aparente auto-satisfação, formal mas não rígido, quase em pose de Homem de Estado.
Hine, que não era um fotógrafo de instantâneos, mas que não era decerto também um encenador tout-court, era estruturalmente um documentarista e não terá aqui desejado fazer alegorias ou metáforas. Há na imagem uma verdade, um contentamento estranho para quem trabalhava numa siderurgia seis dias por semana. Há em Manuel um sentido de vitória ao ser fotografado na escola onde se dirigia aos domingos com as suas melhores roupas.
Ser pobre e desfavorecido nos Estados Unidos do início do século vinte era, apesar de tudo, muito diferente de ter essa mesma condição em Portugal, ou em outros países do velho mundo. Socorro-me agora de uma fotografia algo posterior à de Hine.

Em 1940, Bernard Hoffman, fotógrafo da revista americana LIFE, deslocou-se a Portugal para realizar uma reportagem. O ano não é de todo irrelevante. A Europa encontrava-se em guerra, os Estados Unidos procuravam isolar-se do conflito (apesar do entendimento de Roosevelt de que a entrada americana seria apenas uma questão de tempo) e o regime português realizava o seu grande evento de propaganda e comemoração- a Exposição do Mundo Português.
O artigo sairá na edição de 29 de Julho desse ano, e fará acompanhar a reportagem fotográfica de quatro textos. Um versará sobre a vida pacata da aristocracia, outro sobre o vinho do Porto, e os dois restantes, bem mais interessantes para nós, tratarão da particular situação geopolítica do país. Os textos faziam-se acompanhar de uma colecção de lugares-comuns acerca dos portugueses (alguns bem merecidos, outros nem tanto), mas centravam-se em dois pontos: na periclitante situação de Portugal numa Europa em guerra, e na figura do ditador que controlava o país.
Apesar de bastante laudatórios em relação a Salazar, a quem eram atribuídos grandes méritos e progressos (afastara o país de uma diabólica república que quase o destruíra, construíra obra, era casto, um pai para o país, e tolerava com benevolência a oposição), há neles uma repetida e constante referência à decadência e à extrema pobreza do país. A dada altura, na página 67, uma imagem (dotada de uma legenda que refere os progressos que o ditador alegadamente conseguira na educação básica) surpreende-nos.
A imagem afasta-se do tom geral da reportagem fotográfica, saí do campo do pitoresco e do cartaz turístico . Num primeiro plano, cinco crianças de sete anos, magras, andrajosas, quase todas descalças, lêem em coro a partir de livros decrépitos para um professor que pressentimos fora de campo.
A legenda diz com desinformado benefício que a maior parte das crianças encarava os sapatos como algo que se usa para ir à missa ao Domingo (desconhecendo provavelmente que parte da população rural e dos arrabaldes urbanos, sobretudo a infantil, pura e simplesmente não tinha sapatos).
Para um observador de século vinte e um, as crianças magras de cabeça rapada e a roupa puída remetem-nos para um universo tétrico que irromperia cinco anos mais tarde quando, na derrocada da Alemanha nazi, fotojornalistas entraram em campos de concentração. A associação é decerto incorrecta e injusta mas iconograficamente as imagens são próximas.

Bernard Hoffman, Meninos lendo numa aula,
Portugal, 1940
imagem obtida aqui


Bernard Hoffman, Meninos lendo numa aula (pormenor),
Portugal, 1940
imagem obtida aqui




Manuel Ferreira sorri-nos confiante a partir duns Estados Unidos onde, perto de um século antes, o pensador francês Tocqueville notara que a pobreza estava longe de ser considerada uma condição natural do ser humano, vendo até na obsessão pelo progresso material um dos problemas da democracia americana.
A pobreza real e a exploração laboral existentes na América eram contrabalançadas por uma ideologia social centrada no princípio da igualdade e na possibilidade (muitas vezes, apenas teórica) de ascensão social e material. O Portugal que, vinte e quatro anos  depois da fotografia de Lewis Hine, Bernard Hoffman capta é ainda um país de certa forma ancorado no velho regime, socialmente dividido em categorias muito estanques, e em que aristocracia tradicional fora parcialmente substituída no mesmo domínio rigoroso da propriedade e do poder por uma burguesia muito conservadora, com idêntica aversão à mudança e à concorrência.
O Estado Novo que a Revista LIFE elogia pela sua estabilidade (a conflituosidade social e a instabilidade política da república haviam tornado, aos olhos internacionais, o país num caso digno de estudo) é um essencialmente um sistema politicamente tradicionalista, autoritário, imobilista, parcialmente beato.
A pobreza que era considerada natural e louvada na retórica pública como sinónimo de felicidade e honra, era estruturalmente necessária a uma economia que evitava a mecanização e assentava numa mão-de-obra miserável. Toda a reivindicação sindical era evitada e reprimida, e a representação laboral era um simulacro corporizado em sindicatos oficiais controlados pelo Estado. A imigração era contrariada, ao contrário dos tempos da primeira República, precisamente pelo risco de exaurir o fornecimento de trabalho barato, vital ao modelo económico.
Em 1916, Manuel Ferreira tinha provavelmente mais razões para sorrir na sua condição de trabalhador fabril adolescente em Fall River, do que os miúdos descalços que escapavam ao analfabetismo geral de 1940, para aprender alguma aritmética e muita religião (palavras da LIFE), num país que, em paz, garantia à maioria dos seus cidadãos uma existência meramente ao nível da subsistência. Uma existência que seria apenas comparável à de uma Europa destruída pela guerra, no curto período entre 1945 e a implementação do plano Marshall.

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quarta-feira, 18 de abril de 2012

O Contentamento

Lewis Hine, Manuel Ferreira,
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
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Lewis Hine, Manuel Ferreira (pormenor),
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui


Vem-nos do início do verão de 1916 o sorriso de Manuel Ferreira. Vem-nos de Fall River, no Massachussets, estado americano da Costa leste onde uma parte significativa da diáspora portuguesa se estabeleceu no início do século vinte. E vem-nos intermediado por Lewis Hine, o homem que ao serviço do National Child Labor Committee, fotografou e denunciou o flagelo do trabalho infantil numa das épocas mais prósperas da economia norte-americana.
Mas a imagem não é propriamente o que descreveríamos como a imagem de uma vítima. Falta à imagem o abatimento da postura, a expressão carregada, os sinais evidentes de pobreza ou de abuso, traços que encontramos em muito fotojornalismo e imagens incontornáveis da história da Fotografia (desde o pioneiro trabalho de Jacob Riis até ao contemporâneo Sebastião Salgado, passando pelo exemplo da campanha fotográfica da Farm Security Administration, na altura da Grande depressão).
Manuel Ferreira mira-nos desde 1916 carregando um sorriso contido, mas evidenciando contentamento. Hine, que sistematicamente anotava os aspectos relevantes que conseguia apurar acerca dos seus retratados, deixou-nos na cópia guardada pela Biblioteca do Congresso dos Estados, além dos forçosos nome e ocupação (trabalhador da siderurgia de Fall River), duas informações. Por ele sabemos que Manuel, aos domingos, se dirigia ao King Philip Settlement ( uma instituição de base voluntária que garantia educação formal, profissional e artística a crianças de comunidades desfavorecidas) e frequentava o curso de entalhador, visando tornar-se um trabalhador qualificado. Em informação não redundante, Hine acrescenta ainda que Manuel se apresentava com as suas roupas domingueiras.
Os registos de Lewis Hine municiam-nos com o necessário para percebermos o emproamento confiante com que o miúdo enfrenta a câmara, e que o ângulo ligeiramente contrapicado usado apenas ajuda a enfatizar. As primeiras décadas do século vinte foram décadas de verdadeira sangria demográfica em algumas regiões do velho mundo. Em Portugal, na Irlanda e em grande parte da Itália a partida em massa de jovens adultos, e respectivas famílias, atingiu por vezes o nível de verdadeira debandada chegando, apesar dos elevadíssimos níveis de natalidade da época, a esvaziar algumas aldeias miseráveis das regiões rurais. No caso português, o êxodo teve como destino prioritário o Brasil, mas a indústria da Costa Leste dos Estados Unidos garantiu alguns pontos de atracção e comunidades portuguesas importantes surgiram (como as de New Bedford ou Newark), nunca atingindo porém a dimensão dos números da emigração irlandesa e italiana na América do Norte.
Empurrava-os para o outro lado do Atlântico, por um lado, um grau de pobreza que hoje nos parece ficcional, em que subnutrição era uma constante (com reduzido acesso a proteína animal e uma dieta assente em batata e pão); em que grande parte da população vivia amontoada em casas de divisão única ou dupla, com chão de terra batida, muitas vezes sem chaminé ou janelas vidradas; e em que a roupa e o calçado eram bens quase inacessíveis, faltando muitas vezes o último; por outro lado, a par das questões materiais, havia nestas sociedades maioritariamente analfabetas uma ausência quase total de possibilidade de ascensão social. Jogava-se desde a nascença um jogo viciado, em que o resultado de uma vida estava determinado pelo meio em que se nascia.

Manuel Ferreira sorri-nos, através de Hine, provavelmente orgulhoso. Com o estranho orgulho de quem acha que a vida até lhe corre de feição. Se para Lewis Hine ele pertence a uma secção particularmente desfavorecida da realidade americana, a verdade é que comer carne regularmente, usar no dia de descanso roupas que se aproximam do vestuário janota do dia-a-dia da classe média, frequentar aulas ao domingo e tirar uma fotografia eram pequenas vitórias que um miúdo, oriundo da miséria e da mentalidade do velho mundo de então, encararia possivelmente como um tremendo progresso.

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Porquê as flores?...

Os homens (pelo menos, os heterossexuais) mantêm uma estranha e forçada relação com as flores.

Oferecemo-las porque somos empurrados pelas convenções, pelas comédias românticas americanas e pela necessidade de prevenir o desapontamento das nossas amadas.
Não é que os homens não gostem de flores. Simplesmente gostam tanto delas quanto do resto da planta, do caule e das folhas. Alguns de nós gostam tanto das flores quanto das raízes. As flores são apenas a parte da planta que se esforça. A parte que grita constantemente: Olha para mim, vá lá... Olha para mim!...
E todos sabemos que nem sempre quem se esforça por ser visto é quem é mais interessante...
...
...
...Onde é que eu ia?... Ah, as flores! Oferecemo-las porque alguém convencionou que eram o símbolo do amor romântico, do amor desinteressado. Ora, pelas mulheres eu não posso falar, mas penso poder dizer qualquer coisa pelos homens. Pois então aqui vai: Quando os homens se sentem obrigados a oferecer flores, fiquem sabendo, é porque estão interessados.
Nós, os homens, somos seres muito limitados neste aspecto. Não há grandes pacotes alternativos, os homens amam quem sexualmente os atrai. A única variante possível é os homens sentirem-se sexualmente interessados por mulheres que sabem não amar. E isso, bem se vê, é terreno pantanoso.
Sabemos que as mulheres são criaturas muito mais complexas que nós, que isto do amor é uma coisa complicada. E trabalhosa. E que as mulheres esperam certas coisas de nós. E oferecemos flores.
Mas, repito, desenganem-se! Quando oferecemos flores não é que sejamos uns românticos incuráveis e castos. Quando oferecemos essas provas de amor desinteressado, estamos a dizer: Eh pá, estou interessado! Mais que interessado!
E depois, porquê as flores ?...
Com tanta coisa para oferecer como símbolo de amor não sexual, foi-se logo convencionar que a coisa ideal para oferecer é os órgãos sexuais das plantas. Que é o que as flores são. Quem decidiu, vê-se mesmo que sabia o que estava a fazer!... Levando a coisa ao absurdo, se as plantas fossem gente e quisessem oferecer entre si símbolos equivalentes, dariam umas às outras ramos de pénis e vulvas. 
Sim, eu sei, a imagem é parva e desagradável. 

Os homens são seres com limitações em certas coisas. Eu então serei particularmente limitado. Há alturas em que olho para as flores e juro que só consigo ver o que elas são…

Júlio Assis Ribeiro,
SP_V_CHRTR_O1 - nicotiana glauca,
2010


Júlio Assis Ribeiro,
SP_V_FLRNDTRMND_O3 - Flor não determinada,
2010
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quinta-feira, 12 de abril de 2012

A carruagem

Aí por meados dos anos oitenta do século passado, bem distante dos telemóveis que tiram fotos de vários megapixéis, do bluetooth e do facebook, numa tarde de sol de primavera cruzei-me com uma placa publicitária que anunciava uma coisa absolutamente prodigiosa: “Revele as suas fotos em trinta minutos!”.
Passados cerca de vinte e cinco anos, explicar aos meus alunos o grau de espanto de uma coisa destas é uma tarefa hermenêuticamente desafiadora. Perante a actual acessibilidade da imagem e a sua desmaterialização (imprimir fotografias é algo que se impõe cada vez menos na presente lógica de circulação social de imagens), explicar a maravilha da chegada dos minilabs a uma pequena cidade de província tem quase os mesmos contornos da explicação da importância do aparecimento da máquina a vapor.
É complicado explicar a raridade do momento fotográfico e a contenção que impunha. Nas três últimas décadas de novecentos, já praticamente todas as famílias possuíam uma câmara, regra geral, uma pequena automática Kodak de rolo de 35mm, ou similar. Mas o seu uso estava limitado a momentos muitos específicos, celebrações (aniversários, batizados e casamentos), visitas a familiares e viagens. E nesses momentos o privilégio de carregar no disparador estava sujeito a grande restrição, havia que aproveitar muito bem o rolo que, para cúmulo, raramente era de trinta e seis exposições. O momento fotográfico era eminentemente solene e havia mesmo um ritual anual, que implicava a deslocação aos templos da fotografia, os estúdios fotográficos, e em que a miudagem era arrebanhada pela família, vestida com os trajes mais apresentáveis e penteada várias vezes, a fim de tirar as sacrossantas fotos tipo passe para a matrícula na escola.
É igualmente complicado explicar o diferimento da imagem. Entre o acto de carregar no botão da câmara e o momento em que se recebia na mão as fotografias passavam-se forçosamente dias. Uns poucos, quando era a preto-e-branco (os estúdios locais possuíam laboratório, processavam a película e faziam as ampliações), uma semana ou mais quando se tratava de um rolo a cores (em que tudo, diziam-me, era remetido para um distante laboratório, em Lisboa). Para a esmagadora maioria dos portugueses, a Fotografia tinha semelhanças com a agricultura, só se colhiam os frutos do trabalho bastante depois da sementeira. Havia, é claro, as Polaroids. Mas isso, tirando alguns afortunados, era algo que só víamos no cinema ou em séries americanas de televisão.
Anos mais tarde, quando a Fotografia se tornou para mim um interesse patológico descobri que, cerca de cento e vinte, cento e trinta anos antes do meu confronto feliz com a possibilidade de quase instantaneidade fotográfica, tinha havido um tempo em a Fotografia era forçosamente um acto imediato. Na sua infância, a técnica tivera algumas dores de crescimento e, a dada altura, o procedimento padrão era algo a que se convencionou chamar processo de colódio húmido. Este utilizava como suporte-base uma chapa de vidro, o que por si só era um enorme avanço relativamente aos dois processos precedentes: o Daguerreótipo, que permitia imagens de boa qualidade mas que, por ter como base uma chapa metálica, era intransponível para papel, não permitia cópias; e o Calótipo, que permitia múltiplas cópias mas que, ao usar o papel como suporte inicial, tinha limitações em termos da qualidade da imagem. O vidro apareceu como opção óbvia por ser relativamente transparente e regular, possibilitando boa qualidade e a realização de cópias.
Porém (há quase sempre um porém) o vidro, como suporte, apresentava dificuldades. A sua superfície não era passível de ser tornada fotossensível (como acontecia com as chapas metálicas do daguerreótipo, que sofriam um “banho” de prata que era depois convertida em sais por intermédio da acção de um ácido), nem era susceptível de ser impregnada com uma solução rica em nitrato de prata (como acontecia com o papel). Para tornar o vidro um suporte viável era necessário um terceiro elemento que ligasse os sais de prata à sua superfície, criando aquilo que se designa por emulsão. Uma primeira hipótese passara pelo uso da clara de ovo, designada comummente por albumina, que permitia a aderência dos sais e permitia a actuação dos agentes reveladores e fixadores, e sua posterior lavagem. Mas a albumina, ao não ser completamente translúcida e ao se combinar com os sais de prata de uma forma muito particular, não permitia uma fotossensibilidade elevada e exigia longos tempos de exposição, pelo que nunca foi verdadeiramente uma opção corrente na tomada directa de imagens. Uma outra opção foi o uso do colódio, uma substância viscosa e transparente, resultante da diluição do algodão numa mistura em partes iguais de éter e álcool, à qual era adicionada uma pequena porção de uma solução de iodeto (de potássio, geralmente). Esta opção foi por algum tempo descartada porque se verificava que, ao secar, o colódio deixava de permitir os processos de revelação e ampliação. Eu, que não ainda experimentei esta técnica, conheço duas explicações para o fenómeno: uma, mais sintética, a de Luís Pavão no livro “Conservação de Colecções de Fotografia”, diz que em resultado da secagem o colódio se torna impermeável, impossibilitando a acção dos banhos reveladores e fixadores; a outra, a de Rómulo de Carvalho na sua “História da Fotografia”, mais detalhada, diz que o nitrato de prata se combina apenas parcialmente com o iodeto contido no colódio (originando iodeto de prata) e que, ao secar, a porção não combinada do iodeto se cristaliza, originando áreas não uniformes na superfície do vidro.
Perante este problema do colódio, a solução mais evidente (e a mais utilizada) foi a de evitar os problemas da secagem condensando todo o processo de fabrico, exposição e processamento do suporte fotográfico no curto espaço de tempo que o material leva a secar, ou seja, em menos de trinta minutos. Assim, num período de cerca de duas décadas a fotografia foi essencialmente um processo instantâneo, em que apenas era possível adiar a realização das cópias. E isto significou que, durante esse tempo, os fotógrafos ou realizavam as suas imagens a passos do seu estúdio, fixo ou improvisado, ou se faziam acompanhar por um laboratório móvel, geralmente em forma de tenda ou de carruagem fechada.

Roger Fenton, Carruagem fotográfica
prova  de papel salgado a partir de negativo de vidro,
1855
imagem obtida aqui



Quando aborreço de morte os meus alunos falando-lhes da História da Fotografia, e deste aspecto em particular, apresento-lhes geralmente a imagem de Roger Fenton, em que uma carruagem "conduzida" por Marcus Sparling, o seu assistente, ostenta a inscrição “Photographic Van”. Nessa carroça, o britânico e os seus assistentes percorreram o palco da Guerra da Crimeia, em  1855, carregando chapas de vidro e químicos por território agreste, sobrevivendo ao pó, ao calor, às moscas, ao fogo inimigo e à vaidade dos oficiais britânicos que exigiam constantemente, apesar da escassez de material, ser fotografados.
A Fotografia então, pelo seu arcaísmo, era instantânea mas não era definitivamente fácil.
A Fotografia que eu considerava instantânea e fenomenal nos anos oitenta era muito mais prática, mas para os meus alunos é algo arcaico, estranho e complicado. Ao falar-lhes de minilabs, rolos e fotografias impressas pareço-lhes tão fora do tempo que, por vezes, me sinto como se fosse Sparling a conduzir a "Photographic Van".

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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Encolhidos


Neal Slavin, livro "Portugal",
edição Lustrum Press, 1971








É belissima a imagem que Neal Slavin usou na capa de “Portugal”, o livro que publicou em 1971, em edição da Lustrum Press. É belíssima, estranha e misteriosa.
Uma menina de gorro sorri-nos ligeira e serenamente, quase como Gioconda, a partir de um interior. Um acaso da moda de então faz com que a configuração do gorro acentue o caracter orientalizante da janela de cantaria, através da qual ela nos sorri. A capa de um livro chamado Portugal, geograficamente o mais ocidental país europeu, apresenta-nos assim uma fotografia que remete para um Levante indefinido.
Depois, a imagem atinge-nos por uma óbvia incongruência de escala, a criança e a arquitectura contradizem-se. Num primeiro momento, parece-nos uma menina que olha através de uma janela pequena, mas observando-se com atenção a altura da criança desdiz essa impressão. Os edifícios são feitos para gente grande e a altura do parapeito das janelas, mesmo das janelas pequenas, é pensada para o seu uso. Debatemo-nos então entre a possibilidade de uma criança que subitamente foi ampliada, qual Alice no País das Maravilhas, e a de uma criança normal retida num edifício de pedra e cal em terra de gente liliputiana.


Neal Slavin, Portugal dos Pequenitos, 1968
imagem obtida aqui




Neal Slavin, Portugal dos Pequenitos (pormenor), 1968
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Para um português atento e perspicaz, a estranheza da imagem é varrida por uma explicação bem prosaica. A menina de estatura corrente encontra-se dentro dum edifício real de escala diminuta, em Coimbra. A imagem foi captada no estranho parque temático do “Portugal dos Pequenitos”.
Inaugurado em 1940, no mesmo ano em que o regime salazarista, apesar da Europa mergulhada na guerra, se apresenta na sua grande “Exposição do Mundo Português”  em dupla comemoração dos centenários da independência e da restauração da independência, este parque faz com o grande evento um estranho contraponto. Não em termos ideológicos (Bissaya Barreto, o encomendador do parque era uma figura com responsabilidades oficiais) ou filosóficos ( ambos ilustram o isolamento voluntário que Estado Novo toma como estratégia, um auto-centramento nas “virtudes” nacionais), mas ao nível da durabilidade, da função e da dimensão.
O Portugal dos pequenitos propunha-se educar pela brincadeira (propósito alienígena no contexto da doutrina educativa salazarista) introduzindo as crianças nas arquitecturas tradicionais e populares (ou pelo menos naquilo que algumas elites consideravam como tal), nos grandes valores monumentais nacionais e na representação dos feitos do Império. Tudo isto era feito através da replicação de modelos arquitectónicos em edifícios de escala reduzida aproximadamente a metade, que forneciam uma experiência lúdica e pedagógica. Os projectos ficaram estranhamente a cargo de Cassiano Branco, arquitecto maior do primeiro modernismo português, mas figura politicamente incómoda para o regime, que o afastara totalmente da “Exposição do Mundo Português”, onde outros nomes fariam um ilusório universo monumental, propagandístico e provisório, com muito, muito gesso, numa estética de afinidades totalitárias. E Cassiano Branco desenha com enorme seriedade uma paródia perene ( involuntária?) à corrente da chamada “casa portuguesa” e aos marcos do Império Português para um parque que tinha por objectivo ensinar aos pequenos portugueses como era Portugal.
A fotografia de Neal Slavin, fosse ela uma imagem guardada num álbum fotográfico familiar, seria uma dessas obras-primas acidentais (dir-se-ia estatísticas) que são encontradas em feiras de velharias, que retratam com enorme felicidade estética momentos vulgares e insignificantes. Mas não o é. Trata-se duma fotografia tirada por um jovem americano a braços com trabalho de campo em Conímbriga, afrontado com a estranheza duma terra que lhe era alheia e que, na cidade universitária mais próxima, encontra um local que nuns poucos metros quadrados se propunha explicar tudo - com um país e um império encolhidos como se tivessem ido à máquina de lavar no programa errado. Tal como acontece aos nacionais, as casas de alvenaria daquele Portugal explicado aos pequeninos, por si só, decerto não terão esclarecido em nada Neal Slavin acerca da real  natureza do país. Mas proporcionaram-lhe uma oportunidade fabulosa de apresentar o mistério de um país obcecado com as suas representações.

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