quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A matéria-prima de Kipling

Havia no consultório médico onde me levavam em miúdo um quadro. Neste, uma ilustração algo acriançada ( que tanto quanto me recordo teria um comboio) conjugava-se com uma tradução do poema “If” de Rudyard Kipling. Aqueles versos, que não rimavam na versão portuguesa, foram das primeiras coisas que li.
Achava-os estranhos, provavelmente porque o elogio do estoicismo que corporizam é claramente antitético do padrão choramingas, coitadinho e desculpabizante da identidade nacional . Há fabulosos trechos choramingas na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o Bocage também por aí navega e o Fado é a nossa musica nacional. Até os nossos rappers conseguem fazer, imagine-se o prodígio, rap choramingas.
Mas voltando a Kipling, os versos amalgamaram-se na minha tenra idade com a figura de heróis que aguentavam sem gemer, corriam mundo e conheciam tudo. Um deles, que estranhei a príncipio, mas que se entranhou como a coca-cola, foi Corto Maltese, que conheci em revistas Tintim emprestadas, na “Balada do Mar Salgado”.
O personagem de Hugo Pratt percorre o mundo, dos Mares do Sul à Irlanda e à Etiópia, e cruza-se com um contigente de apátridas, oportunistas, militares, idealistas e demais gente estranha. Mas as improváveis histórias tornam-se verosímeis pela humanidade que nelas existe. Entenda-se aqui humanidade, não num sentido moralista ou piedoso, mas enquanto complexidade, variedade, realidade. Nas Aventuras de Corto Maltese há “underacting”, figuras que quase só respiram, um pouco ao modo de Clint Eastwood, e há “overacting”, personagens histriónicas que gesticulam e gritam. O preto e o branco das pranchas é complementado pelas inúmeras matizes de cinzento das histórias. Pressente-se um fervilhar nesse mundo que virava contrariado e atrasado do século dezanove para o vinte, dos heróis maiores que a vida, e do Romantismo, para uma outra coisa mais seca e mecânica. O Universo de Kipling, seria substituído por outro, com menos peso do indíviduo. As guerras mundiais que se adivinham, e entrelêem, em Corto Maltese serão já de outro século, matanças industriais e cegas. Criaturas imaginárias como Daniel Dravot e Peachey Carnehan, que se tentam tornar reis num recanto do afeganistão, em “The Man who would be King”, deixariam de fazer sentido. E assim será porque a matéria prima que as alimentava, gente verdadeira de feitos espantosos deixa de existir com esse carácter. Com a excepção de Lawrence da Arábia, as grandes figuras heróicas do século vinte são heróis da Máquina, ou da guerra mecanizada- Amelia Earhart, Charles Lindbergh, George Patton, Erwin Rommel.
Fica para trás toda uma galeria de aventureiros e exploradores mais ou menos oficiais que percorrem, ao longo do século XIX, as terras que se definiam como exóticas, estranhas ou desconhecidas- os nacionais Serpa Pinto, Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo; o americano Josiah Harlan; o alemão Adolf Schlagintweit e os britânicos James Brooke, David Livingstone e Tristram Speedy.
Este último, que inspirará em Kipling o pequeno conto “The Lang Men o’ Larut”, interessa-me em particular. Fisionomicamente grande ( o conto de Kipling tem a ver com uma disputa acerca de quem seria o mais alto homem num dos recantos do Império britânico), Tristram Speedy tem uma natureza que o leva a procurar deliberadamente a grandiosidade e a espectacularidade. Nascido na India, em Novembro de 1836, filho de um oficial do exército britânico, é educado na Inglaterra, mas retorna à Ásia natal seguindo a profissão do pai. Aí, em 1857, evidencia-se no esmagamento de revoltas na zona noroeste da India. Pouco depois, segue para o Corno de África, onde nomeado pelo Imperador da Etiópia, Tewodros II , assegurará o treino das tropas etíopes. Aprenderá amárico, a língua da corte, e adoptará as vestes locais, obtendo do imperador o título de Basha Felika. Cairá mais tarde em desgraça junto de Tewodros II , pelo que tem que abandonar o país. Será depois vice-consul britânico no porto de Massawa, no Mar Vermelho. Em 1864, dirigir-se-á para a Nova Zelandia, onde combaterá as revoltas maoris, e será promovido a capitão. A campanha militar da Abíssinia, leva-o de novo à Etiópia para assessorar o comandante britânico, Sir Robert Napier. O favorável desfecho desta expedição punitiva, que termina com o esmagamento do exército local e o suicído de Tewodros II, fá-lo retornar a Inglaterra com o cortejo triunfal, acompanhando o jovem herdeiro etíope, Alamayou Simeon, capturado aos sete anos de idade na capital etíope. O domínio da língua nativa da criança torna-o o tutor óbvio do pequeno príncipe, e Tristram fará do novo cargo uma espectacular operação de promoção pessoal. Faz-se fotografar, com roupas etíopes, por Julia Margaret Cameron e por Cornelius Jabez Hughes, na ilha de Wight, onde a Rainha Vitória tem uma das suas residências, e o nomeia tutor oficial de Alamayou. Faz também público gáudio em usar o título “Basha Felika” atríbuido pelo falecido imperador.
























Cornelius Jabez Hughes, Príncipe Alamayou da Etiópia e o Capitão Tristram Charles Sawyer Speedy,carte-de-visite de albumina,1868
imagem obtida aqui

Regressará à india em 1869 como superintendente da polícia do distrito de Oudh, acompanhado de Cornelia Cotton, com quem entretanto casara, e de alamayou. Porém a tutoria do príncipe é-lhe retirada, e a criança é levada para Inglaterra. Dois anos depois rumará à Malásia, como superintendente da polícia na ilha de penang. Demitir-se-á em 1873 para, à frente de um contigente de tropas indianas, ir para Larut ( daí o título do conto de Kipling) fazer frente às sociedades secretas chinesas que comprometiam a ordem nesta zona mineira da Malásia. Será bem sucedido e dois anos mais tarde seguirá para áfrica, desta feita para o Sudão. Entre 1883 e 1885 será novamente uma figura chave nas relações entre a Grã-Bretanha e a Etiópia. Participará na missão liderada pelo Vice-Almirante Sir William Hewett à corte do Imperador Yohannis IV da Etiópia, para resolver disputas sobre as linhas de Fronteira entre a Etiópia e o Sudão. Finalmente, em 1897, na participará na deslocação do Barão Rennell Rodd à Etiópia para, com o rei Menelik, negociar o Tratado Anglo-Etíope que definiu definitivamente a fronteira .

Porém, antes destas duas últimas deslocações , que nos fazem pensar num Tristram Speedy oficial, diplomático, formal, temos notícia de uma palestra sua num colégio feminino londrino. Aí, já a rondar os cinquenta anos, não se limitou a debitar factos e costumes da Etiópia. Mudou de figurino várias vezes, foi padre copta, cortesão, general, mercador, e entusiasmou a jovem audiência. Por fim , declarou “A própria palavra Abissínia significa confusão, as raças são confusas, a religião é confusa, as montanhas e vales são confusos e eu próprio me sinto confuso ao dirigir-me a tantas crianças. Assim, quanto mais confusos forem os vossos relatórios, melhor representarão eles o país e a palestra.”

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Brandos costumes (3)

Estúdio Horácio Novais, Rua S. Filipe Neri,Revolta de 26 de Agosto de 1931, Lisboa
imagem obtida aqui

Historicamente, a actual rotunda Marquês de Pombal era o epicentro das revoltas militares que decorriam em Lisboa. O Largo do Rato, Campolide e outras áreas adjacentes, por serem vias de acesso que a alimentam, eram palco de combates intensos.
A memória dos confrontos estranhamente quase desapareceu, raramente são referidos. Mas, na fonte existente no fim da rua da escola Politécnica, aqui vísivel à entrada do Rato, ainda perduram o buracos resultantes do impacto das balas na pedra.

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Brandos Costumes (2)

 Estúdio Horácio Novais, Revolta de 26 de Agosto de 1931
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Brandos Costumes


Estúdio Horácio Novais, Aviso à População, Agosto de 1931
imagem obtida aqui

A imagem não será brilhante e, dada a época, devo dizer que também não é natalícia ou festiva.
Mas, estranhamente, impressiona e lembra-me a imagem dos grafitos de sangue de Joshua Benoliel, de 1908 (ver Acalmação).
Data de Agosto de 1931, e reporta uma revolta contra a ditadura militar que estava em vias de se tranformar, qual crisálida, no Estado Novo. As forças da oposição, atabalhoada e descoordenadamente, tentam mais uma vez repor a ordem pré-1926.
Falham rotundamente, com um enorme tiro nos pés que incluiu bombardeamentos aéreos falhados e crianças mortas enquanto lançavam papagaios de papel. Ao todo saldou-se a revolta em cerca de quarenta mortos, e a acção do Governador militar de Lisboa e das forças da GNR foi decisiva no seu esmagamento.
A imagem capta um dos avisos à população que são afixados por Lisboa, onde o brigadeiro Daniel de Sousa faz imprimir, em letra a dar para o gótico, o seguinte :
" O Comandante militar determina e faz público:
1º - Que se mantenham em suas casas todos os cidadãos pacíficos e amigos da ordem.
2º- Que serão FUZILADOS todos os indíviduos da classe civil apanhados de armas na mão.
Lisboa, 26 de Agosto de 1931"

Estúdio Horácio Novais, Aviso à População (pormenor), Agosto de 1931

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sábado, 11 de dezembro de 2010

O olhar condescendente

Portugal, na transição de séculos, de dezanove para vinte, afigurava-se no contexto europeu como um paradoxo. Nação periférica, dependente, sem recursos materiais e humanos, quase um protectorado britânico, procurava no entanto impor-se como potência colonial.

Ao contrário de outros países, que começando tarde, se impunham por força do seu poderio industrial e humano, para Portugal a questão centrava-se sobretudo numa tentativa de não ser empurrado para fora do comboio. Resultava estritamente da forma como os portugueses se olhavam a si próprios, e não de um plano operativo organizado. Prestígio, História e orgulho nacional, eram os motores do colonialismo luso. A exploração dos recursos era acessória, limitada e muitas vezes concessionada a estrangeiros, sobretudo aos britânicos.

Faltava a indústria na metrópole para rentabilizar algodão e minério, faltavam recursos humanos para montar uma verdadeira estratégia de saque da riqueza das colónias. Este último ponto era deveras marcante.

Maioritariamente analfabeto, Portugal não possuía gente com capacidade técnica, em quantidade, que pudesse exportar. Às elites da época não era estranho o problema, preocupava-as a pouca qualidade dos colonos, que não tendo uma educação formal, vindos de uma cultura oral à semelhança dos povos indígenas, muito facilmente incorriam naquilo que era, por vezes, designado por cafrização. Misturavam-se, adquiriam hábitos e costumes locais, e aos olhos dos responsáveis coloniais não impunham correctamente a “superioridade” europeia .

Igualmente, esta dita incapacidade nacional não era desconhecida dos concorrentes europeus ou de origem europeia. Os boers, defensores acirrados da sua superioridade cultural, designavam como “cafres brancos” ou “cafres do mar”os portugueses que assumiam o papel de capatazes, intermediários na relação com os trabalhadores africanos.

Os direitos coloniais que os portugueses criam históricos não eram vistos como inquestionáveis pelos demais países. Opunham a este argumento a necessidade da ocupação real dos territórios. As tardias campanhas militares portuguesas tentaram colmatar as fraquezas, mas a fraqueza das forças não impediu o abdicar das pretensões sobre a ligação terrestre entre Angola e Moçambique para o categórico aliado, o Reino Unido, nem as várias disputas fronteiriças com outras forças, nomeadamente alemãs.

O sentido da História parecia virar a página, e os povos ibéricos aparentavam ser triturados pela roda do tempo. O império espanhol que se desfizera em grande parte com as vagas independentistas americanas, sucumbe quase totalmente com a guerra hispano-americana de 1898. O ainda mais fraco Estado português soava ser um improvável jogador no casino colonial, sem trunfos nem hipótese de bluff, sobrevivendo apenas na penumbra do poder britânico. A denunciada decadência dos povos ibéricos, além de ser inegável tema da intelectualidade local, afecta igualmente o olhar condescendente da florescente e industrial Europa do norte.

Insiro aí a imagem de Sarah Angelina Acland, que no início do século vinte se faz fotografar carregada numa rede por dois naturais da Madeira.
 
Sarah Angelina Acland, Auto-retrato em rede com dois carregadores e uma acompanhante, Madeira,Autocromo, 1908-1915
imagem obtida aqui


Poder-me-ão dizer que relacionar esta fotografia com a questão colonial é um exagero ou uma distorção. Que ainda hoje os veículos de tracção humana são uma das atracções turísticas da ilha e que ninguém vê nisso qualquer desconsideração. Porém, o que saliento é que a imagem nos apresenta, não os carros de cesto para turista usar , mas a rede de carregar em ombros, imagem que claramente nos remete para gravuras coloniais (algumas delas portuguesas) do Brasil, de África e do Caribe. Mas saliento mais o que considero ser o olhar da fotógrafa, neste caso. Não é o olhar caricatural, achincalhador, de certa imagética europeia relativa aos povos indígenas.

 J. Wexelsen, Mulher do fotógrafo,Beira,Moçambique,1907
 imagem obtida aqui


É antes um olhar sobre o exótico, o estranho, que é usado como figuração e cenário dos retratados. Uma perspectiva que assenta sobre a diferença do Outro, e a nossa demarcação relativamente a este. Um olhar que encontramos em outros exemplos da fotografia colonial, e que no contexto português é observável, por exemplo, em José Augusto Cunha Moraes, numa ou outra das suas imagens de Angola.

José Augusto da Cunha Moraes,
Caçada ao hipopótamo nas margens do rio Zaire,
Angola, cerca de 1878


Um olhar que perdurará e que ainda dura, mesmo que disfarçado de olhar antropológico ou turístico.
Não será particularmente interessante, para os que se deliciam com fotografias de revistas de viagens, ver o dia-a-dia dos corretores da Bolsa de Bombaim, com os seus fatos europeus e os seus carros alemães, ou uma mina altamente mecanizada no Chile. E no que nos diz respeito, lembro-me de um colega de faculdade austríaco, arribado por via do programa ERASMUS, que se dizia bastante surpreendido por não sermos um país de gente vestida de negro, de mulheres com lenço na cabeça. Percepção que tinha, sem saber explicar porquê.

E o porquê é um sul europeu vago, geograficamente indefinido (tanto pode ser Grécia, Espanha, Córsega ou Portugal), de casas brancas, roupa preta e carga em burros, que na Europa Central e do Norte ainda se vende em pacotes de viagem mais hotel com pequeno-almoço.

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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Natureza (a dar para o) morta


Alfred Robinson, Morangos, Diapositivo processo Paget,início do sec. XX
imagem obtida aqui

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O principezinho, o tutor e um outro

 



























Julia Margaret Cameron, Príncipe Alamayou com o Capitão Speedy e um dignatário abissínio anónimo,1868
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Principezinho

Julia Margaret Cameron, Princípe Alamayou, 1868
imagem obtida aqui


























Julia Margaret Cameron fotografou brilhantemente realeza e poderes imaginários de diferentes proveniências, do mito arturiano ao panteão greco-romano de deuses e reis. Fê-lo com encenação, com técnica e sem receio. Desfocava e expunha longamente, procurava o irreal e o inverosímel, e conseguia-o.
Mas, numa ocasião, fotografou um príncipe verdadeiro. Alamayou é a criança de sete anos que Cameron fotografa por várias vezes. Umas com o seu primeiro tutor inglês,o capitão Tristram Speedy. Outras, novamente com Speedy e um abissínio anónimo. Por fim, Alamayou figura só, em pose de descanso com suposto cenário abissínio e traje a condizer. Furta-se Julia Cameron ao fato de pequeno lorde inglês que o menino usará no seu dia a dia, e com que será registado noutros retratos. Quer o princípe de um império estranho, distante, orgulhoso, misterioso. E quere-o na ilha de Wight.
Mas creio que o ar obviamente triste do pequeno príncipe não é encenado. A sua presença em território inglês não é planeada ou desejada. Capturado meses antes em Magdala, capital provisória da Etiópia ( como quase todas as outras capitais que o reino teve), na sequência de uma expedição punitiva do império britânico, é levado para a Inglaterra após o tremendo massacre em que, quase sem baixas, as forças imperiais dizimam milhares de resistentes etíopes e levam ao suicído do pai de Alamayou, o imperador Tewodros II.
Em rigor, a criança é um troféu e acompanha o produto do saque da corte etíope, nomeadamente a coroa de Tewodros II, que é feito chegar à sede do império.
A rainha Vitória interessar-se-á pelo jovem herdeiro e providenciará para que seja educado como gentleman britânico, encaminhando a criança, que desconhecera a faca e o garfo até aos sete anos, para o mundo dos protocolos e convenções de Oxford. Esperava-se criar um novo imperador à imagem da Europa. Mas o príncipe será sempre um estranho, um prisioneiro, mesmo que sem grilhetas e vestido com o melhor tweed. Pede inúmeras vezes o retorno, ecoando o pedido que a avó tenta fazer chegar em cartas enviadas da terra natal, e que se pensa terem-lhe sido omitidas.
Não acontecerá nunca o retorno. Aos dezoito anos, falhados os estudos na Rugby School de Oxford, e insatisfeito com a academia militar de Sandhurst onde fora entretanto inscrito, Alamayou desvanece-se em seis semanas, após contrair pleuresia durante a estadia em casa de um seu antigo tutor, Cyril Ransome.
Sepultado na capela real de St. George, no castelo de Windsor, Alamayou é ainda hoje alvo de diferendo entre a Etiópia e o Reino Unido, exigindo a primeira o repatriamento dos restos mortais do princípe.

Há, nesta história de príncipes, muito pouco de Saint-Exupéry e bastante de Maquiavel.

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