segunda-feira, 19 de março de 2012

O mundo é uma bola

O cientista e professor Rómulo de Carvalho, vestindo a pele de poeta e o nome de António Gedeão, escreveu um poema nos tempos da ditadura em Portugal em que afirmava que a Terra, por acção do Sonho dos homens, pulava e avançava como uma bola nas mão de uma criança. Um cantor "baladeiro", Manuel Freire, no decénio de estertor do Estado Novo, musicou-o e "Pedra filosofal", era esse o nome da música e do poema, tornou-se uma das populares canções da contracorrente política, metáfora perfeita de um estado das coisas, em que se  pressentia que por mais contidas que fossem, estas acabariam por rebentar.
Neal Slavin, um jovem americano, sensivelmente por este mesmo período ganhou uma bolsa de estudo e chegou a Portugal para desenvolver trabalho de campo em arqueologia. Porém, em vez de se concentrar na busca proveitosa de cacos do período romano, acabou por gastar muito do seu tempo aproximando-se e fotografando os portugueses vivos do final do Estado Novo. Detectava neles uma estranha qualidade comum, uma tristeza colectiva, e para a interpretar socorreu-se da mitologia auto-explicativa dos portugueses- ligava essa natureza melancólica à Saudade, sentimento indefinido de perda e nostalgia.
No entanto, se adoptou esta caracterização que não se afastava muito da imagem turística que Portugal vendia então, as suas fotografias não se ficavam pela epiderme e revelavam um olhar que registava uma complexidade que ia muito além das imagens "para inglês ver". Fotografou, é certo, assuntos que eram comuns a uma imagem padrão do Portugal dessa época.Também ele fotografou velhas vestidas de negro, paredes caiadas de branco e os pobres do sul europeu . Mas as suas velhas não eram as dos postais e os seus pobres do sul não eram os pobres pitorescos e alegres da imagética Salazarista. Há nas suas fotografias um interesse e uma proximidade que o afasta desse ponto de vista abstractizante e torna as figuras que retrata mais concretas. Com a intuição dos estranhos, evitou certos erros de perspectiva. O "Portugal" que faz publicar em livro da Lustrum Press em 1971, é simultaneamente complexo e objectivo. Regista o interior, o rústico e o lastro do passado, mas não foge do urbano e da modernidade possível. Não sabendo diagnosticar plenamente a doença que via, captou com atenção cirúrgica os seus diferentes sintomas.


Neal Slavin,  Portugal, 1968
imagem obtida aqui

Agrada-me bastante a imagem acima. Há nela um duplo fechamento. Duas figuras isolam-se dum exterior vibrante e cheio de detalhes que não vemos mas que, qual caverna de Platão,  podemos intuir pelo seu reflexo. Os dois homens resguardam-se desse exterior em primeira instância através de um vidro. Mas essa barreira é secundária. O isolamento principal é fornecido pela sua concentração no jornal desportivo, que os separa não só da rua, como um do outro.
É corrente afirmar-se que na ditadura do Estado novo, mercê da Censura e do constrangimento político, os assuntos públicos de interesse estavam reduzidos aos três éfes: Fátima, Fado e Futebol. O Futebol garantia a única possibilidade de discórdia pública num país em que o consenso era forçoso, em que qualquer discussão, qualquer dissensão, era afastada do conhecimento geral.
Mas o futebol fornecia igualmente, a espaços e entre desaires,  a possibilidade quase única de aceder a um particular aspecto da mitologia identitária portuguesa: a ideia de ser um país pequeno e pobre que enfrenta gigantes e que, apesar da adversidade, os vence.
Distorcendo a ideia de Rómulo de Carvalho, encerrados num estranho casulo mental, para muitos portugueses os sonhos giravam à volta do futebol e, então como agora, para eles o mundo era "A BOLA". Ou o "Record". Ou "O JOGO".

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terça-feira, 13 de março de 2012

Mar de Adamastores

Insisto nos lugares-comuns que são oferecidos ao olhar alheio e nos são depois devolvidos de forma amplificada.Insisto em Toni Frissell, uma fotógrafa bastante interessante mas algo esquecida. E insisto numa fotografia da sua viagem de trabalho a Portugal, em Maio de 1946. Esta faz parte da selecção que a filha, Sidney Stafford, fez a partir do espólio entregue à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e que foi publicada no livro "Toni Frissell: Photographs 1933 - 1967", de 1994.

Toni Frissell, Portugal, Maio de 1946
imagem obtida aqui


Mais uma vez Portugal e o Mar, um mar desafiador e ameaçador, de Adamastores. Bem embalado numa imagem intensa de Frissell, que nos remete um pouco para o imaginário da corrente pictorialista da transição entre os séculos dezanove e vinte.

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quinta-feira, 8 de março de 2012

O Fingimento

Uma das comunidades com que Lewis Hine lidou quando, ao serviço do National Child Labor Committee, procurou registar o trabalho infantil foi a luso-americana do estado do Massachussets.
Num domingo de Janeiro de 1912, em New Bedford e nas imediações de uma Fiação, deparou-se com um grupo variado, maioritariamente de rapazes. Estes, quase todos de origem açoriana, dividiam-se em duas categorias: os que frequentavam a escola e os que trabalham na Fiação. Sondando-os apercebeu-se de uma fabricação.
Os miúdos, estudantes e trabalhadores, embora deambulassem em conjunto pela praia gozando o ócio domingueiro, encontravam-se separados por uma linha invisível mas bastante forte. Aqueles cujas famílias haviam chegado há mais tempo, provavelmente já nascidos em território dos Estados Unidos, encaixavam-se num padrão muito mais consentâneo com identidade americana. Frequentavam a escola, eram mais desprendidos e expressavam-se num inglês fluente. Eram os intérpretes de Hine.
Os outros carregavam uma história que lhes fora imposta. Iletrados, mal sabendo assinar o nome, quase não falavam inglês apesar de se encontrarem em New Bedford há já alguns anos. Tão ou mais pequenos que os demais, declaravam-se mais velhos. Lewis Hine concentrou-se em dois, Jo Viera ( João Vieira ?) e Antone Mello (António Mello?), que declararam ter 15 e 14 anos, respectivamente, apesar do seu desenvolvimento físico visivelmente o desmentir. Ambos trabalhavam havia um par de anos na Fiação junto à qual Lewis Hine encontrara o grupo a brincar.
A questão interessa ao fotógrafo do National Child Labor Committee. A sua presença não passa despercebida, nem o seu ofício e nem o seu equipamento. Fosse para garantir a colaboração da pequena multidão que atraiu, fosse para tactear a melhor forma de visualmente registar o embuste que detectara, gastou várias chapas nesse domingo. Como era comum no seu trabalho dessa época, as imagens apresentam-nos os sujeitos em pose mais ou menos ordenada, enfrentando a câmara. Nas provas, como era igualmente seu hábito na época, anota as circunstâncias e os temas. Na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos estão guardadas quatro impressões distintas dessas fotografias, quatro estratégias: numa imagem, Jo Viera e Antone Mello são fotografados isolados, quase a corpo inteiro, com a fábrica recortada no fundo; numa segunda fotografia, os dois miúdos aparecem separados por poucos metros de um grupo numeroso de rapazes que frequentavam a escola; na terceira imagem, Jo Viera e Antone Mello são registados enquadrados por quatro figuras mais altas, aparentemente um adulto e três adolescentes (embora, Hine se refira aos quatro como "men", ou seja, adultos); por fim, uma fotografia em que as duas crianças aparecem, junto à casa de Antone Mello, no meio de dois rapazes estudantes que afirmam ter uma idade inferior dois a três anos à afirmada por Jo e Antone. A esta última imagem, Lewis Hine chama “Comparison of Ages”(comparação de idades), e é a mais feliz das quatro na explicitação da mentira.

Lewis Hine, Jo Viera e Antone Mello,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui



Lewis Hine, 
Jo Viera e Antonio Mello junto a um grupo de estudantes,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui



Lewis Hine,
Jo Viera e Antonio Mello entre adultos e estudantes,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui


Lewis Hine,Comparação de idades,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui







Como retratista de uma realidade embaraçosa, Hine estava habituado a confrontar-se com a Mentira. Amiúde as crianças que sabia estarem a trabalhar numa fábrica eram apenas "visitas", e com maior ou menor talento proprietários e encarregados  apresentavam outras histórias para negar o óbvio. Naquele domingo nevado de 1912, a sua atenção concentrou-se na colaboração, activa ou tácita, de uma comunidade relativamente ao trabalho infantil. Jo e Antone repetem a Hine a versão que lhes foi instruída, uma alternativa mais simpática e construída do que a pura verdade. Falando com um dos miúdos estudantes, o mais alto, de treze anos, este confirma ao fotógrafo a sua suspeita. Diz-lhe que mentem acerca da idade. Que quando se vem das ilhas, mente-se acerca da idade e trabalha-se na Fiação. A mentira era óbvia mas fácil e conveniente. Era desenvergonhada, pública e organizada: para os recém-chegados, eram os padres da comunidade portuguesa quem tratava de tudo .
É interessante o facto de o miúdo que explicita a situação referir que se assim quisesse também podia enganar os donos da Fiação. É-o porque, em bom rigor, não havia ali um engano.Perante a descrição e perante o que é visível no trabalho de Lewis Hine dificilmente poderemos pensar que estes proprietários fossem gente crédula ao nível do absurdo. Uma mentira não é uma mentira quando é feita por um mútuo acordo, quando é uma convenção. Nessa situação está-se perante um fingimento. Os miúdos da comunidade portuguesa de New Bedford fingiam mentir e os donos da Fiação fingiam acreditar.

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segunda-feira, 5 de março de 2012

A estranha dieta da avestruz

Uma das mais antigas memórias que tenho, relativamente a imagens de cinema de animação, e que não sei precisar muito bem no tempo, é a de uma avestruz que engolia tudo o que encontrava (nomeadamente, muita coisa de ferro) e que a certa altura, depois de muito fugir, era capturada por um íman gigante.
Por ser desenho animado, nunca pensei muito na verosimilhança da coisa. Porém, há dias apercebi-me que às vezes a realidade é tão parva quanto um cartoon.
As aves têm o hábito, e a necessidade, de engolir pedras para as ajudar na digestão. Muitas aves comem quase tudo o que mexe e não mexe, o que conseguem enfiar pelo bico e o que se lhes seja de algum proveito alimentar (quem lidou com galinhas em miúdo sabe que, se for para comer, conseguem fazer espantosas habilidades, incluindo caçar roedores).
Agora a avestruz... a avestruz é mesmo um caso portentoso. No que diz respeito a engolir, envergonha o mais talentoso dos faquires e, ao contrário destes, vigora o princípio do "Engoliu, está engolido". O que vai pela goela abaixo não volta a subir.

Frederick William Bond,
O conteúdo do estômago de uma avestruz,
Londres, cerca de 1930
imagem obtida aqui

Cerca de 1930, Frederick William Bond fotografou o estranho conteúdo da barriga de uma avestruz que morrera  sossegadamente no Zoo de Londres.  Este incluía, entre outras coisas, um lenço de renda, um lenço simples, uma luva com botões, uma corda, sete moedas, ferragens variadas, ganchos, agrafos, parafusos e um prego de quatro polegadas.

O conteúdo do estômago da avestruz terá sido particularmente indigesto para Bond, um pacato contabilista, tesoureiro da Zoological Society of London. Enquanto fotógrafo era um amador pouco dado a fugir das convenções, registava as novidades zoológicas de Londres segundo padrões algo conservadores, um pouco a dar para o "fofinho". Mas aqui, ao invés de uma simpática natureza-morta, a coisa aproximou-se estranhamente das assemblages dadaístas ou construtivistas, que as vanguardas artística contemporâneas desta fotografia apresentavam com escândalo.

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quinta-feira, 1 de março de 2012

A verdadeira causa de espanto


Ao observar esta imagem, lembrei-me de um personagem de Woody Allen que, num dos seus filmes, afirmava não se espantar pelo facto do holocausto nazi ter acontecido. Dizia que a verdadeira causa de espanto é estas manifestações extremas da maldade não acontecerem com uma maior frequência, sabendo-se que a Humanidade é como é.

Hugo Jaeger, austríacos a saudar Hitler, 1938
imagem obtida aqui




A fotografia é esteticamente irrelevante, e tecnicamente (descontando-se o pioneirismo no uso corrente da cor) está longe de garantir muito interesse. Mas é precisamente a sua banalidade que me atinge, me espanta.
Ao contrário do Estado Novo português que, apesar dos esforços de António Ferro, sempre teve uma relação elíptica com a imagem, o devaneio psicopático nazi usou de forma sistemática e estruturada a imagem fotográfica. Um dos seus pilares de sustentação era precisamente o da propaganda, e esta soube criar um suporte imagético que fortaleceu simbolicamente o irracional imaginário do III Reich. Fê-lo aproveitando as capacidades de fantásticos criadores de imagens, como Leni Riefenstahl, que forneceram visões de glória, ordem e septicidade.
Mas Hugo Jaeger, o autor da imagem, não pertence ao mesmo panteão. Sendo um dos fotógrafos pessoais de Adolf Hitler, e o autor de algumas das mais reveladoras fotografias da intimidade do ditador, a verdade é que Jaeger era um fotógrafo medíocre. A excepcionalidade das suas imagens advém das circunstâncias excepcionais em que foram tomadas, e não da sua particular habilidade para as captar. A multidão que capta na imagem não é a mesma multidão que se vê nos filmes de Riefenstahl - uma multidão estilizada, ordenada, prenunciadora dum futuro grandioso e superior. A multidão de Jaeger é feita de gente banal, recente e genuinamente sugada para a insanidade ideológica nacional-socialista. Gente comum que atabalhoadamente saúda fervorosamente o seu novo líder. E é esta verdade, esta ausência de artificialismo que nos impacta. Será este batalhão de pais de família, adolescentes imberbes, vulgares empregados, domésticas e reformados que denunciará judeus e fornecerá o braço que executará algumas das mais brutais atrocidades da segunda guerra mundial.
A inexistência de singularidade é o que verdadeiramente perturba, vermos que não é necessária uma sociedade de assassinos e monstros para se pôr em marcha uma execução metódica do Mal.


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