terça-feira, 30 de abril de 2013

Na barriga de um boi

Richard e Cherry Kearton, felino, sem data
Arquivos do Natural History Museum, Londres


Os irmãos Kearton foram os pioneiros britânicos que, em pleno século dezanove, praticamente criaram a fotografia de Natureza. Dotados de um enorme voluntarismo, venceram quer as limitações técnicas da época, quer o facto dos seus modelos, aves e mamíferos selvagens sobretudo, serem pouco dados a colaborar.
Sem uma estrutura de apoio, sem experiências anteriores para os orientar, apenas o seu grande conhecimento da vida selvagem das ilhas britânicas e a sua capacidade de improvisação lhe garantiram o sucesso. Fieis ao principio de que não havia problema que não se resolvesse "com jeito e uma corda", ficaram famosas as pouco ortodoxas estratégias para conseguir imagens, que envolviam equilibrismo, malabarismo e disfarces. Penduravam-se em penhascos, trepavam árvores, empoleiravam-se e equilibravam-se nos mais estranhos sítios. Sabedores de que a bicharada tolerava tudo menos a presença da figura humana, construíram abrigos-esconderijo a partir de animais empalhados, bois e carneiros, ou em forma de rocha. Chegaram mesmo a ter um pequeno abrigo semelhante a uma casa  rústica que carregavam pelos campos.

Richard e Cherry Kearton, Boi empalhado, 1890's
imagem obtida aqui


Este procedimento proporcionou, claro, algumas desventuras, quedas e lesões. Pequenas desgraças plenas de potencial cómico que nos fazem lembrar o humor físico dos comediantes de cinema mudo (Charles Chaplin, Buster Keaton e companhia) que alguns anos depois divertiriam milhões de espectadores pelo mundo fora. Este divertido potencial não escapou ao radar da escritor e ilustradora norte americana Rebecca Bond.

Partindo dum episódio em que os irmãos se aventuram nos campos com um boi empalhado, a escritora criou um pequeno livro infantil ilustrado intitulado "In the belly of an Ox", publicado pela Houghton Mifflin Books  de Boston, nos Estados unidos.

Rebecca Bond, capa de "In the belly of an Ox",
da Houghton Mifflin Books


Rebecca Bond, página de "In the belly of an Ox",
da Houghton Mifflin Books

Não há, tanto quanto eu sei, tradução em língua portuguesa. E é pena. Seria um livro bem vindo na biblioteca aqui de casa...

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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Uma história do Digital

As primeiras fotografias completamente digitais foram obtidas no âmbito do projecto espacial norte americano. A sonda sem retorno Mariner 4 transportou uma câmara de televisão adaptada que codificou o sinal video, e enviou para a terra 22 imagens da superfície de Marte, cada uma com 0,04 megapixels de dimensão.

Para nós, que actualmente estamos habituados a aceder a imagens de vários megapixels de uma forma tão rápida que é sentida como instantânea, será talvez difícil de entender o frenesim que foi sentido naquele dia de 1965 em que chegaram os primeiros dados de imagem da sonda. Com uma impaciência quase  infantil, os funcionários da NASA não aguentaram esperar pelo demorado processamento da imagem, e imprimiram o código que chegava de Marte em tiras de papel, colorindo manualmente as sequências de números. Essas tiras foram dispostas lado a lado num painel de parede, onde William Pickering, o director do Jet propulsion Laboratory (a entidade que geriu a missão Mariner 4 para a NASA), a pôde então ver completa.

A primeira fotografia totalmente digital, obtida fora da fase de testes, teve curiosamente a sua primeira impressão na forma mais artesanal que se possa imaginar.

Autor não identificado,
1ª imagem de Marte pela Mariner 4, 1965
imagem obtida
aqui


Autor não identificado,
1ª imagem de Marte pela Mariner 4 (pormenor), 1965
imagem obtida aqui


Autor não identificado,
1ª imagem de Marte pela Mariner 4 (pormenor), 1965
imagem obtida aqui


1ª imagem de Marte pela Mariner 4 após processamento, 1965
imagem obtida 
aqui


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terça-feira, 23 de abril de 2013

ONTOS: Uma pulga em 1865

Durante grande parte do século dezanove, a fotografia foi coisa de amadores. Se é verdade que logo no início apareceram fotógrafos profissionais, a verdade é que até George Eastman a industrializar verdadeiramente, com a sua KODAK, a Fotografia era um processo artesanal, de pequena escala.

Os amadores, aqueles que agiam por interesse estético e técnico, foram então o grande motor dos progressos da Fotografia. Muitos deles associavam o gosto pelas imagens ao das ciências, o que era natural, dado que, nas primeiras décadas, fotografar implicava saber um pouco de química e de física, fabricar os seus próprios suportes e, às vezes, as suas câmaras.

O belga Adolphe Neyt (1830 - 1893) foi um desses pioneiros. Membro da Société française de photographie e da Association belge de photographie, interessou-se sobretudo por objectos microscópicos e astronómicos, experimentando com a óptica até conseguir imagens de uma clareza notável, mesmo pelos padrões actuais.

É sua esta pulga, de 1865, das colecções da George Eastman House.

Adolphe Neyt, Pulga, 1865
imagem obtida
aqui


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quarta-feira, 17 de abril de 2013

O cão de Billie Holiday

Durante os anos em que William Gottlieb foi uma espécie de cronista fotográfico do Jazz, cruzou-se praticamente com toda a gente que era alguém nesse mundo. Gente e não só.
Billie Holiday foi uma figura incontornável dessa era dourada. Uma voz invulgar e um estilo único de interpretação tornam-na inesquecível. Mas à semelhança de outras figuras suas contemporâneas no jazz, como Charlie Parker, parecia encerrar em si uma tendência auto-destrutiva.
Filha de um pai ausente (um músico das big bands da altura, sem vocação parental), com uma mãe negligente, violada antes da adolescência por um vizinho,  parece situar-se na infância a origem dessa tendência, provavelmente alimentada por uma falta de afecto que se tornou patológica.

Como muitas vezes explicam os especialistas, as carências tendem a ser sublimadas por substitutos, por excessos. E na vida da cantora não faltaram substitutos e excessos. Repetidas relações amorosas com homens abusadores, consumo de drogas, um abuso de álcool que culminaria na sua morte em idade muito precoce.  Nessa cadeia de sublimações duma vida sem afectos duradouros e serenos, talvez o único facto positivo, e conhecido, fosse  a sua adoração por cães.  Durante a sua vida adulta fez-se sempre acompanhar por um, e a sua dedicação a eles era indesmentível. Dizia-se que a sua lista de compras diárias consistia em três coisas: Cigarros, Gin e comida para cão.

Quando tal comportamento era totalmente incomum, ao contrário do mundo das celebridades actual, levava-os consigo onde quer que fosse. Trazia-os para as salas e clubes onde cantava, para os seus camarins, para os bares onde continuava a noite.

Foi por aí que Gottlieb se cruzou com Mister, o boxer que partilhou a vida de Holiday  nos anos quarenta do século passado. Animal nervoso, de feitio difícil e dentada fácil, todos o conheciam pelo nome. Habituado à vida conturbada da  dona, instituíra-se como seu defensor. Tenso, apenas relaxava junto à dona. Especulava-se que se atirara, por mais que uma vez, aos nada recomendáveis companheiros da cantora. Era o seu baluarte.

William Gottlieb, Mister, o cão de Billie Holiday,
Nova Iorque, E.U.A., 1940-48
imagem obtida aqui




Gottlieb fez cinco fotografias de Mister. Quatro junto a Billie Holliday. Na restante, o cão teve honras de modelo único, tratamento de vedeta. Com trela, sentado numa mala (de chapéus?), em estado de prontidão aparente.
Eu sei que os boxers são cães de olhar melancólico, mas vendo a fotografia, eu juraria que dá para perceber que este era um animal que carregava demasiadas responsabilidades.

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segunda-feira, 8 de abril de 2013

Com a Natureza e uma câmara

Richard e Cherry Kearton,
Fotografando um ninho, 1900
imagem obtida aqui


A Fotografia de natureza e da vida selvagem é um género cheio de especificidades, com um público muito particular e entusiasta, e toda uma série de publicações, concursos e prémios.
As suas origens ligam-se aos primórdios da fotografia, à ânsia de registar tudo que o que nos confronta. Uma das primeiras divisões que se dão na técnica é da divisão entre os que nela viam apenas uma arte, herdeira da pintura, e os que nela viam uma nova ferramenta para ciência, a forma de criar um novo olhar, mais analítico sobre a realidade. Tal divisão não é estranha em meados de oitocentos, na sua era pré-industrial, quando a fotografia não comercial era coisa de amadores com tempo livre, que antes se dedicavam ou às artes ou às ciências.

Desde então a tecnologia progrediu grandemente. Nos primeiros tempos pouco mais se podia fazer que fotografar animais empalhados, tais eram as limitações de equipamento e de sensibilidade dos suportes fotográficos, mas depois os avanços foram rápidos e chegou-se ao actual nível de sofisticação.

Mas algumas coisas não mudaram. Uma delas, que definitivamente ainda perdura, é de que este género não lida com modelos muito colaborativos. Os animais, regra geral, não são criaturas que se façam à câmara. Fotografá-los na natureza é um trabalho de paciência, de truque, de manha, por vezes de improvisação.
E muitas das práticas e soluções de hoje são as mesmas dos pioneiros, precedem-nos em mais de cem anos.

Richard e Cherry Kearton foram dois irmãos, filhos de lavrador, criados no meio rural inglês, que conheciam a fauna e os campos com grande propriedade. O mais velho, Richard, em 1882, actuaria como  guia da sua região natal para um editor londrino que procurava caçar patos. Sydney Galpin ficou fascinado com o avassalador conhecimento que o jovem de vinte e um anos demonstrava, e convidou-o para trabalhar como autor na sua editora. Em 1887, com dezasseis anos apenas, Cherry juntou-se ao irmão na Cassell, Petter & Galpin, trabalhando como funcionário de escritório. E será aí, na capital britânica, que se iniciará no hobby da Fotografia e contagiará Richard em tal actividade. Em 1895 publicam "British Birds' nests", com texto de Richard e fotografias de Cherry, um marco na edição, pois o livro furtava-se às tradicionais ilustrações por gravura, e mostrava "as coisas tal como são e não como supostamente serão", segundo as palavras dum membro do British Museum.
Os dois, profundos conhecedores do comportamento das espécies selvagens britânicas, aplicaram pela primeira vez algumas estratégias que hoje são padrão. Sabendo que a fauna bravia fugia da silhueta humana mas não de outros animais e de formas naturais, foram pioneiros no uso de abrigos camuflados. Sabendo da localização díficil de muitos ninhos e tocas improvisaram equipamentos e estruturas constantemente, demonstrando assinaláveis dotes de equilibristas e malabaristas, para chegar até eles. E, demonstrando um extraordinário fair play, disso não fizeram segredo. Pelo contrário, no seu livro de 1897, "With nature and a camera", reservaram o último capítulo para explicar o modo como haviam conseguido obter as imagens.

Richard e Cherry Kearton,
capa de "With nature and a camera", 1897






Richard e Cherry Kearton,
Fotografando um ninho, 1895-97
imagem do livro "With nature and a camera"

Richard Kearton,
Cherry Kearton num esconderijo, 1899
imagem obtida aqui


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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Os improváveis

Por vezes, numa imagem reúnem-se vários improváveis.

William P. Gottlieb foi um fotógrafo improvável. Nada, à sua nascença, o parecia encaminhar para tal destino. Nascido numa família empresarial, ligada à construção e à industria madeireira, tudo indicava que estava reservado para ele um lugar no mundo dos negócio. Mas um grave problema de saúde quando estudava economia na Universidade, acabaria por o forçar a uma convalescença longa. Uma convalescença  tornada suportável pela música, em particular o Jazz, que se tornou interesse avassalador e que o levaria optar pela crítica musical e pelo jornalismo como modo de vida.
Foi por falta de verba para fotógrafos que se viu forçado a pegar numa pesada Speed Graphic, uma câmara típica dos repórteres de então,  que lhe custou parte significativa da sua colecção de discos. E nos intervalos em que largava os seus blocos de notas, e a sua função maior de jornalista de textos, o autodidacta fotógrafo revelou-se melhor que a encomenda. Criou um dos mais impressionantes conjuntos de imagens daquela que alguns chamam a "Era dourada do jazz" - o período em que as "big bands" levaram o jazz de música duma vida nocturna mais ou menos duvidosa a grande fenómeno popular, e em que depois, com o declínio destas, a espantosa revolução do Bebop o levou de popular a género de culto.

William P. Gottlieb, Lead Belly no National Press Club,
Washington, 1938-48
imagem obtida aqui

Também para Lead Belly (alcunha de Huddie William Ledbetter) à nascença, em data não muito bem definida, não parecia estar reservado o destaque em importante publicações, nem os palcos mais notáveis das grandes cidades americanas.
Negro, nascido numa plantação do Louisiana em fins do século XIX, tudo apontava que, mesmo sendo um notável autodidacta e poli-instrumentista, enquanto músico não passasse das estreitas margens da sua comunidade ou, quando muito, que singrasse na única carreira possível para os seus, o abrilhantamento do submundo nocturno, como músico de bares duvidosos e bordéis.
E depois, a sua personalidade explosiva, que o tornava quase uma personificação dos piores estereótipos que caricaturizavam os negros americanos, parecia arredá-lo definitivamente do interesse da América mainstream. Bebia, tinha uma vida amorosa atribulada, envolvia-se em zaragatas, usava armas sem grandes pruridos, foi preso e condenado por várias vezes, inclusivamente por homicídio.
Seria porém a cadeia que que o resgataria do desconhecimento. Em 1933, num dos seus retornos à cadeia, (depois de ter conseguido obtido um inusitado perdão dum governador, que era conhecido por os não darmas que frequentava estranhos picnics na penitenciária onde o músico actuava para deleite de guardas e convidados) foi descoberto na gigantesca prisão agrícola de Angola, no Louisiana natal, pelo etnomusicólogo Jonh Lomax. Este esforçar-se-ia para conseguir a sua libertação e trataria de o apresentar à sociedade americana, abrindo-lhe o caminho para um percurso que, embora cheio de percalços, o levaria ao reconhecimento público, com um repertório espantoso de blues, gospel, canções de cowboys e até cantigas infantis.

O encontro destes dois improváveis deu-se por mais que uma vez. A predilecção musical de Gottlieb era o jazz, mas este era por natureza local de encontros. Abria-se sem complexos à musica latino-americana e ao blues, por exemplo. E Lead belly não era exactamente um homem que pecasse por falta de versatilidade. Das imagens produzidas nos encontro,s gosto particularmente da acima apresentada. É a mais sub-exposta, quase uma metáfora da dificuldade de chegar à visibilidade de um notável e complexo músico. Da vitória sobre a improbabilidade.

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