quarta-feira, 20 de março de 2019

A América rugosa e sombria de Robert Frank

Embora todos usemos essencialmente os mesmos meios quando fotografamos, tal como todos escrevemos e falamos com as mesmas limitações da língua, os grandes mestres fazem com as imagens o que os poetas fazem com as palavras. Criam um novo mundo de sentidos, abrem portas para outros caminhos.

Robert Frank é um desses casos. Diz-se que há uma fotografia antes do suíço-americano, e que há uma outra depois dele. Sobretudo, depois do seu livro/projecto “The americans”, que compilaria uma selecção de oitenta e três imagens dos milhares de fotografias feitas numa longa viagem de automóvel através do país.

Na grande década americana, os anos cinquenta, nos tempos do Baby Boom e da fé na prosperidade imparável, o jovem fotógrafo, que aí chegara em fascínio, ganhando a vida em publicações de moda feminina, cria um olhar progressivamente mais oblíquo, de imagens rugosas, composições improváveis e desencanto latente.

Aos brilhos e fulgores da superfície da Grande América que ainda hoje instila imaginários saudosos, contrapunha Frank um outro lado sombrio, talvez menos simpático e laudatório, mas certamente mais fundo.

Robert Frank,
Estúdio da CBS,
Burbank, Califórnia, E.U.A., 1956
imagem obtida aqui

segunda-feira, 18 de março de 2019

Um olhar familiar


No contexto da fotografia portuguesa, em virtude duma menor e tardia expansão da prática fotográfica, o olhar dos outros, o dos estrangeiros, acaba por ter uma importância que não terá correspondência em localizações mais “centrais” como a França ou a Inglaterra.

Com outros conhecimentos e abertura, libertos de condicionamentos locais, de pressões sociais e políticas, da “naturalização” dos hábitos nacionais, os fotógrafos estrangeiros introduziram frequentemente um olhar crítico e certeiro que não era fácil encontrar em praticantes locais, maioritariamente profissionais de estabelecimento comercial ou amadores com olho posto nos salões fotográficos.


Tim Motion, situa-se aqui numa situação particular. Irlandês, chega ao Carvoeiro e ao Algarve em 1961. A esse algarve, agora irreal, constituído quase só de locais, retorna para viver nos anos seguintes, aprendendo a falar português e tornando-se uma figura de Carvoeiro, onde haveria de ficar até aos anos setenta.
Aspirante a pintor, acabaria por tornar-se fotógrafo, muito por conta do encontro com o também irlandês Patrick Swift, que o levaria a ser responsável pelas fotografias do livro “Algarve,a portrait and a guide” (com texto do sul-africano David Wright).

As fotografias de Tim Motion não se situam no campo do folclorismo turístico, nem dum fotojornalismo mais convencional ou crítico. O facto mais notável acerca delas é talvez é o de serem simultaneamente um olhar de fora e um olhar familiar. Não sendo limitado pelo contexto fotográfico local, a sua abordagem não é a dum estranho. Fotografa as feiras, os pequenos eventos do dia-a-dia, as gentes que passam, com proximidade, sem a rigidez dum país preso a formalidades. Mas fotografa igualmente com o encanto de quem sabe da singularidade desses episódios.

Quem quiser melhor perceber do que aqui se fala, pode dar uma olhadela ao livro “Algarve 63” , um produto do esforço notável dos Encontros de Fotografia de Lagoa e em particular do seu director, Nuno de Santos Loureiro.


Tim Motion,
Raparigas do cultivo do arroz preparam-se
para a pausa para o almoço,
Silves, Portugal, 1963
imagem obtida aqui 








sexta-feira, 1 de março de 2019

A fonte da abundância

A cultura clássica instituiu como símbolo da abundância a cornucópia. Significando etimologicamente “corno da abundância” (cornu copiae), a palavra remete para a mitológica cabra Amalteia que terá amamentado Zeus/Júpiter.

Mas, formalmente, a cornucópia assemelha-se com frequência a um búzio. E, para quem tenha crescido num ambiente piscatório, este equívoco faz todo o sentido. Ouviram-se dos mais velhos relatos de um tempo em que o mar era a tal fonte da abundância. Uma abastança renitente em ser colhida, muitas vezes, mas visível e verdadeira.

Hoje, tais relatos parecem tão mitológicos quanto a cabra Amalteia. As visões submarinas já não são de cardumes imensos como manadas de bisontes, são mais de esporádicos agrupamentos de espécimenes num deserto líquido.

Artur Pastor fotografou atentamente essas comunidades de pescadores que tiravam um sustento difícil, mas fiável, do mar. E não sendo propriamente um fotógrafo de natureza, aqui e ali mostrou-nos as provas duma abundância de espécies e de capturas.

Através dele podemos provar, sem desconfiar da nossa própria memória, que não nos mentiam os velhotes que descreviam o mar. 
Para eles, a cornucópia era decerto um búzio.

Artur Pastor,
Redes de pesca,
 Albufeira, Portugal, 1980-1990
imagem obtida aqui