quarta-feira, 31 de março de 2010

Conta-me histórias

Por culpa de Tim Burton ( sim, é de bom tom iniciar um texto apresentando o culpado...), está na moda falar de Alice e do Pais das maravilhas. Ora, como a última coisa que eu faria seria ir contra uma moda, decidi dar também o meu esplêndido contributo.

Charles Lutwidge Dodgson nasceu a 27 de Janeiro de 1832, em Daresbury , na Inglaterra. Nasceu terceiro filho, mas primeiro rapaz, numa família que tradicionalmente se dedicava a salvar almas, ou a enviá-las de volta ao criador, em nome de sua majestade.


Oskar Gustav Rejlander , Rev.Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carroll), 1863

À semelhança do seu pai, optou pela via do sacerdócio na Igreja Anglicana, safando-se de uma eventual morte em combate, como a que levara o seu avô, em 1803. Dedicar-se-ia , no entanto, sobretudo à Lógica e à Matemática. 

Seriam, porém, a Fotografia e a Literatura que o tornariam célebre. E ficaria célebre, não como Charles Dodgson, mas sim como Lewis Carroll, pseudónimo que adoptou para a sua obra literária. Lewis Carroll foi uma opção baseada no seu próprio nome - Lewis é a anglicização do nome latino Ludovicus, que tem como derivação inglesa menos comum Lutwidge, o apelido da sua mãe; Carroll é igualmente uma derivação do nome latino Carolus, cujo correspondente mais corrente na língua inglesa é Charles.

Alguns percalços de saúde ajudaram a criar uma imagem, que associada ao teor das suas obras, o apresentariam como uma figura invulgar. Muito novo, em resultado de uma febre, dizem uns, perdeu a audição num ouvido. Outros dizem que essa perda foi mais tardia, e deveu-se a uma complicação de uma infecção com papeira. Aos dezassete anos sofreu de tosse convulsa, o que terá originado os problemas respiratórios que lhe eram reconhecidos na fase final da vida. Sofria igualmente de gaguez e de fortes enxaquecas. Crê-se ainda que sofreria de epilepsia do lobo temporal, o que explica as suas perdas de consciência. Por último, nos seus últimos anos coxeava e deslocava-se com dificuldade, facto atribuído a uma lesão no joelho contraída na meia-idade.
Embora a gaguez aparentemente lhe tenha dificultado a interacção social, destacou-se na escola pelo brilhantismo e facilidade com lidava com a matemática. Ganhou e perdeu bolsas de estudo, consoante se exercitava ou se entediava e perdia o entusiasmo. Acabou por ver ser-lhe atribuída a docência de Matemática no colégio Christ Church, em Oxford. Exerceu-a durante vinte e seis anos, ao que alguns indicam, sem grande entusiasmo. Continuaria porém, em várias funções, ligado a Christ Church até ao seu falecimento.
Em razão da sua ligação ao colégio, supunha-se que Charles Dodgson fosse ordenado padre da Igreja anglicana, no espaço de quatro anos. Mas, na realidade, parecia nutrir pelo sacerdócio o mesmo entusiasmo que devotava ao ensino da matemática. Durante algum tempo, adiou a tomada de votos, acabando finalmente por ser ordenado diácono em 1861. Um ano depois deveria ser ordenado padre. Solicitou que tal não acontecesse. Esta atitude deveria determinar a sua expulsão, facto que, de forma nunca totalmente explicada, não veio a acontecer.

O director do colégio era então Henry Liddell, e sabe-se que Dodgson se tornara um amigo chegado da família Lidell, em particular da esposa, Lorina, e dos filhos ( um rapaz, Harry, e três raparigas, Lorina, Edith e Alice).

Charles Dodgson acompanhará durante anos a família Liddell, em saídas e passeios e partilhará algum do seu tempo livre com as crianças, acompanhadas pelos pais ou pela governanta , Ms Pritchett.

A elas tirou fotografias - hobby que levava particularmente a sério. Para elas, e para Alice em particular, inventou histórias visando entreter. Por insistência dela, redigiu um manuscrito para oferta, compilando as narrativas criadas. Este, depois de aumentado, e de depurado de pormenores biográficos, esteve na origem de “Alice no país das Maravilhas”, livro que tornaria Dodgson, aliás Carroll, famoso e rico.

Para além das crianças da família Lidell, fotografou muitas outras meninas, com as quais parecia dar-se especialmente bem. Fotografou algumas delas nuas.

Rev.Charles Lutwidge Dodgson , Beatrice Hatch, 1873 ( colorida manualmente por Anne Lydia Bond, segundo instruções de Dodgson)

À medida que os livros infantis o tornavam progressivamente conhecido, passou a evitar cada vez mais aqueles que se procuravam apresentar pessoalmente. Tornou-se uma personagem avessa a novos contactos, algo que ajudou a caracterizá-lo como uma figura estranha.
Charles Lutwidge Dodgson morre a duas semanas de fazer 66 anos, em 14 de Janeiro de 1898. Morre vítima de pneumonia, originada por uma gripe.

Ao longo do século vinte será apresentado como um homem invulgar e tímido, solteiro, avesso ao contacto com adultos. Alguém que só se sentia à vontade no meio de crianças, com quem manteve contactos muito chegados, trocou correspondência e que usou como motivo central da sua obra fotográfica e literária.

Esta caracterização segue duas vias. Uma, que o apresenta como um homem que nunca cresceu, inocente e tímido, devotado às crianças - uma figura santificada, algo como uma Madre Teresa da Literatura Infantil. Outra, que entusiasma muito mais o nosso olhar, cada vez mais cínico e céptico, segue uma leitura freudiana de Carroll – a sua proximidade com as crianças, resulta de uma sexualidade não resolvida, de uma fixação sexual. A sua opção por companhia pueril, as suas fotografias de nus infantis e de crianças semi-despidas, as referências a orifícios e a coisas que crescem e encolhem em “Alice no País das maravilhas”, convencem muitos do carácter perverso que esta abordagem atribui a Charles Dodgson. Vladimir Nabokov considerou-o um protótipo do seu Humbert Humbert de “Lolita”.

Contar histórias e fotografar, para o reverendo Charles Lutwidge Dodgson, não passariam de pretextos para se rodear de ninfetas.

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2 comentários:

  1. Se LEWIS CARROL era pedófilo ou não, isto já não tem a menor importância, mesmo porquê naquela época vitoriana na moralidade intolerante, ele poderia no máximo sublimar tais inclinações e não dar curso à sua reprimida sexualidade. Já não lhe bastassem os achaques que herdou da Mãe Natureza.
    Outra coisa, como moeda de troca - ele encantou gerações de meninos e meninas around the world...só isso já o levaria para o Céu, se existir um.

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  2. Este texto funciona como uma introdução à figura de Lewis Carroll. Num dos textos seguintes, "Uma história mal contada"( cuja leitura recomendo, passe a imodéstia), eu abordo o facto de alguns investigadores mais recentes terem concluído que aura de pedofilia que caiu sobre ele assentar não propriamente em factos, mas antes no uso de um ponto de vista de século vinte para analisar a sociedade vitoriana, cujos costumes e convenções era radicalmente diferentes,e no facto de os seus herdeiros terem tentado ocultar aspectos da vida mundana de Carroll, que não seria tão absolutamente casto e alheio a companhia feminina adulta como era desejável num diácono solteiro que escrevia histórias infantis.

    Depois, independentemente da vida do homem há a obra. Fosse o quer que fosse, Carroll não estaria isolado. Imensas obras, que são o céu dos leitores ou apreciadores de arte, foram feitas por homens de estranhos hábitos, terríveis vícios e questionáveis vidas.

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