sexta-feira, 24 de agosto de 2012

As cheias

Em finais de Novembro de 1967 desabou sobre o Ribatejo, Lisboa e os seus arredores, uma chuva tremenda que redundaria em cheias e tragédia.

Num primeiro momento, a imprensa noticiou a desgraça. Mas à medida que se foi tornando clara a escala do acontecimento ( o “Diário de Noticias” indicava a 29 de Novembro o número, não definitivo, de 427 mortos), entrou em acção a máquina do Estado, cuja função era demonstrar que em Portugal nada de anormal e mau acontecia. Ordenou a cessação da contagem pública das vítimas, a censura interveio e fez baixar as centenas de mortos, que se queriam pôr nos cabeçalhos dos jornais, para umas mais salutares dezenas. E assim, oficialmente, o pico de pluviosidade, deslocou-se dos arrabaldes de construções clandestinas e de bairros de lata para o apresentável Estoril.

Mas como não se pode ocultar o inocultável, as populações de Lisboa e Ribatejo confrontaram-se durante dias com a limpeza e a descoberta de cadáveres em verdadeiros cemitérios de lama ( estima-se em mais de 700 o número efectivo de mortos). E organizaram-se em peditórios, espectáculos de beneficiência e subscrições para ajudar sobreviventes e desalojados. Se o regime fazia publicitar a «cadeia de solidariedade humana (…) sem distinção de classes» no "Diário da Manhã", a verdade é que desconfiava. Policiou a assistência dos movimentos universitários, pondo a GNR a afastar os estudantes do auxílio. 

Com as notícias controladas localmente, escapou-lhe o controle sobre o fotógrafo inglês Terence Spencer, que fará o registo do desastre, sem complacência, para a revista americana Life. Na edição de 8 de Dezembro desse ano, num parágrafo apenas, a coisa é exposta (com os números oficiais portugueses) e sem deixar de atribuir as causas da catástrofe a claros problemas de ordenamento urbano.


Terrence Spencer, criança após as cheias, 
arredores de Lisboa, Portugal, 1967
imagem obtida aqui


Terrence Spencer, Camponeses carregando cadáver, 
Portugal, 1967
imagem obtida aqui


Terrence Spencer,
Familiares durante velório de vitima das cheias,
Portugal, 1967
imagem obtida
 aqui


Terrence Spencer, Recuperação de bens após as cheias,
Lisboa, Portugal, 1967
imagem obtida
 aqui



A censura tentara inutilmente tapar a realidade com um pano esburacado. Os anúncios de familiares de desaparecidos espelharam, por esses dias, o negrume da desgraça que as outras páginas dos jornais eram forçadas a disfarçar. Alexandre O’Neill basear-se-á neles para o seu poema “ A bicicleta”, em que 25 de Novembro é alterado para 25 de Janeiro. A angústia não dependia de uma questão de datas.

“O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro.
Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior. “

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