quarta-feira, 18 de abril de 2012

O Contentamento

Lewis Hine, Manuel Ferreira,
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui

Lewis Hine, Manuel Ferreira (pormenor),
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui


Vem-nos do início do verão de 1916 o sorriso de Manuel Ferreira. Vem-nos de Fall River, no Massachussets, estado americano da Costa leste onde uma parte significativa da diáspora portuguesa se estabeleceu no início do século vinte. E vem-nos intermediado por Lewis Hine, o homem que ao serviço do National Child Labor Committee, fotografou e denunciou o flagelo do trabalho infantil numa das épocas mais prósperas da economia norte-americana.
Mas a imagem não é propriamente o que descreveríamos como a imagem de uma vítima. Falta à imagem o abatimento da postura, a expressão carregada, os sinais evidentes de pobreza ou de abuso, traços que encontramos em muito fotojornalismo e imagens incontornáveis da história da Fotografia (desde o pioneiro trabalho de Jacob Riis até ao contemporâneo Sebastião Salgado, passando pelo exemplo da campanha fotográfica da Farm Security Administration, na altura da Grande depressão).
Manuel Ferreira mira-nos desde 1916 carregando um sorriso contido, mas evidenciando contentamento. Hine, que sistematicamente anotava os aspectos relevantes que conseguia apurar acerca dos seus retratados, deixou-nos na cópia guardada pela Biblioteca do Congresso dos Estados, além dos forçosos nome e ocupação (trabalhador da siderurgia de Fall River), duas informações. Por ele sabemos que Manuel, aos domingos, se dirigia ao King Philip Settlement ( uma instituição de base voluntária que garantia educação formal, profissional e artística a crianças de comunidades desfavorecidas) e frequentava o curso de entalhador, visando tornar-se um trabalhador qualificado. Em informação não redundante, Hine acrescenta ainda que Manuel se apresentava com as suas roupas domingueiras.
Os registos de Lewis Hine municiam-nos com o necessário para percebermos o emproamento confiante com que o miúdo enfrenta a câmara, e que o ângulo ligeiramente contrapicado usado apenas ajuda a enfatizar. As primeiras décadas do século vinte foram décadas de verdadeira sangria demográfica em algumas regiões do velho mundo. Em Portugal, na Irlanda e em grande parte da Itália a partida em massa de jovens adultos, e respectivas famílias, atingiu por vezes o nível de verdadeira debandada chegando, apesar dos elevadíssimos níveis de natalidade da época, a esvaziar algumas aldeias miseráveis das regiões rurais. No caso português, o êxodo teve como destino prioritário o Brasil, mas a indústria da Costa Leste dos Estados Unidos garantiu alguns pontos de atracção e comunidades portuguesas importantes surgiram (como as de New Bedford ou Newark), nunca atingindo porém a dimensão dos números da emigração irlandesa e italiana na América do Norte.
Empurrava-os para o outro lado do Atlântico, por um lado, um grau de pobreza que hoje nos parece ficcional, em que subnutrição era uma constante (com reduzido acesso a proteína animal e uma dieta assente em batata e pão); em que grande parte da população vivia amontoada em casas de divisão única ou dupla, com chão de terra batida, muitas vezes sem chaminé ou janelas vidradas; e em que a roupa e o calçado eram bens quase inacessíveis, faltando muitas vezes o último; por outro lado, a par das questões materiais, havia nestas sociedades maioritariamente analfabetas uma ausência quase total de possibilidade de ascensão social. Jogava-se desde a nascença um jogo viciado, em que o resultado de uma vida estava determinado pelo meio em que se nascia.

Manuel Ferreira sorri-nos, através de Hine, provavelmente orgulhoso. Com o estranho orgulho de quem acha que a vida até lhe corre de feição. Se para Lewis Hine ele pertence a uma secção particularmente desfavorecida da realidade americana, a verdade é que comer carne regularmente, usar no dia de descanso roupas que se aproximam do vestuário janota do dia-a-dia da classe média, frequentar aulas ao domingo e tirar uma fotografia eram pequenas vitórias que um miúdo, oriundo da miséria e da mentalidade do velho mundo de então, encararia possivelmente como um tremendo progresso.

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