terça-feira, 22 de novembro de 2011

Uma mascarada maior

O uso de gás nas frentes de combates da primeira guerra mundial provocou um enorme choque.
Primeiramente fê-lo entre os próprios militares. Nenhuma outra arma demonstrava de forma tão absoluta a desumanidade daquela guerra. Com o gás que deslizava pelas trincheiras desapareciam todas as noções românticas e romanescas associadas ao ofício militar, não havia bravura alguma em morrer asfixiado por um inimigo quase invisível, não havia baioneta ou pistola que valesse, o gás era um inimigo sem corpo. E era uma arma cega, difundia-se pela acção do vento. Não raras vezes, por súbitas alterações atmosféricas, surpreendia as tropas do lado que lançara o ataque. Provocava uma morte dolorosa, muitas vezes lenta, e deixava aos sobreviventes mazelas duradouras, nas vias respiratórias, na vista e na pele. O terror que provocava fez nascer uma nova palavra no léxico popular, o termo “gaseado”. Embora tenha agora caído em desuso, foi muito comum até aos anos oitenta e noventa (curiosamente, ou talvez não, o seu uso coincidiu com o tempo de vida dos veteranos portugueses da chamada Grande Guerra) e servia para designar alguém que apresentava comportamentos irracionais ou perturbações mentais.
A primeira guerra mundial provocara, pelas suas condições específicas (um condicionamento forçado de milhares de homens num espaço diminuto, sem as mínimas condições de vida, e com a quase certeza estatística de uma morte, fosse por bombardeamentos aleatórios, ataques de gás ou avanços verdadeiramente suicidas frente às metralhadoras e morteiros inimigos), o aparecimento invulgarmente alto de soldados incapacitados por problemas psíquicos. Inicialmente, o fenómeno foi lidado com a brutalidade que se esperaria das incompetentes chefias de então, que associavam estas debilidades dos soldados à cobardia. Nalguns contingentes, nomeadamente o francês, tentou-se resolver a coisa, antes que alastrasse, com o rápido e exemplar fuzilamento dos soldados. O que obviamente não resultou, e levaria a que finalmente a histeria do combatente fosse equacionada como uma questão médica.
Os problemas mentais não eram necessariamente uma sequela física do gás, muitos dos doentes não tinham sido vítimas desse tipo de ataque específico, mas o facto é que no imaginário popular os soldados que retornaram da frente da Flandres alterados só poderiam estar assim por acção de algo profundamente diabólico. E o gás era o candidato perfeito.
Entra assim o gás de forma fulgurante na consciência pública, depois de o ter feito na vida militar, como símbolo do terror da guerra moderna. Na eminência de uma guerra nos países ocidentais aparece geralmente o fantasma da guerra química, e para sossegar as populações são comummente usadas as máscaras de gás como recurso. As máscaras eram, e ainda são, usadas como um conforto psicológico. O veneno gasoso das trincheiras era cego e retirara qualquer papel activo à vítima. Com as protecções respiratórias pretende-se restituir a acção. Devolve-se ao indivíduo a capacidade de proteger-se e de resistir. A imagem da máscara fornece a ilusão (é disso que se trata, a eficácia real de muitas máscaras é na verdade mínima) de uma possibilidade de normalidade. Fazem-se máscaras para os soldados e para os civis, para adultos e para crianças, para humanos e para animais, para animais de estimação e para bestas de carga. Antecipando guerras, distribuem-se e com elas faz-se um simulacro de segurança, encena-se uma vida normal com o gás. Na antecâmara da segunda guerra mundial, na Europa e nos Estados Unidos são recorrentes os exercícios em que os envolvidos fingem exercer actividades regulares apenas com as máscaras, vão à escola de máscara e trabalham na fábrica com esse novo equipamento.
No primeiro trabalho que realiza para a revista LIFE, Marie Hansen fotografa em 1942 a actividade de um campo de treino das WAACs (Women Army Auxillary Corps), um corpo feminino e auxiliar do exército americano. Aí regista uma dessas situações em que se comprova que o irracional e o inverosímil se introduzem sorrateiramente no quotidiano (e onde, apesar de óbvios, parecem permanecer indetectados) - filas e filas de jovens mulheres, fardadas e sentadas, aguardam compostas e com aparente naturalidade enquanto usam o equipamento de protecção respiratório e ocular.

Marie Hansen, Rows of WACS with Gas Masks , 1942
imagem obtida
aqui


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