terça-feira, 25 de outubro de 2011

O país das sombras de chumbo

Alturas há em que, sobre os países, as nuvens parecem carregar chumbo.
Nascida da súbita (mas não totalmente inesperada) morte da União Soviética, a Rússia actual titubeava no último decénio de mil e novecentos. O seu líder inicial, Ieltsin, fora em larga medida o coveiro mor da aventura soviética e partindo de uma aura de coragem acabaria os seus dias de presidente num registo patético, como uma personificação do estereótipo do russo beberrão. Num par de anos, o país decaíra de cabeça dum império que financiava pretendentes a revolucionários e “repúblicas democráticas” a uma nação caótica que depende de ajuda externa durante alguns invernos. O entusiasmo pelo mercado redundara na apropriação dos negócios mais rentáveis por milionários instantâneos, uma enorme parte do aparelho industrial colapsara, o secessionismo aparecera no Cáucaso, as máfias e o poder confundiam-se. Tentavam-se revoltas e bombardeava-se o parlamento.
Foi uma altura de deriva, de abuso solto, de desesperança. O país imenso e a sua enorme população pareciam mexer-se sobretudo por inércia acumulada e sem destino. A Rússia foi então uma nação movida pelo passado e pelo orgulho ferido.
Poder-se-ia ilustrar a década perdida com as fotografias de Jim Nachtwey, da Grozni destruída de 1996, talvez as das crianças de cabelo rapado a brincar em tanques destruídos. Mas seriam demasiado documentais e precisas, demasiado parciais e específicas. A realidade da Rússia desorientada da era Ieltsin parece-me agarrar-se de forma muito mais forte às imagens das séries City of Shadows e Time standing still de Alexey Titarenko. O fotógrafo russo trabalha nelas a sua cidade, S. Petersburgo, e recorre a exposições longas e enquadramentos que combinam elementos arquitectónicos e pessoas em movimento.
Na década de oitenta, quando a União Soviética se tentava redefenir e regenerar , desenvolvera a série NomenKlatura of Signs, procurando fazer a crítica de uma sociedade repressiva que reduzia os cidadãos a signos, a inscrições. Embora o tom fosse de crítica, e se situasse claramente fora do campo da propaganda oficial soviética, esta primeira série baseada no uso de colagens, duplas exposições e montagens era no entanto devedora de uma tradição fotográfica soviética, de experimentalismo e fusão entre grafismo e fotografia.

Alexey Titarenko, série Nomenklatura of signs,
1986-1991,
imagem obtida aqui

 A Fotografia de Titarenko parece depois mudar com o país, nos anos noventa. Da câmara escura e dos artifícios das montagens, o seu foco transita para o trabalho com a câmara e as exposições alongam-se. Da denúncia da desumanidade soviética transita para a documentação do negrume da alma russa, mas o seu trilho não é o do fotojornalismo envolvido. Contorna o imediato pela via da metáfora e reside aí a força das suas imagens.
As enevoadas massas humanas que povoam as fotografias de S. Petersburgo, resultantes dos tempos demorados que usou, carregam um discurso sobre o imutável e a desconsideração do indivíduo na história russa, onde a força do Estado acaba sempre por ser o valor basilar. As imagens densas, pouco contrastadas, destas séries remetem-nos para a dureza do ambiente urbano e o peso dos destinos pessoais, ressonâncias do universo de Dostoievski. 
Particularmente poderosas são as imagens feitas na escadaria da estação de metro de S. Petersburg. A multidão desvanecida que as percorre convoca-nos as escadarias Primorsky ,em Odessa, local da mais recordada cena do Couraçado Potemkin, um dos filmes maiores de Serguei Eisenstein. À brilhante propaganda de 1925 e à construção da mitologia soviética, com um massacre que não existiu de facto na revolta de 1905, Titarenko contrapõe os degraus de uma rotina quotidiana e desanimada. Não há nelas a caminhada para a construção do Homem Novo, apenas gente que se movimenta pela cidade em busca de armazéns com bens para levantar com os cupões de racionamento. Ao contrário das imagens do filme de Eisenstein, estas fotografias não contêm o optimismo de sacrifícios sofridos por um futuro grandioso, carregam somente o peso do desencanto.

Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui


Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui




Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui

Alexey Titarenko, série City of shadows, 1992-1994
imagem obtida aqui
Alexey Titarenko, série Time standig still,
1998-2000
imagem obtida aqui


Alexey Titarenko, série Time standig still,
1998-2000
imagem obtida aqui
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