quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Cáustico Lunar e o roubo da alma

O Nitrato de prata (AgNO 3) é o mais corrente, acessível e barato dos sais de prata. A sua produção é relativamente fácil, sendo obtido através da dissolução da prata por acção do ácido nítrico. Desde o início, foi um dos sais de prata mais usados em fotografia, isoladamente ou em combinação com os vários halogenetos de prata, como o iodeto e o brometo. Estes últimos apresentam uma maior sensibilidade à luz, e simultaneamente uma produção mais difícil.

Cristal de Nitrato de prata
imagem obtida aqui


As referências mais antigas à fotossensibilidade do nitrato de prata parecem datar do Renascimento, e referem-se apenas ao escurecimento deste sal quando exposto à Luz. A primeira análise sistemática que provou a sensibilidade à luz do nitrato de prata deve-se a Johann Henrich Schulze, professor de medicina na Universidade de Aldorf, na actual Alemanha. Em 1724, este observou que uma mistura de nitrato de prata e giz escurecia quando exposta à luz. Decidido a comprovar se tal se devia à acção da Luz, do calor ou de outros factores, realizou mais tarde vários testes, tendo comprovado finalmente que a luz era a razão da alteração de cor. Nestas experiências verificou a possibilidade de obter silhuetas através da colocação de materiais e objectos sobre o nitrato de prata, que impediam a exposição de parte da base. Porém, estas eram imagens fugidias que desapareciam após a retirada dos objectos, quando a área não exposta passava a receber luz.

Na década final desse século, o britânico Thomas Wedgwood expôs, à luz do sol, algumas folhas de árvores e asas de insectos em papel sensibilizado com nitrato de prata, mas também ele não conseguiu parar a reacção à luz e as silhuetas obtidas perderam-se. Só com o trabalho de Niepce, Daguerre, Talbot e Archer a fotografia pode tornar-se uma realidade, e o nitrato de prata, sendo o mais acessível dos sais de prata, teve durante algum tempo a primazia de utilização entre os amadores de meados do século dezanove.

Artista desconhecido, Thomas Wedgwood
imagem obtida aqui

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
Se as referências à sensibilidade lumínica mais antigas parecem datar de mil e quinhentos, o nitrato de prata não era porém então uma novidade. Santo Alberto Magno, um contemporâneo de São Tomás de Aquino ( e que com ele, recuperou o Aristotelismo, ajudando estabelecer a diferença e a não-exclusão entre a Razão e Fé), refere-se no século treze a este derivado da prata, em experiências que procuravam separar a prata e o ouro. Outras referências levam a crer que o nitrato de prata seria um subproduto há muito conhecido dos alquimistas medievais, na sua senda em busca da Pedra Filosofal e da transmutação dos elementos básicos em metais preciosos. Era conhecido então sobretudo como Cáustico Lunar, dadas a designação alquímica da prata como Luna, e as características corrosivas do material. As propriedades cauterizadoras deste nitrato levaram-no a ser utilizado com fins medicinais, sendo conhecida a sua presença em boticários de mosteiros e de colégios jesuíticos. Era utilizado sobretudo como antiséptico e na eliminação de verrugas e outras tumorações epidérmicas. Deste uso adveio uma outra designação popular- Pedra Infernal.

Estas utilizações mais arcaicas, de um dos pós com que os pioneiros da fotografia se faziam acompanhar, podem-nos levar a um outro olhar sobre uma história já muito batida- a estafada história de povos que evitavam ser fotografados com medo de que a sua alma pudesse ser roubada. Ora, no século dezanove, nada seria mais natural do que desconfiar de gente que usava os ingredientes dos bruxos medievais, e que carregava consigo caixas carregadas de frascos, vidros e objectos que pareciam coisas de macumba.

Richard Buchta, Feiticeiro, Sudão, 1879
Imagem obtida aqui


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