sexta-feira, 4 de março de 2011

Oferendas de gato

Com a excepção dos cerca de dez anos que passei em Lisboa, vivi sempre na proximidade de gatos. Na minha família nunca houve o hábito de interferir muito na natureza dos bichos, estes eram deixados intactos, sem castrações, e o seu local de pernoita era no exterior. As suas visitas ao interior da casa eram toleradas por curtos períodos ou em raros casos de doença, no pico do inverno. Neste status quo, a natureza da relação entre nós e os gatos era distante da pegadice doentia que algumas pessoas mantêm com os seus animais de estimação. Mas não deixava de ser clara, os nossos gatos eram os nossos gatos (os dos vizinhos apareciam por vezes , mas sabiam estar fora do seu lugar), tinham direito a alimentação, a abrigo, a tratamento veterinário e a festas quando pediam. Independentemente das suas personalidades muito variadas, os gatos mantinham connosco um relacionamento próximo mas independente, a anos-luz da constante bajulação e adoração com que os cães brindam os donos. Procuravam-nos quando estavam interessados, fosse em comida, fosse em carícias no pelo, e ignoravam-nos ostensivamente quando para aí estavam virados. E, sobretudo os machos, ausentavam-se por espaços de tempo que chegavam à ordem dos meses.
Ocasionalmente acontecia algo interessante. Gratuitamente, sem qualquer motivo aparente, os gatos traziam-nos pequenas ofertas. Não sei se para demonstrar a sua estima, se para mostrarem que não eram ingratos, ou se com isso pretendiam pagar o alojamento, marcando a sua independência, o facto é que traziam para casa o que, para os gatos, deve ser o tipo de prenda ideal. Regra geral, as oferendas mais comuns eram pássaros mortos e, para desespero e nojo da minha mãe, ratos e osgas igualmente defuntas.
Um gato de riscas amarelas, a que chamámos Manolo, pela bravata de toureiro espanhol com que enfrentava os cães, mostrou-se porém mais perspicaz. Sabendo que aquilo que era o presente perfeito para os gatos, punha os humanos em estados de alma estranhos, aprendeu a variar a gama dos produtos que dava aos donos. Do peixe seco inicial , que tradicionalmente é estendido nas varandas algarvias e que surripiava algures, passou para variedades mais espantosas, decerto com muito desagrado dos meus vizinhos de então. Ofereceu-nos, e vou dizer só o que me lembro, peixe frito, bacalhau demolhado, febras e salsichas grelhadas e, uma vez, meio salpicão.
O meu gato actual está longe do brilhantismo do Manolo. Animal estranho, mesmo pelos padrões felinos, é um cruzado de siamês que desaparece, por vezes, por meio ano e retorna magro, ferido e doente. Recupera, engorda e não se furta a festas no pelo, de que gosta bastante. Mas nunca compreendeu o conceito da caixa de areia, e a sua estadia em interior, mesmo doente, é higienicamente inaceitável. Não sei se por ressentimento, se por puro desconhecimento de protocolo, o facto é que até recentemente nunca o animal , ao contrário de todos os seus antecessores, trouxe algo para casa. E quando o fez, dias atrás, não me ofereceu um enchido, nem sequer um pássaro. Carregou na boca uma grande pata de insecto, que depositou junto dos meus pés.
Continuo sem perceber se foi amabilidade, se foi ironia.


Júlio Assis Ribeiro, SP_A_PTNSCT_01, 2011

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