Ocasionalmente acontecia algo interessante. Gratuitamente, sem qualquer motivo aparente, os gatos traziam-nos pequenas ofertas. Não sei se para demonstrar a sua estima, se para mostrarem que não eram ingratos, ou se com isso pretendiam pagar o alojamento, marcando a sua independência, o facto é que traziam para casa o que, para os gatos, deve ser o tipo de prenda ideal. Regra geral, as oferendas mais comuns eram pássaros mortos e, para desespero e nojo da minha mãe, ratos e osgas igualmente defuntas.
Um gato de riscas amarelas, a que chamámos Manolo, pela bravata de toureiro espanhol com que enfrentava os cães, mostrou-se porém mais perspicaz. Sabendo que aquilo que era o presente perfeito para os gatos, punha os humanos em estados de alma estranhos, aprendeu a variar a gama dos produtos que dava aos donos. Do peixe seco inicial , que tradicionalmente é estendido nas varandas algarvias e que surripiava algures, passou para variedades mais espantosas, decerto com muito desagrado dos meus vizinhos de então. Ofereceu-nos, e vou dizer só o que me lembro, peixe frito, bacalhau demolhado, febras e salsichas grelhadas e, uma vez, meio salpicão.
O meu gato actual está longe do brilhantismo do Manolo. Animal estranho, mesmo pelos padrões felinos, é um cruzado de siamês que desaparece, por vezes, por meio ano e retorna magro, ferido e doente. Recupera, engorda e não se furta a festas no pelo, de que gosta bastante. Mas nunca compreendeu o conceito da caixa de areia, e a sua estadia em interior, mesmo doente, é higienicamente inaceitável. Não sei se por ressentimento, se por puro desconhecimento de protocolo, o facto é que até recentemente nunca o animal , ao contrário de todos os seus antecessores, trouxe algo para casa. E quando o fez, dias atrás, não me ofereceu um enchido, nem sequer um pássaro. Carregou na boca uma grande pata de insecto, que depositou junto dos meus pés.
Continuo sem perceber se foi amabilidade, se foi ironia.
Júlio Assis Ribeiro, SP_A_PTNSCT_01, 2011
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