quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Da Fotografia e das cebolas

Há uma metáfora estafada, gasta de tanto uso, que associa qualquer coisa complexa a uma cebola. O Complexo tem camadas, por baixo dum primeiro nível há outro, e abaixo deste um outro ainda. Ora, quem tem a amabilidade (e a paciência) de aqui acompanhar os textos, sabe decerto do meu gosto por lugares-comuns, e assim não estranhará que eu diga que algumas fotografias são assemelhadas a uma... exacto,a uma cebola.

Charles Lutwidge Dodgson,
A lição de anatomia com o dr George Rolleston
Oxford, 1857
imagem obtida aqui

Escolho para demonstrar uma imagem de Charles Dodgson, uma daquelas imagens que me enchem as medidas, e começo a disparar.

Primeiro tiro: como a casca seca da cebola, a imagem alcança-nos através da sua superfície, pela forma. 
Composição equilibrada e clássica, figuras humanas organizadas num triângulo  segundo um eixo de quase simetria.

Segundo tiro: Abaixo da forma, nova camada, mais polposa- a iconografia. A cena retrata uma aula de anatomia, uma temática que entrara na pintura ocidental na esteira do Renascimento (todos têm, certamente, em mente a fabulosa "Lição de anatomia do dr. Nicolaes Tulp" de Rembrandt). A Fotografia, nos seus anos iniciais, procurou amiúde o amparo da Pintura na sua ânsia de validação cultural e aqui, Charles Dodgson, juntando oportunidade e conhecimento, cruza citação, encenação e documento.

Terceiro tiro: caminhando para o interior nova camada, mais suculenta. A da inserção da imagem num corpus de obras e na biografia do autor. Charles Dodgson era o verdadeiro nome de Lewis Carroll, o autor de "Alice no país da maravilhas". Antes de ser ser um escritor popular e próspero, Dodgson foi um interessante e original fotógrafo, e um promissor matemático que ensinava em Oxford. Nesses anos de busca de notoriedade, o jovem inglês encontrava-se na base da estrutura social académica e procurou estender as suas redes de conhecimentos. A Fotografia, à altura um hobbie difícil mas considerado recomendável num gentleman culto, garantia-lhe a admiração, a disponibilidade e o acesso à elite cultural e científica da Inglaterra vitoriana.
Muitos anos mais tarde, após a sua morte, a família alimentaria um culto centrado na sua alegada excentricidade, difundindo a imagem de um homem profundamente tímido, avesso a contactos sociais, que apenas se sentia bem na companhia de crianças, especialmente meninas. A fotografia de "A lição de anatomia com o dr George Rolleston", trabalho dos seus anos iniciais, ajuda a desmistificar a personagem caricatural, criteriosamente tecida aos longo de anos, que transformara o autor em algo muito próximo das personagem invulgares dos seus livros de ficção. Dodgson não só tinha contactos sociais regulares, como era particularmente activo na sua aproximação às mais notórias figuras da época.
Nas suas fotografias dos primeiros tempos, Dodgson é um homem à procura de dominar a técnica e de encontrar uma temática. A própria Fotografia encontrava-se na sua infância, e ele escorou-se, como muitos seus contemporâneos, na tradição pictórica, tentando vários géneros, como o retrato, a natureza-morta e a paisagem. Mas a sua pertença ao círculo de Oxford permitiu-lhe a originalidade de fazer algumas naturezas-mortas com espécimenes científicos do Museu de Ciências, e organizar com estes (e com alguns conhecidos), algumas estranhas imagens (como a presente) associando pessoas a ossadas e esqueletos, num universo em podemos sem grande esforço ver ligações com a sua futura obra, escrita e fotográfica, onde há jogos de associações, de estranhezas e de absurdos.

Quarto tiro: Atinge-se o cerne, a parte mais plena de sabor. Chegamos à componente especulativa.
Esta fotografia de Dodgson data de 1857. A sua lição de anatomia não é uma qualquer, trata-se de uma aula de anatomia comparativa. Relaciona-se um crânio com um esqueleto animal. Estes dois factos não isentos de relevância e de possibilidades.
À data estava-se num período de efervescência nas ciências naturais. Dois anos depois, dar-se-ia um acontecimento radical e fundador. Charles Darwin publicaria "A origem das espécies", formulando a sua teoria da evolução, e estalaria uma enorme controvérsia, a partir da qual, o ponto de vista cientifico ficaria marcado de forma indelével.
Mas a divulgação da teoria não foi uma verdadeira surpresa. Na realidade, a revolução de Darwin estava há muito anunciada e aguardava o seu momento. Desde que voltara da sua viagem de investigação à América do Sul, no navio Beagle, mais de vinte anos antes, o naturista vinha cautelosamente colhendo, compilando e organizando dados que lhe permitissem provar o que intuíra na expedição : que as espécies não eram estáveis, resultando de um acto de criação, mas que evoluiriam ao longo de espaços de tempo alargados, de acordo com um processo de selecção natural.
Ao longo dos anos fora compartilhando, com grande resguardo, as suas ideias com um grupo restrito de cientistas, e fora intuindo quais os grupos acolheriam as suas dissertações e o defenderiam, e quais os grupos que se agarrariam à ortodoxia dogmática e antropocêntrica, e lhe fariam uma guerra sem quartel.
Entre os apoiantes encontrar-se-iam cientistas de grande reconhecimento como Charles Lyell e Joseph Dalton Hooker, e um botânico, inicialmente relutante, chamado Thomas Henry Huxley, que se tornaria no mais aguerrido e público defensor de Darwin (já que este, por motivos de saúde, não conseguiria ser o paladino da sua própria obra). Do outro lado da barricada, encontrar-se-ia a ala mais conservadora da sociedade britânica, em particular da hierarquia religiosa anglicana (representada no momento mais alto da polémica por Samuel Wilberforce, o bispo de Oxford), mas também uma parte significativa da comunidade académica, liderada pela grande figura das ciências britânicas, Richard Owen.
Este último, com quem em tempos Darwin colaborara, tornara-se de facto o grande opositor de Darwin, pelo peso do seu reconhecimento público e científico, e pela sua agilidade política. Parte de seu trabalho parecia validar a visão de Darwin ( anatomicamente, provara que os seres humanos são primatas), no entanto, pareceu incapaz de arriscar a sua influência ( que chegava até à família real) num separação clara entre a tradição, teologicamente enquadrada, e o conhecimento científico. Optaria por uma oposição virulenta, fortemente pessoal,  a Darwin e aos seus apoiantes.
Nesta guerra entre Evolução e Criação, travava-se igualmente uma guerra entre duas visões, a de uma profissionalização dos cientistas e do ensino das ciências, de que o já referido Huxley era o chefe de fila, e uma outra que pretendia manter a tutela dos clérigos sobre o ensino e a preponderância dos aristocratas amadores entre os investigadores britânicos, onde se situava Owen.
Voltando à imagem, quem ministra a aula de anatomia é George Rolleston, um dos protegidos de Thomas Henry Huxley, com quem participaria na defesa das teorias de Darwin. Ocuparia, no ano seguinte ao da publicação de "A Origem das Espécies", o cargo de Professor regente de Anatomia e Fisiologia na
Universidade de Oxford, derrotando um candidato apoiado por Owen. Por outro lado, o fotógrafo, Charles dodgson, é um pouco convicto diácono anglicano, estatuto que terá atingido mais por obrigação do que por vocação, no decurso do seu cargo de professor de matemática no Christ College, em Oxford.
Quando a imagem é feita, em 1857,  Rolleston já estará decerto a par das especulações de Darwin e já será um defensor das suas ideias, que propagará em privado, e talvez nas suas aulas. A sua anatomia comparativa  poderá indicar-nos isso. Não é igualmente indiferente que Dodgson escolha retratar Rolleston nesse período. Outras fotografias suas, nessa altura, parecem indicar que Dodgson estava, também ele, a par da revolução em curso (ver Os esqueletos e o pássaro extinto), e qual o lado para onde iriam as suas simpatias.
Gosto de acreditar que esta imagem ilustra bem o momento de contagem de espingardas que se viveria então em Oxford, na antecâmara de uma batalha que definiria o futuro do conhecimento e das ciências.

Com isto, termino. Como disse à partida, algumas fotografias descascam-se como as cebolas.
Porém, essas fotografias normalmente não fazem chorar. Fazem-nos sorrir.

____________________________________________________________________

Sem comentários:

Enviar um comentário