quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Alabama reencontrado de Gordon Parks

Texto publicado inicialmente em A LENTE LENTA do Obvious lounge

Gordon Parks, auto-retrato, sem data
imagem obtida aqui




Quando morreu, em 7 de Março de 2006, Gordon Buchanan Parks era sobretudo conhecido por ter sido o primeiro realizador negro a trabalhar com os grandes estúdios de Hollywood. Em particular, por ter dirigido em 1971 “Shaft”, filme fundador dos chamados “blaxploitation movies” (género que centrava os seus enredos na comunidade negra norte-america, normalmente em contextos urbanos e policiais). Em 2000, “Shaft” seria alvo de um remake em que o actor Samuel L. Jackson interpretou o papel anteriormente desempenhado pelo icónico Richard Roundtree.

Mas o facto é que, antes de enveredar pela carreira cinematográfica, o polifacetado e talentoso Gordon Parks já se havia destacado quer como músico, quer como escritor, quer sobretudo como fotógrafo. Após alguns empregos como músico em clubes nocturnos e bordéis, de funcionário de uma pensão e de empregado em comboios de passageiros durante a Grande Depressão, o jovem Parks decidiu comprar a sua primeira câmara fotográfica em 1937, usada e numa casa de penhores. As causas desta súbita decisão prendiam-se com impacto que tivera nele uma série de fotografias de trabalhadores migrantes, temática particularmente cara ao programa fotográfico da Farm Security Administration (FSA), uma agência federal que visava combater a pobreza rural, numa política derivada do New Deal do presidente Roosevelt, eleito em 1933.

Dorothea Lange, Mãe migrante, 1936
imagem obtida
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Rapidamente consegue fazer destacar o seu trabalho. As suas fotografia de moda iniciais, na cidade de St. Paul, no Minesota, captam a atenção de Marva Louis, esposa de Joe Louis, campeão de boxe e uma das raras celebridades negras dessa época. Encorajado por ela, muda-se para Chicago e esforça-se por se estabelecer como fotógrafo profissional, trabalhando em retrato e em eventos sociais da comunidade negra. De forma independente dedicou-se a registar a vida no gueto de South Side, projecto que culmina numa exposição em 1941 que atrairá atenções sobre si. Jack Delano, um fotógrafo da FSA apoia-o publicamente na candidatura a uma bolsa doJulius Rosenwald Fund, uma fundação que tinha um programa especial orientado para encorajar o trabalho de jovens negros promissores. Obtido o apoio, deslocou-se a Washington onde estagiou e trabalhou na FSA, e mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, no Office of War Information.

Entre 1944 e 1948, dedicou-se à fotografia de moda, tendo trabalhado para a revista Vogue, e escreveu livros técnicos de Fotografia. Em 1948 começou uma longa colaboração com a revista Life, publicação decisiva na definição dos padrões de qualidade do fotojornalismo da época. Talentoso e versátil, cobriu eventos sociais, retratou algumas das mais importantes figuras do período, fez fotografia de Moda, Espectáculos e Desporto, reportagens gerais e de viagens.

Mas o seu nome ficaria para sempre associado ao registo da temática da descriminação racial.
Desde logo pela sua biografia. Filho de agricultores negros do Kansas, cresceu numa sociedade profundamente marcada pelo racismo e pela separação étnica. Com onze anos foi vítima de uma tentativa de assassinato por jovens brancos, a que sobreviveu graças a algum sangue frio: sabendo que não sabia nadar, atiraram-no para o rio local, onde conseguiu fazer-se arrastar debaixo de água até a um ponto da margem, no qual tentou permanecer indetectável e de onde, mais tarde, escapou. Estudou numa escola primária segregada, mas frequentou o ensino secundário num liceu comum, uma vez que a sua cidade natal era demasiado pequena para ter escolas etnicamente separadas. Porém, tal não significou mais igualdade. Como negro, foi proibido de praticar desporto escolar e de frequentar os eventos sociais do liceu. Um dos seus professores não hesitou em lhe declarar que as suas ambições de seguir para a universidade não redundariam em mais que uma perda de tempo.

Na América do início do século vinte, as possibilidades de um jovem negro esgotavam-se no interior da própria comunidade, que de uma maneira geral permanecia separada e invisível para a maioria da sociedade americana. O percurso de Gordon Parks revelaria ser uma vitória pessoal, conseguindo, através do seu talento e profissionalismo, impor-se e ultrapassar as muitas barreiras que a cultura e pensamento padrões da época lhe impuseram.

Tendo iniciado o seu percurso fotográfico no interior da comunidade negra, a sua entrada na equipa fotográfia da Farm Security Administration foi uma clara imposição feita superiormente a Roy Striker, o responsável da agência. Stryker recebe-o com declarada relutância, não pessoal, mas por acreditar que um fotógrafo negro dificilmente conseguiria fazer o trabalho esperado pela FSA, dada a desconfiança que geraria, e dada a segregação, que sendo oficial nos estados do sul, não deixava de existir nos restantes.
Apesar do atrito inicial, a sua relação com Stryker acabaria por ser decisiva no seu percurso, no desenvolvimento do seu sentido estético e na sua metodologia. Recém-chegado a Washington, que Gordon viria a considerar como a mais insidiosamente racista cidade que conheceu, foi-lhe solicitado por Roy Striker que se dirigisse a uma série de espaços públicos- lojas, restaurantes e cinemas.
Tendo-lhe sido recusada a entrada em todos os locais, o Parks que retorna à sede da FSA é um jovem enfurecido que deseja de imediato começar uma reportagem de denúncia demonstrando a verdadeira natureza da capital dos Estados Unidos. Deseja registar actos de injustiça e os seus executores. Stryker, no entanto, retém-o. Envia-o para o arquivo e fá-lo analisar o trabalho de Lange, Evans, Delano e demais membros da equipa da agência.
Daí nasce a constatação que as imagens que mostram as vítimas são muito mais eficaz numa denúncia de injustiça, do que as que expõem os perpetradores. Algum tempo mais tarde, confessará, num momento a sós com Stryker, que apesar de tudo continuava à procura da forma ideal de expor a desigualdade. Este, olhando para a funcionária negra que limpava o escritório da FSA, aconselha-o simplesmente a começar tendo uma conversa com ela.

A mulher chamava-se Ella Watson e, com ela, Gordon Parks fará aquela que é a mais conhecida das suas fotografias. No interior de um edifício público, com uma grande bandeira americana afixada na parede, Gordon posiciona cuidadosamente Ella Watson e os seus instrumentos de trabalho, por forma a criar uma alusão ao famoso quadro “ American Gothic”, de Grant Wood - uma pintura que, durante a Grande Depressão passara a representar as virtudes rurais (e brancas) do espírito pioneiro norte-americano.

Gordon Parks, Ella Watson, Agosto de 1942
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Grant Wood, American gothic, 1930
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Apesar do reconhecimento actual da imagem, à época este retrato não foi muito apreciado por Roy Stryker, que o aconselhou a continuar a fotografar Ella Woods. O próprio Gordon Parks considerou esta imagem muito pouco subtil, demasiado encenada.
Durante o mês seguinte, Parks acompanhou Ella Watson, fotografou o seu percurso para o trabalho, as idas à igreja, a sua casa e a sua família. Quando mostrou o resultado, Striker assentiu. Começara definitivamente a construir o seu olhar, envolvera-se, conhecera a natureza dos seus retratados. O caracter panfletário das primeiras fotografias fora substituído pela naturalidade que o conhecimento introduz. A carreira fotojornalística posterior de Parks seria muito mais devedora desta abordagem próxima aos temas do que da denúncia programática que inicialmente o motivara.

Gordon Parks, jantar na casa de Ella Watson,
Agosto de 1942
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Gordon Parks, Ella Watson a sair para o trabalho,
Agosto de 1942
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Muitas outras vezes, naturalmente, a demonstração da questão racial aflorou no seu trabalho. Marcante foi a reportagem que realizou para a Life, para a edição de 24 de setembro de 1956, no Alabama. Eram imagens marcantes de um Sul segregado, desigual, pulsante, e que nos parecem hoje denunciar a calmaria que antecede as grandes tempestades. Nelas sente-se a presteza do movimento dos direitos civis que irromperia de forma decisiva na década seguinte e que mudaria o Sul, e os Estados Unidos.

Os originais da reportagem da Life foram julgados perdidos durante muitos anos, até ao início deste ano quando, na fundação que gere o seu espólio, foram descobertos setenta diapositivos no fundo de uma caixa de armazenamento. Foram descobertos os originais das imagens publicadas e outros que permaneciam até agora desconhecidos, embulhados em papel e fita adesiva, assinalados com a designação “Segregation Series”.

A totalidade das imagens permite-nos agora uma melhor e mais global percepção do Alabama visitado por Parks em 1956. Ao geral carácter sereno das imagens consideradas pertinentes na altura, portanto próprias para publicação, somam-se outras: algumas intensas, de desigualdade gritante, de sinais de segregação, e de uma violência que se pressente próxima e quotidiana; outras de normalidade do dia-a-dia, as idas ao comércio e à igreja, o preenchimento de formulários, os descansos diários.

Gordon Parks, Albert Thornton Sénior e esposa,

Mobile, Alabama, 1956
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Gordon Parks,
Ondria Tanner e a sua avó a ver montras,
Mobile, Alabama, 1956
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Gordon Parks, Sem título,
Mobile, Alabama, 1956
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Gordon Parks, Bebedouros segregados,
Mobile, Alabama, 1956
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Gordon Parks, Casa de Virgie Lee Tanner,
Mobile, Alabama, 1956
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Gordon Parks, Willie Causey Junior com uma arma,
Shady Grove, Alabama 1956
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Este Alabama reencontrado, não tivesse ele outras virtudes, seria tão somente um pretexto fabuloso para reencontrarmos Gordon Parks e o seu trabalho fotográfico.

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