terça-feira, 29 de junho de 2010

O Moisés analítico

Serei hoje aquilo que se designa por agnóstico. Acredito que a fé é algo que não é do campo da razão, e que não é passível de prova. Sou estruturalmente um céptico, mas creio que não faço das minhas dúvidas a medida com que aprecio e interpreto os outros. Não julgo negativamente aqueles genuinamente têm crenças religiosas, mas também não condescendo com aqueles que para mim olham como tendo uma deficiência, ao não ver e sentir aquilo que para eles é tão óbvio. 
Mas devo dizer que estes assuntos não são para mim uma premência, nem me alteram estados de alma. Não pretendo convencer ninguém, até porque, na realidade, não sei nada acerca da existência, ou não, de Deus. E tal não me tira o sono.

Mas, em miúdo, lembro-me de ser bombardeado por alguns familiares, outros que não os meus pais, com alguns populares conceitos da área religiosa como os de pecado, salvação eterna e juízo final. Muitas das histórias que me eram trazidas provinham do Antigo Testamento, e eram lineares, inverosímeis e cruéis como contos populares. Lembro-me, muito novo, de considerar as histórias de Noé, da criação, de Jó, entre outras, como não batendo certo. Quem mas contava tinha delas uma interpretação literal, e quando eu objectava (tipo: porque é que no génesis diz que a lua é um luzeiro se, na realidade, é um espelho da luz do sol?) ou se engasgava com uma resposta que não me explicava nada, ou me calava com o olhar “Este moço tem a mania que é parvo!”. 


Teria, penso eu, onze anos quando a RTP1, único canal nacional então captável em Tavira, passou uma série que retratava a aventura, a bordo do navio HMS Beagle, dum homem jovem que duvidava. Esse homem, a quem haviam destinado que visse a ser um padre anglicano, chamava-se Charles Darwin. Conseguira convencer um pai relutante e embarcara como naturalista numa expedição que visava mapear a costa da América do Sul. A leitura de"Princípios da Geologia" de Charles Lyell, que considerava que os processos geológicos se desenrolavam ao longo de espaços temporais muito alargados, e a suas próprias observações da natureza, levaram-no a crer que não havia uma concordância entre a descrição mítica da criação da Terra, constante no Génesis, e a realidade objectiva. As cartas que enviou durante a expedição, com as suas observações, e os espécimes que fez chegar à Grã-Bretanha, tornaram-no uma sumidade ainda antes do seu regresso. Até o pai, que antes o olhara com desapontamento, se entusiasmou e providenciou meios para que pudesse autonomamente continuar a desenvolver os seus estudos. O resto, já toda a gente sabe- a publicação de “A Origem das Espécies”, em 1859, provocou polémica então, e mudou radicalmente a forma como olhamos para nós e para a nossa história. As próprias religiões, pelo menos as mais estruturadas, convivem hoje pacificamente com a ciência e a leitura dos textos bíblicos saiu, em larga medida, do campo da Literalidade.


Olho para essa série televisiva como o momento em que claramente me apercebi que duvidar não era um problema. Que é necessário acreditar em algo só porque todos os demais acreditam, e que as crenças são apenas isso, crenças. A razão e a Objectividade são de outro campeonato.


Curiosamente, das várias fotografias de Charles Darwin, aquela que mais gosto é a que foi realizada por Julia Margaret Cameron, em 1868. Nesta imagem, Charles Darwin fica próximo da figura de um profeta bíblico de longas barbas, de um Moisés de filme mudo de Cecil B. Demille.
Mas é um Moisés de olhar carregado, céptico, analítico. É um Moisés depois de 40 anos no deserto  do Sinai. Não é um Moisés de bastão a abrir magicamente as águas do Mar Vermelho. 


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Julia Margaret Cameron, Charles Darwin, 1868

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