sexta-feira, 6 de maio de 2011

Um ensaio

O Mal extremo não pode, apesar das tentações, ser considerado uma invenção contemporânea. Basta uma leitura do velho testamento da bíblia, uma das fontes da cultura ocidental, para verificar que a violência brutal e gratuita, ainda que coberta pelo manto da necessidade e da fé, nos acompanha desde a raiz da História. A outra fonte principal da nossa cultura, o mundo grego romano, traz-nos um rol de deuses que carregam as virtudes e os defeitos humanos, e também nas suas histórias reside uma maldade arbitrária e dura. Estudos dos nossos parentes geneticamente mais próximos, os chimpanzés, parecem enterrar definitivamente a ilusão do bom selvagem, a crença de Rosseau num ser inicial puro que é destruído pela evolução da História e da Sociedade. A proximidade dos seus genes é-nos confirmada pela proximidade da complexidade das suas relações sociais e das suas hierarquias, bem como pela flutuação dos seus humores.

A percepção difusa de que o século que nos precede produziu um novo tipo de mal, um mal totalitário e absoluto, advém dos factos (os genocídios nazi, cambodjano e ruandês, apenas para citar três exemplos) mas deriva sobretudo da consciência de uma alternativa traída. O Iluminismo e os seus ideais de igualdade e fraternidade, o Idealismo e a ideia de uma história que avança e progride construíram a nossa perspectiva, e esta choca com estas abruptas erupções do Mal. O Mal é-nos sinónimo de irracional, e tendemos a denunciar as narrativas que o justificam.

É aliás no campo das narrativas que se poderá apontar alguma novidade no Mal do século vinte. Alguns dos seus exemplos mais gritantes de abusos da Humanidade foram feitos, já não directamente centrados em narrativas de pertença étnica e religiosa, ou de gratuita imposição da superioridade militar e em nome da usurpação de recursos, mas a coberto de uma suposta cientificidade. Os campos de morte do Cambodja dos Khmer vermelhos limpavam a sociedade dos habitantes poluídos por valores que uma nova ordem não podia tolerar, a matança era a prática de uma “ciência” social. O holocausto judeu perpetrado pelos nazis foi feito em nome duma construção teórica assente na Eugenia, que partiu delirantemente da “Evolução das Espécies” de Darwin. De certa forma, estas novas narrativas são também filhas do iluminismo e do Idealismo. Perante o enquadramento societal da Modernidade, o mal não pode ser defendido com base apenas no sentimento de pertença ao grupo, à fé ou à etnia, esse sentimento tem de ser disfarçado de razão científica, de progresso natural e necessário.

Não será necessário esperar até à segunda guerra mundial para se ver este exercício de brutalidade assente numa narrativa pseudo-científica.
A Alemanha chega tarde ao teatro colonial. Durante séculos fragmentado, o estado recentemente unificado inicia o seu processo de domínio externo apenas na década de oitenta de oitocentos, e a sua entrada em África ter-se-á de fazer praticamente nas "sobras" de um continente já dividido por outros países europeus. Um dos territórios que ocupará será o Sudoeste Africano, a actual Namíbia. O território permanecera praticamente incólume à aventura colonial. A sua costa desolada, a chamada Costa dos Esqueletos, não parecia augurar nada de positivo. Mas afastando-se um pouco do Atlântico, o território acabava por mais amigável do que se previa, com áreas de savana, com erva alta, pastagens passíveis de exploração. Em 1884, iniciou-se a ocupação e colonização alemãs. Mas o território não se encontrava deserto, para além dos San, os chamados bosquímanes, dois povos africanos disputavam já entre si a actual Namíbia. Os Herero, uma tribo de pastores de origem Bantu (em Angola, são designados como mucubais), e os Nama, também conhecidos por hotentotes ( designação que partilham frequentemente com os San), uma tribo de proveniência sul-africana. Ambos povos, mercê do contacto e de alguma miscelanização com antigos colonos holandeses, encontravam-se parcialmente cristianizados, parcialmente alfabetizados, e eram possuidores de armas de fogo. As relações entre o novo poder e os ocupantes prévios não foram pacíficas. Com as autoridades a confiscarem as melhores terras para os colonos, e o consequente empurrão dos Herero e dos Nama para o deserto, os confrontos foram inevitáveis.

O recente colonialismo germânico, para além do ímpeto nacionalista oitocentista, comum a outros poderes imperiais europeus, assentava de forma muito clara no conceito de Espaço vital, que as teorias do geógrafo alemão Friedrich Ratzel configuravam. Os povos, para garantirem a sua sobrevivência, precisam de ganhar espaço para se desenvolverem. Consequência implícita deste enunciado é a disputa de território que, aos olhos dos defensores desta corrente, será naturalmente ganha pelo povo mais forte. E partindo de um darwinismo alucinado e do seu etnocentrismo, não haverá duvidas acerca de qual o povo mais forte.

Autor não identificado, Friedrich Ratzel, s/data


O Sudoeste Africano, o menos povoado dos territórios ultramarinos alemães, será tristemente o sítio ideal para implantação desta perspectiva de substituição de populações. O governador Theodor Leutwein, que dirigiu o território de 1894 a 1804, fê-lo com uma estratégia de imposição musculada de tratados, que foram, como vimos, desapropriando os Nama e os Herero dos melhores recursos. Esta abordagem, não muito diferente do modus operandi de ingleses, franceses e portugueses, é considerada fraca e insuficiente pelos colonos e por parte significativa do contingente militar local, que entendiam que não dever ter de negociar algo que consideravam ser seu por direito. Em 1903 e 1904, ao fim de muitos anos de um lento degradar de relações dão-se as revoltas dos Nama, primeiro, e a dos Herero, depois.

O conflito faz a questão namibiana passar de uma lógica estrita de domínio para um novo patamar, o do extermínio. O comandante do destacamento militar enviado para esmagar as revoltas, general Lothar Von Trotha, assume explicitamente o objecto de aniquilar os povos revoltosos e, caso tal não fosse possível na totalidade, a expulsão dos sobreviventes para territórios vizinhos. À derrota militar dos Herero, na batalha de Waterberg, segue-se uma política de envenenamento ou controlo das fontes de água, raras num território seco, que levará à morte por sede e subnutrição. As populações capturadas, e que não são vítimas de abate imediato, são encaminhadas para campos de internamento e trabalho onde lhe estaria destinada uma morte lenta por maus tratos e fome. Quando, em 1908, se decide fechar os campos de concentração, dois terços dos Herero e metade dos Nama haviam desaparecidos. Os restantes, ou haviam conseguido escapar para territórios sob domínio inglês ou português, ou tinham sido convertidos em escravos e cedidos aos colonos alemães.

Diferentemente do que aconteceria décadas depois, nos extermínios europeus, não houve a preocupação de ocultar o extermínio em curso. Nos jornais alemães mais extremistas os africanos eram retratados como selvagens e animais para os quais não deveria haver complacência. A defesa do seu aniquilamento pelas autoridades militares era pública e os documentos que o comprovam chegaram até nós. Os aspectos mais macabros, como a venda pelos militares de crânios e cabeças decepada de Hereros e Namas para alegado estudo científico eram de tal forma conhecidos que até foram feitos postais deste comércio. Por último, os oficiais alemães, como o tenente Von Dürling, ao contrário dos seus sucessores nazis (que, anos mais tarde, proibiram a captura fotográfica de imagens dos campos de concentração) não se coibiram de fazer amplo uso das recentes câmaras Kodak de rolo. Nos seus álbuns namibianos, a par de retratos de família, não faltariam imagens de Herero e Nama esquálidos, e de planos mais ou menos alargados dos campos, nomeadamente o mais infame, o de Shark Island. Prova da ausência de auto-questionamento moral dos agentes do extermínio, foi o tratamento de parte destas imagens. Originalmente monocromáticas, foram coloridas manualmente, tratamento comum à época para valorizar as imagens mais importantes e pitorescas, as que orgulhavam os seus criadores.

Autor não identificado, Prisioneiros Herero, 1904-1908
imagem obtida aqui



Autor não identificado, Prisioneiros, 1904-1908
imagem obtida aqui


Para muitos, a experiência namibiana de 1904 a 1908, é um ensaio do extermínio nazi. Assente na mesma ideologia de busca do espaço vital e de desprezo por raças consideradas inferiores, praticam-se campanhas de deslocação de populações para campos de morte, usa-se o mesmo tipo de vagões de carga para o transporte. E nos ensaios aprende-se. No seco território do Sudoeste Africano, aprendeu-se que o extermínio, mesmo que feito em nome de princípios ditos científicos, não deve ser visível, ser retratado em postais, memorabilia exótica e álbuns de família. O holocausto da Segunda Guerra Mundial será, por imposição superior, um acontecimento escondido e invisível.

Tenente Von Dürling, campo de concentração de Shark Island, c.1905
imagem obtida aqu
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Tenente Von Dürling, campo de concentração de Shark Island, c.1905
imagem obtida aqui


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