quarta-feira, 11 de junho de 2014

A trincheira da morte

Para a população pouco politizada e pouco letrada, que constituía a maioria da população da cidade do Porto e seus arredores, em meados do século vinte havia coisas de que não se falava correntemente. Mesmo entre o operariado com alguma militância política (clandestina) havia coisas de que só se falava com quem era tido por gente de confiança.

Quem cresceu nos anos quarenta e cinquenta do século passado, em volta daquela cidade, tinha muitas vezes apenas uma noção bastante vaga do que lá tinha acontecido um pouco antes, em Fevereiro de 1927. Sabiam, a partir de meias conversas e de coisas depreendidas, que houvera lá combates e bombardeamentos. Sabiam que houvera algo tão grave que uma zona ganhara o título, em tom tão lendário, de "trincheira da morte". Mas a natureza e os pormenores dos factos eram contornados e o evento desvanecia-se na imprecisão e no silêncio.

Aquela mudez colectiva anulava estranhamente um acontecimento de escala significativa.
Na madrugada de 3 de Fevereiro de 1927, escassos meses após o inicio da ditadura militar que desembocaria no Estado Novo, foi desencadeada uma revolta militar que visava repor a ordem republicana (e, em larga medida, repor o hegemonia do Partido Democrático). As primeiras unidades, previa o plano, sublevar-se-iam na cidade do Porto,  e a elas juntar-se-iam mais tarde aquartelamentos de Lisboa e forças de outras cidades.
O primeiro ponto do plano decorreria com o previsto, os revoltosos controlariam a maior parte do Porto, remetendo os militares fieis aos governo no interior da cidade à defensiva. Mas tudo além disso ficaria aquém do planeado. A 4 de Fevereiro, a revolta resumia-se a pouco mais que algumas localidades do norte de Portugal e do Algarve. Em Lisboa, as unidades simpatizantes hesitavam, permitindo ao Governo o contra-ataque. 

Autor não identificado,
Soldados da Infantaria nos camiões que
os conduziram ao local de embarque para o Porto
Vila Nova de Gaia, Portugal
Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui


A artilharia governamental que atacava as posições rebeldes do Porto desde o início, a partir da serra do Pilar, no lado oposto do rio Douro, ainda recuou por força dos bombardeamentos da artilharia de Amarante que se juntara à revolta, mas estabilizou posições no Monte da Virgem, continuando a fustigar as forças rebeldes. Reforços vindos de Aveiro, permitiram depois ao Governo tentar a entrada na cidade do Porto a partir do sul.
Os revoltosos, entrincheirados com metralhadoras, conseguiram porém rechaçar o assalto provocando bastantes baixas. A violência dos combates seria tal que à posição revoltosa situada nas ruas de Santa Catarina e 31 de Janeiro a população atribuiria o referido título de "trincheira da morte".

Ferreira da Cunha,
Tropas fiéis à Ditadura Militar combatendo a revolta no Porto,
Vila Nova de Gaia, Portugal,
3 de Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui

Autor não identificado,
A artilharia que fez fogo sobre o Porto,
Monte da Virgem, Vila Nova de Gaia, Portugal,
Fevereiro de 1927

Autor não identificado,
Conflitos nas ruas de Santa Catarina e 31 de Janeiro,
Porto, Portugal,
Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui
Apesar do vigor combativo, dois dias após o início da revolta, as tropas revoltosas encontravam-se completamente cercadas e nem a adesão tardia de algumas forças em Lisboa (da Guarda Nacional Republicana e da Marinha, sobretudo) seria capaz de inverter o fim previsível. Sob fogo constante e  bombardeamentos, a revolta resistiria ainda mais uns dias até que o fim das munições e a desesperança acabaram por impor a rendição na madrugada de 8 de Fevereiro.

A cidade do Porto sairia daquela que seria a primeira revolta do chamado "Reviralho" com um triste balanço: mais de uma centena de mortos, entre civis e militares, mais de meio milhar de feridos e um número enorme de casas e edifícios públicos severamente danificados

Perante esta descrição dos factos estranha-se o apagamento e desconhecimento geral que os engoliu.
Poderá parecer paradoxal este entorpecimento da memória colectiva. À primeira vista, dado que um dos principais factores de legitimação simbólica do Estado Novo era o retorno à ordem e o fim da instabilidade política, omitir o esmagamento da revolta de 1927 não parece ser uma estratégia muito consequente. Por outro lado, pela parte dos vencidos, a glorificação dos mártires republicanos, mesmo tendo em conta a censura, foi algo que não foi insistentemente perseguido.

Na verdade, ambos os lados concordaram em lembrar vagamente.

Apesar do seu inegável autoritarismo e postura ordeira, o Estado Novo não era um regime militante, de grandes massas, de retórica militar hiperbólica. Apesar de manifestações e modismos que copiava e compartilhava com os congéneres de Itália, Espanha e Alemanha, de toda a mitologia nacionalista que invocava, o seu ideal era que Portugal fosse um local onde nada se passava, e onde o que se passara, passara e não havia que remexer muito. O regime gostava de acreditar que a ordem que impusera pelas armas, não fora na verdade imposta, fora antes o produto dum anseio popular. Gostava de lembrar a "desordem" anterior, mas sem frisar excessivamente o pé militar e policial que colocara sobre a sociedade portuguesa.

Quanto à oposição republicana, falhadas as várias revoltas "reviralhistas", na sua luta contra a ilegitimidade da ditadura a última coisa que lhe traria proveito, e apoio popular, era invocar os tempos de lutas internas no sector republicano e o seu próprio passado de conquista do poder pela força militar. Determinou-se falar da imposição forçada da ordem salazarista (Salazar erguera-se entretanto como personificação do poder) contra uma ordem constitucional republicana, mas sem pormenores que manchassem a imagem.

Esta confluência de interesses permitiu eclipsar quase totalmente a memória dos conflituosas e perigosas primeiras décadas do século vinte português. A vaga memória dos anos quarenta e cinquenta passou a quase coisa nenhuma. No Porto, e no resto do país, já quase ninguém sabe da "trincheira da morte".

O retrato almejado pelo Estado Novo, de Portugal como país de brandos costumes, tornou-se hegemónico e falsamente evidente. Sendo muito elíptico em relação à verdade, é no entanto confortável.

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