Passados cerca de vinte e cinco anos, explicar aos meus alunos o grau de espanto de uma coisa destas é uma tarefa hermenêuticamente desafiadora. Perante a actual acessibilidade da imagem e a sua desmaterialização (imprimir fotografias é algo que se impõe cada vez menos na presente lógica de circulação social de imagens), explicar a maravilha da chegada dos minilabs a uma pequena cidade de província tem quase os mesmos contornos da explicação da importância do aparecimento da máquina a vapor.
É complicado explicar a raridade do momento fotográfico e a contenção que impunha. Nas três últimas décadas de novecentos, já praticamente todas as famílias possuíam uma câmara, regra geral, uma pequena automática Kodak de rolo de 35mm, ou similar. Mas o seu uso estava limitado a momentos muitos específicos, celebrações (aniversários, batizados e casamentos), visitas a familiares e viagens. E nesses momentos o privilégio de carregar no disparador estava sujeito a grande restrição, havia que aproveitar muito bem o rolo que, para cúmulo, raramente era de trinta e seis exposições. O momento fotográfico era eminentemente solene e havia mesmo um ritual anual, que implicava a deslocação aos templos da fotografia, os estúdios fotográficos, e em que a miudagem era arrebanhada pela família, vestida com os trajes mais apresentáveis e penteada várias vezes, a fim de tirar as sacrossantas fotos tipo passe para a matrícula na escola.
É igualmente complicado explicar o diferimento da imagem. Entre o acto de carregar no botão da câmara e o momento em que se recebia na mão as fotografias passavam-se forçosamente dias. Uns poucos, quando era a preto-e-branco (os estúdios locais possuíam laboratório, processavam a película e faziam as ampliações), uma semana ou mais quando se tratava de um rolo a cores (em que tudo, diziam-me, era remetido para um distante laboratório, em Lisboa). Para a esmagadora maioria dos portugueses, a Fotografia tinha semelhanças com a agricultura, só se colhiam os frutos do trabalho bastante depois da sementeira. Havia, é claro, as Polaroids. Mas isso, tirando alguns afortunados, era algo que só víamos no cinema ou em séries americanas de televisão.
Anos mais tarde, quando a Fotografia se tornou para mim um interesse patológico descobri que, cerca de cento e vinte, cento e trinta anos antes do meu confronto feliz com a possibilidade de quase instantaneidade fotográfica, tinha havido um tempo em a Fotografia era forçosamente um acto imediato. Na sua infância, a técnica tivera algumas dores de crescimento e, a dada altura, o procedimento padrão era algo a que se convencionou chamar processo de colódio húmido. Este utilizava como suporte-base uma chapa de vidro, o que por si só era um enorme avanço relativamente aos dois processos precedentes: o Daguerreótipo, que permitia imagens de boa qualidade mas que, por ter como base uma chapa metálica, era intransponível para papel, não permitia cópias; e o Calótipo, que permitia múltiplas cópias mas que, ao usar o papel como suporte inicial, tinha limitações em termos da qualidade da imagem. O vidro apareceu como opção óbvia por ser relativamente transparente e regular, possibilitando boa qualidade e a realização de cópias.
Porém (há quase sempre um porém) o vidro, como suporte, apresentava dificuldades. A sua superfície não era passível de ser tornada fotossensível (como acontecia com as chapas metálicas do daguerreótipo, que sofriam um “banho” de prata que era depois convertida em sais por intermédio da acção de um ácido), nem era susceptível de ser impregnada com uma solução rica em nitrato de prata (como acontecia com o papel). Para tornar o vidro um suporte viável era necessário um terceiro elemento que ligasse os sais de prata à sua superfície, criando aquilo que se designa por emulsão. Uma primeira hipótese passara pelo uso da clara de ovo, designada comummente por albumina, que permitia a aderência dos sais e permitia a actuação dos agentes reveladores e fixadores, e sua posterior lavagem. Mas a albumina, ao não ser completamente translúcida e ao se combinar com os sais de prata de uma forma muito particular, não permitia uma fotossensibilidade elevada e exigia longos tempos de exposição, pelo que nunca foi verdadeiramente uma opção corrente na tomada directa de imagens. Uma outra opção foi o uso do colódio, uma substância viscosa e transparente, resultante da diluição do algodão numa mistura em partes iguais de éter e álcool, à qual era adicionada uma pequena porção de uma solução de iodeto (de potássio, geralmente). Esta opção foi por algum tempo descartada porque se verificava que, ao secar, o colódio deixava de permitir os processos de revelação e ampliação. Eu, que não ainda experimentei esta técnica, conheço duas explicações para o fenómeno: uma, mais sintética, a de Luís Pavão no livro “Conservação de Colecções de Fotografia”, diz que em resultado da secagem o colódio se torna impermeável, impossibilitando a acção dos banhos reveladores e fixadores; a outra, a de Rómulo de Carvalho na sua “História da Fotografia”, mais detalhada, diz que o nitrato de prata se combina apenas parcialmente com o iodeto contido no colódio (originando iodeto de prata) e que, ao secar, a porção não combinada do iodeto se cristaliza, originando áreas não uniformes na superfície do vidro.
Perante este problema do colódio, a solução mais evidente (e a mais utilizada) foi a de evitar os problemas da secagem condensando todo o processo de fabrico, exposição e processamento do suporte fotográfico no curto espaço de tempo que o material leva a secar, ou seja, em menos de trinta minutos. Assim, num período de cerca de duas décadas a fotografia foi essencialmente um processo instantâneo, em que apenas era possível adiar a realização das cópias. E isto significou que, durante esse tempo, os fotógrafos ou realizavam as suas imagens a passos do seu estúdio, fixo ou improvisado, ou se faziam acompanhar por um laboratório móvel, geralmente em forma de tenda ou de carruagem fechada.
Roger Fenton, Carruagem fotográfica
prova de papel salgado a partir de negativo de vidro,
1855
imagem obtida aqui
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Quando aborreço de morte os meus alunos falando-lhes da
História da Fotografia, e deste aspecto em particular, apresento-lhes
geralmente a imagem de Roger Fenton, em que uma carruagem "conduzida" por Marcus
Sparling, o seu assistente, ostenta a inscrição “Photographic Van”. Nessa
carroça, o britânico e os seus assistentes percorreram o palco da Guerra da
Crimeia, em 1855, carregando chapas de
vidro e químicos por território agreste, sobrevivendo ao pó, ao calor, às
moscas, ao fogo inimigo e à vaidade dos oficiais britânicos que exigiam
constantemente, apesar da escassez de material, ser fotografados.
A Fotografia então, pelo seu arcaísmo, era instantânea mas
não era definitivamente fácil.
A Fotografia que eu considerava instantânea e fenomenal nos
anos oitenta era muito mais prática, mas para os meus alunos é algo arcaico,
estranho e complicado. Ao falar-lhes de minilabs, rolos e fotografias impressas
pareço-lhes tão fora do tempo que, por vezes, me sinto como se fosse Sparling a
conduzir a "Photographic Van".
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A tua simples apresentação, Júlio, já nos mostra o ser humano formidável que deves ser...aquele mestre que todos os alunos interessados gostariam de ter. Adorei este apanhado sobre a evolução da fotografia, didática ao extremo.
ResponderEliminarÉ um orgulho para mim te-lo na vitrine de meu blog...
Abraços.
Muito obrigado pelas palavras bastante simpáticas, e pelo destaque no Casa da çogra, mas receio que os meus alunos ainda me acusem de andar a fazer publicidade enganosa aqui no Blog...
ResponderEliminarAbraços.