Lewis Hine, Manuel Ferreira,
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui
|
Lewis Hine, Manuel Ferreira (pormenor),
Fall River, Massachusetts, E.U.A,
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui
|
Vem-nos do início do verão de 1916 o sorriso de Manuel Ferreira. Vem-nos de Fall River, no Massachussets, estado americano da Costa leste onde uma parte significativa da diáspora portuguesa se estabeleceu no início do século vinte. E vem-nos intermediado por Lewis Hine, o homem que ao serviço do National Child Labor Committee, fotografou e denunciou o flagelo do trabalho infantil numa das épocas mais prósperas da economia norte-americana.
Mas a imagem não é propriamente o que descreveríamos como a imagem de uma vítima. Falta à imagem o abatimento da postura, a expressão carregada, os sinais evidentes de pobreza ou de abuso, traços que encontramos em muito fotojornalismo e imagens incontornáveis da história da Fotografia (desde o pioneiro trabalho de Jacob Riis até ao contemporâneo Sebastião Salgado, passando pelo exemplo da campanha fotográfica da Farm Security Administration, na altura da Grande depressão).
Manuel Ferreira mira-nos desde 1916 carregando um sorriso contido, mas evidenciando contentamento. Hine, que sistematicamente anotava os aspectos relevantes que conseguia apurar acerca dos seus retratados, deixou-nos na cópia guardada pela Biblioteca do Congresso dos Estados, além dos forçosos nome e ocupação (trabalhador da siderurgia de Fall River), duas informações. Por ele sabemos que Manuel, aos domingos, se dirigia ao King Philip Settlement ( uma instituição de base voluntária que garantia educação formal, profissional e artística a crianças de comunidades desfavorecidas) e frequentava o curso de entalhador, visando tornar-se um trabalhador qualificado. Em informação não redundante, Hine acrescenta ainda que Manuel se apresentava com as suas roupas domingueiras.
Os registos de Lewis Hine municiam-nos com o necessário para percebermos o emproamento confiante com que o miúdo enfrenta a câmara, e que o ângulo ligeiramente contrapicado usado apenas ajuda a enfatizar. As primeiras décadas do século vinte foram décadas de verdadeira sangria demográfica em algumas regiões do velho mundo. Em Portugal, na Irlanda e em grande parte da Itália a partida em massa de jovens adultos, e respectivas famílias, atingiu por vezes o nível de verdadeira debandada chegando, apesar dos elevadíssimos níveis de natalidade da época, a esvaziar algumas aldeias miseráveis das regiões rurais. No caso português, o êxodo teve como destino prioritário o Brasil, mas a indústria da Costa Leste dos Estados Unidos garantiu alguns pontos de atracção e comunidades portuguesas importantes surgiram (como as de New Bedford ou Newark), nunca atingindo porém a dimensão dos números da emigração irlandesa e italiana na América do Norte.
Empurrava-os para o outro lado do Atlântico, por um lado, um grau de pobreza que hoje nos parece ficcional, em que subnutrição era uma constante (com reduzido acesso a proteína animal e uma dieta assente em batata e pão); em que grande parte da população vivia amontoada em casas de divisão única ou dupla, com chão de terra batida, muitas vezes sem chaminé ou janelas vidradas; e em que a roupa e o calçado eram bens quase inacessíveis, faltando muitas vezes o último; por outro lado, a par das questões materiais, havia nestas sociedades maioritariamente analfabetas uma ausência quase total de possibilidade de ascensão social. Jogava-se desde a nascença um jogo viciado, em que o resultado de uma vida estava determinado pelo meio em que se nascia.
Manuel Ferreira sorri-nos, através de Hine, provavelmente orgulhoso. Com o estranho orgulho de quem acha que a vida até lhe corre de feição. Se para Lewis Hine ele pertence a uma secção particularmente desfavorecida da realidade americana, a verdade é que comer carne regularmente, usar no dia de descanso roupas que se aproximam do vestuário janota do dia-a-dia da classe média, frequentar aulas ao domingo e tirar uma fotografia eram pequenas vitórias que um miúdo, oriundo da miséria e da mentalidade do velho mundo de então, encararia possivelmente como um tremendo progresso.
__________________________________________________________
__________________________________________________________
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarPode contactar-me através do seguinte endereço electrónico:
Eliminarnao.me.mexam.nos.jpegs@gmail.com