Praticavam-se muito o retrato, a paisagem e a natureza morta, e alguns mais afoitos abalançavam-se nos tableaux vivants, encenações de momentos históricos ou ficcionais com recurso a modelos. Buscavam-se composições equilibradas e pitorescas, almejava-se belas imagens.
Mas a natureza "mecânica" do processo fotográfico alargou os praticantes muito para além da franja dos dotados para as artes, e rapidamente o mundo das imagens se tornou mais "democrático", mais aberto e inesperado.
A Fotografia mostrou-se estranhamente capaz de se afastar das coisas belas e ideais, e de ser verdadeira.
Com ânsia documental, acercou-se dos sítios obscuros da sociedade e alma humanas.
Mesmo entre os seus praticantes mais eruditos aparecem divergências em relação à tradição pictórica.
Hugh Welch Diamond, um médico psiquiatra e fotógrafo, utilizando a técnica do calótipo, uma das primeiras vias de obtenção de imagem fotográfica, fez registos das feições dos seus doentes e da sua locomoção. O primeiro fotojornalismo, por acção de gente como Jacob Riis, também se dedicou à exposição dos excluídos e dos alienados. Mais tarde, esta temática acabaria por entrar no corpo central da fotografia mais autoral, mais "artística". Nomes como Diane Arbus comprovam-no.
Hugh Welch Diamond, Retrato de louca, 1852-54
imagem obtida aqui
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Jacob August Riis, Residente idosa,
Esquadra de polícia de Eldridge Street,
Nova iorque, E.U.A., 1890
imagem obtida aqui
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Diane Arbus, Homem com rolos de cabelo
Nova iorque, E.U.A. 1966
imagem obtida aqui
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A par deste assalto mais informado ao lado marginal, há toda uma Fotografia mais vernacular que também a aborda. Fotógrafos comerciais que captam as figuras dos circos de aberrações e as fazem circular em postais e carte-de-visite, jornais sensacionalistas que seguem como rapaces as vítimas e os perpetradores de crimes, funcionários de esquadras e asilos que burocraticamente registam os seres da margem.
A maioria dessa Fotografia é desajeitada, tecnicamente medíocre. Mas alguma dela é surpreendentemente viva e competente, e atinge-nos com inesperada força.
O Justice & Police Museum de Sydney, na Austrália, alberga um fascinante arquivo de imagens forenses e de cadastro. Disponíveis online, com alguma informação escrita adicional, é facil perdermo-nos durante horas a vasculhar o submundo australiano de início do século vinte, numa viagem pelas estranhas e dramáticas histórias pessoais que conseguimos intuir nestas fotografias.
Um exemplo:
Um tal Harry Leo Crawford aparece em três fotografias. De origem escocesa, casado em segundas núpcias com Elizabeth King Allison, funcionário de um hotel, aparentemente um cidadão dentro da normalidade, é preso em 1920, por suspeita do assassínio da primeira mulher.
Sete anos antes casara com a viúva Annie Birkett, uma empregada da residência do Dr. G. Clark , em Sydney, de quem era então motorista. Após quatro anos de matrimónio, Annie Birkett desapareceu e Harry informou os vizinhos de que havia fugido com um canalizador.
Um exemplo:
Um tal Harry Leo Crawford aparece em três fotografias. De origem escocesa, casado em segundas núpcias com Elizabeth King Allison, funcionário de um hotel, aparentemente um cidadão dentro da normalidade, é preso em 1920, por suspeita do assassínio da primeira mulher.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui
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Sete anos antes casara com a viúva Annie Birkett, uma empregada da residência do Dr. G. Clark , em Sydney, de quem era então motorista. Após quatro anos de matrimónio, Annie Birkett desapareceu e Harry informou os vizinhos de que havia fugido com um canalizador.
Em 1919, Harry casou novamente indicando no registo a condição de solteiro. Nesse mesmo ano, denúncias de familiares da sua primeira mulher levam a que a polícia investigue o desaparecimento. Finalmente, um corpo ,encontrado desfigurado em 1917, é exumado e identificado como o cadáver de Annie Birkett, e a 5 de julho de 1920, Harry foi detido.
Mas esta história real de intriga policial esconde uma torção existencial e de identidade.
O escocês Harry Leo Crawford era a italiana Eugenia Falleni.
Nos arquivos do Justice &Police Museum são disponibilizadas três fotografias. A primeira (acima), encontrava-se numa capa de papel com a inscrição "Falleni Man/Woman" ( Falleni Homem/Mulher), apresenta-nos o suspeito em roupas de homem, na esquadra central de Sydney, provavelmente em 5 de Julho de 1920, o dia da sua detenção.
O escocês Harry Leo Crawford era a italiana Eugenia Falleni.
Nos arquivos do Justice &Police Museum são disponibilizadas três fotografias. A primeira (acima), encontrava-se numa capa de papel com a inscrição "Falleni Man/Woman" ( Falleni Homem/Mulher), apresenta-nos o suspeito em roupas de homem, na esquadra central de Sydney, provavelmente em 5 de Julho de 1920, o dia da sua detenção.
A segunda, feita no final desse ano, em 21 de Outubro, já é uma imagem da penitenciária feminina onde cumpriria a pena, e Harry/Eugenia já aparece vestido de acordo com o seu género biológico.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford
Sydney, Austrália, 21 de Outubro de 1920
imagem obtida aqui
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A terceira, também uma imagem de cadastro da mesma penitenciária, feita oito anos depois, confirma-nos uma Eugenia Falleni em roupagens femininas.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
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Abstendo-me de falar mais da história desta personagem, duma vida plena de potencial romanesco, que desafio os leitores a investigar, concentro-me no que está patente nas fotografias.
São três imagens sem grandes ambições. Fotografias de identificação. A inicial apresenta-nos Falleni na sua falsa identidade. As duas seguintes mostram-nos a sua verdadeira identidade, a que a biologia lhe impôs e a que a lei a forçou a aceitar.
Mas as imagens contam-nos uma história diferente. Olhando-se a linguagem corporal, a sensação que se tem é que a personagem travestida é a que consta das fotos da penitenciária,e não a da esquadra. Eugenia é muito mais natural e segura enquanto suspeito Harry Leo Crawford , do que enquanto condenada Eugenia Falleni.
Estas imagem falam-nos de identificação e identidade. E de como estes conceitos não são sempre avenidas cristalinas, funcionais e desimpedidas. São, por vezes, sítios obscuros, retorcidos, misteriosos.
autor desconhecido,
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor),
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui
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autor desconhecido,
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor),
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui
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autor desconhecido,
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor), |
Estas imagem falam-nos de identificação e identidade. E de como estes conceitos não são sempre avenidas cristalinas, funcionais e desimpedidas. São, por vezes, sítios obscuros, retorcidos, misteriosos.
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