domingo, 18 de setembro de 2011

Olha o boneco!

Entre a interessante quantidade de coisas que Félix Nadar e os seus ajudantes levaram para o subsolo parisiense nos Outonos de 1861 e 1864, e nos Invernos de 1862 e 1865, encontravam-se manequins. A razão da presença destes fracos substitutos de gente, entre os recursos técnicos que o fotógrafo fez transportar pelas catacumbas e pelos esgotos, prendia-se com o seu desejo de colmatar uma falha que detectara - em muitos dos registos fotográficos com que os exploradores novecentistas apresentavam outros espaços de espanto verificava-se a ausência de uma noção de escala.
Para os desenhadores e pintores, a resolução deste problema não oferecia grande dificuldade. Junto ao monumento e à ruína pitoresca, num recanto da paisagem desafiadora, colocava-se a representação de algo familiar, normalmente uma figura humana. Este recurso técnico esclarecia todos acerca da dimensão da coisa representada. Nadar, agente de uma disciplina nascente, a Fotografia, socorre-se do saber acumulado da Arte Ocidental e tenta reproduzir a solução nas catacumbas e nos esgotos de Paris. Contra si tem as limitações técnicas de então: emulsões pouco sensíveis e iluminação artificial muito limitada. Com exposições de dezoito minutos, está fora de questão obter um retrato de figura humana com a qualidade que o caracteriza. Mesmo com muita boa vontade e com as ferramentas de estabilização do modelo, comuns na época, objectos metálicos que constrangem os movimentos segurando o retratado pelas costas e pelo pescoço, o resultado final é necessariamente um figura tremida. A solução de nadar é fazer uso de manequins realistas, com roupas verdadeiras e em poses verosímeis. Espera assim obter uma justa representação documental dos espaços subterrâneos.
Olhando agora estas imagens, com o olhar de mais de quase duas centenas de anos de Fotografia (um olhar muito menos ingénuo que o dos contemporâneos de Nadar), o resultado distancia-se bastante dos propósitos do fotógrafo. A colocação do manequim dá às imagens um carácter de farsa, de falsificação, que corrói as suas intenções documentais. Gera um ruído que perturba a leitura, afasta as imagens do campo da representação da verdade. Embora verdadeiras imagens das catacumbas e dos esgotos, estas fotografias tendem a ser lidas muito mais como reconstituições, sejam didácticas (como as dos museus), sejam lúdicas (como as dos parques de diversões e feiras, veja-se a título de exemplo, imagens de figuras dos túneis do horror ). Enquanto documento, estes trabalhos são imensamente mais fracos que outras fotografias de Nadar, dos mesmos espaços mas sem o recurso a manequins.

Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861/1862
imagem obtida aqui

Félix Nadar, Esgotos de Paris, 1864/1865
imagem obtida aqui

Radicalmente diferente nos resultados e na experiência é trabalho de Hiroshi Sugimoto, na série Portraits. Realizada nos finais da década de noventa do século passado, esta série do fotógrafo japonês parte da possibilidade de fotografar a figura de cera de Henrique VIII de Inglaterra, criada pelos artesão do Museu de cera da Madame Tussaud, em Londres. Trabalhada com enorme profundidade e detalhe a partir das pinturas de Hans Holbein, o Novo, a escultura traz-nos com realismo o polémico rei. E permitiu a Sugimoto iniciar uma série em que trabalha alguns dos seus temas de eleição - a natureza da Fotografia e os seus limites, a realidade e a sua percepção, a apreensão dos conceitos de vivo e morto. Partindo de Henrique VIII, utilizando técnicas de iluminação que reproduzem a luz com que Hans Holbein terá trabalhado, fotografou outras figuras do passado anterior à Fotografia, recuperadas da pintura europeia pelos artesãos do Madame Tussaud, e por fim, as estátuas de cera de personalidades contemporâneas de Sugimoto, como Fidel Castro e o imperador Hirohito.
O resultado é perturbador. Trabalhando com o mesmo material de Nadar, simulacros da figura humana, o produto e os objectivos são diametralmente opostos. Ao passo que nadar pretendia fornecer uma melhor percepção da realidade que assistia, Sugimoto parece querer confrontar-nos com a nossa propensão para sermos iludidos, mesmo sabendo da impossibilidade do que nos é oferecido à vista. Vemos Henrique VIII fotografado, sabemo-lo morto muito antes do tempo da Fotografia, mas tendemos a vê-lo como verdadeiro. Oscila-se entre a percepção de um retrato fotográfico verdadeiro e a percepção de uma reprodução preto e branco de uma pintura (talvez por isso as imagens das estátuas de figuras históricas sejam as mais fortes da série). Ao contrário das imagens dos esgotos e das catacumbas, que apesar de verdadeiras nos soam falsas de imediato, os retratos de Sugimoto, apesar de os sabermos improváveis, parecem-nos verdadeiros.

Hiroshi Sugimoto, Henrique VIII,
série Portraits, 1999
imagem obtida aqui
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