Porém, a Paris dos pioneiros da Fotografia era uma cidade bastante diferente daquela que temos em mente hoje. As ruas que Daguerre e Bayard percorriam enquanto matutavam nos sais de prata, eram as de uma pólis de raiz medieval que até ao século doze se fora improvisando e construindo, consumindo a pedra das construções da cidade romana que a precedeu. E que partir de então se continuará a expandir, movida sobretudo por inércia e não tanto por planos, e de uma forma estranhamente autofágica. Esgotada a fonte das construções romanas, os parisienses escavam as entranhas da cidade, em pedreiras subterrâneas que alimentarão com gesso e calcário, durante séculos, o fulgor construtivo da capital francesa. Sem controlo e sem projecto, as galerias alastram-se por quilómetros, criando uma verdadeira cidade debaixo da cidade.
Nem sempre seguros, nem sempre cuidados, os subterrâneos revelaram-se por vezes uma fonte de catástrofe. Pequenos desabamentos prenunciaram o enorme colapso de 27 de Julho de 1778, em a rua Boyer foi engolida pelo próprio solo. Perante o sucedido, Luís XVI (exacto, o que mais tarde perderá a cabeça na guilhotina) ordena a criação do corpo de inspectores das pedreiras liderado pelo arquitecto do rei, Charles Axel Guillaumot. É iniciado então um trabalho gigantesco, que incluirá a inspecção, inventariação e cartografia das galerias, o escoramento das instáveis pedreiras e a criação de acessos adicionais para facilitar as vistorias e a conservação. Para facilitar a orientação, Guillaumot ordena a identificação das galerias e túneis mandando gravar nos seus extremos o nome da rua correspondente no plano superior.
A Paris subterrânea torna-se um espelho viário da paris das Luzes. E será assim até que, aquando da instauração do Segundo Império, se reunem as condições políticas e as ambições do rei e do prefeito do Sena, o Barão Georges-Eugène Haussmann, que levarão a cabo o que por várias vezes havia sido antes defendido – a construção de uma nova Paris. A velha Paris, de ruas caóticas e estreitas, insalubre, não era aceitável para os que defendiam que a capital deveria reflectir no seu traçado e construção a racionalidade da Modernidade. Pesou também a velha rivalidade com os ingleses, que por essa altura já haviam dotado Londres de um conjunto de Parques Públicos e de um amplo sistema de esgotos. Assim, de 1853 em diante iniciar-se-á a destruição e o renascimento da capital, trabalho que verdadeiramente só será concluído no final desse século, bem depois do estertor do segundo Império e do afastamento do barão.
Na década de 60 de oitocentos, quando os trabalhos estavam verdadeiramente a começar, foi contratado o fotógrafo Charles Marville para registar, para memória futura, a Paris em vias de desaparecer. Charles Marville, pseudónimo de Charles François Bossu, um pintor, gravador e ilustrador nascido em 1813, que mudara de mister aquando do aparecimento da fotografia, havia-se destacado da grande quantidade de fotógrafos da época ao se ter especializado na fotografia de obras de Arte e de Arquitectura, primeiro utilizando a técnica de negativos em papel salgado, depois chapas de vidro com colódio húmido.
Em 1858, inicia uma ligação formal com o município de Paris, fotografando o Bois de Boulogne, o recentemente renovado parque real, que se tornara um dos locais preferidos da burguesia parisiense. Este trabalho é, na prática, o início da enorme série de fotografias relacionada com a renovação da cidade, e como vimos, durante a década seguinte realizará cerca de 400 fotografias das ruas e becos que serão arrasados pela programada acção de Haussmann (que aliás lhe encomendará igualmente o retrato da nova cidade, numa outra sequência de imagens, que incluirão desde as novas igrejas e avenidas aos pitorescos urinóis).
O fotógrafo oficial de Paris fará assim uma abrangente recolha visual da Paris mutante do segundo império, mas o que mais nos impressiona é o corpo de imagens da cidade condenada. A ele devemos a fonte que permite as reconstruções cinematográficas realistas da cidade, em séries ou filmes. Graças a ele podemos, com propriedade, imaginar as ruas de Les misérables, de Vitor Hugo, onde Jean Valjean deambula ( no meu caso, por falta de imaginação, valjean parece-se sempre com Gérard Depardieu).
Charles Marville, paris; 1860/1870
Prova de albumina
imagem obtida aqui
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Charles Marville,
Beco junto ao Mercado dos cavalos,Paris, 1860/1870
Prova de albumina
imagem obtida aqui
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Uma das inesperadas consequências da renovação de Paris foi a de refocar a atenção dos parisienses, pelo menos de alguns, na cidade do Subsolo. Estranhamente para nós, criaturas do conforto e da higiene, a rede de esgotos criada então era para muitos dos burgueses citadinos uma atracção a visitar. Uma outra secção da Paris subterrânea ganha então renovada atenção, as catacumbas. No último quartel do séc. XVIII, tornou-se inadiável e imperativo resolver a situação dos sobrelotados cemitérios parisienses, que se tornavam um sério problema de saúde pública, tal era a quantidade de matéria em decomposição. Inseridos maioritariamente no espaço de igrejas, revelavam-se impossíveis de ampliar e impróprios de uma metrópole que crescia incessantemente. É decidida a criação de três enormes cemitérios nos arredores, e eliminação das pequenas necrópoles citadinas. Uma vez tomada a decisão, impõe-se decidir o que fazer dos restos mortais nelas existentes. Alexandre Lenoir, responsável policial parisiense, pensa nas pedreiras. Será o seu sucessor, Thiroux de Crosne, quem escolherá o local exacto e quem porá em acção o plano de transladação em 1786, com o apoio do corpo de inspectores das pedreiras. Até 1810, as pedreiras e galerias serão usadas como mero depósito até que Louis-Étienne Héricart de Thury, o sucessor de Guillaumot na chefia dos inspectores, decide dar maior dignidade à tarefa e tornar visitáveis os ossários. Inicia-se então a actual disposição das catacumbas, com as ossadas compostas e guarnecidas com as pedras das campas que foi possível recuperar.
Em 1861, Gaspard-Felix Tournachon, mais conhecido pelo seu pseudónimo Félix Nadar, visita os novos esgotos e decide, num impulso sem grande interesse comercial, fotografar o que solo de Paris escondia. Este arrojo era um óbvio desafio, dada a infância da técnica. Apesar de usar a técnica do colódio seco, mais propícia a aventuras no exterior, arrastar o equipamento e fazer imagens dos subterrâneos era estava que estava longe de ser fácil. E a menor das dificuldades não era, sem dúvida, a falta de Luz. Encontra-se, por vezes, a informação de que para resolver esta questão, Nadar terá sido um dos pioneiros do uso da ignição combinada de magnésio e cloreto de potássio, antepassada dos flashes actuais, para produzir os clarões necessários à iluminação destes motivos. Mas tal não foi, de facto, a sua solução. Homem habituado a pensar em termos de iluminação no seu estúdio especialmente construído com grandes vidraças, a sua resposta foi mais complicada de transportar e de usar. Mas permitiu um outro tipo de abordagem, com exposições mais longas e controladas. O fotógrafo fez-se acompanhar de bastantes ajudantes, e carregou-os com cabos e baterias, e com a rudimentar iluminação eléctrica da época anterior a Edison. Fotografou assim o grosso das suas imagens subterrâneas, dispondo iluminação a gosto e usando exposições, por vezes, a rondar os vinte minutos. A reportagem de exterior de Nadar era um laborioso trabalho de estúdio.
Ao eventual propósito inicial de retratar a maravilha técnica que eram os novos esgotos, Nadar sobrepõe depois o ensejo de registar uma secção mais antiga do subsolo, precisamente a parte das galerias e pedreiras que recebera os mais de sete milhões de esqueletos dos ancestrais cemitérios parisienses. Será aí que, no Outono de 1861 e no Inverno de 1862, fará a maior parte das mais de cem fotografias subterrâneas que realizou. As suas motivações e a sua insistência não particularmente claras. Ao contrário de muitos fotógrafos seus contemporâneos, realizou muito poucos retratos em leito de morte, e nas suas memórias “Quand j'étais photographe”, de 1900, afirmou que as catacumbas enquanto motivo eram algo monótonas, o seu pitoresco esgotava-se rapidamente. O apelo dos ossários é eminentemente literário e não tanto visual, e o desafio do fotógrafo, induz-nos Nadar, é sobretudo técnico. Mas não nos esclarece acerca da predominância quantitativa das imagens das catacumbas em relação às dos esgotos, menos de três dezenas e mais tardias (datam de 1864 e 1865).
Félix Nadar, Catacumbas, Paris, 1861-1862
imagem obtida aqui
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Félix Nadar, Catacumbas, Paris, 1861-1862
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Félix Nadar, Esgotos, Paris, 1864-1865
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Nadar parece aqui funcionar como exemplo da estranha dualidade do séc. XIX. A par de um enorme interesse na técnica, na era da Máquina, o espírito novecentista procura um contraponto na idealização da Natureza, da História e do misterioso. O fotógrafo parisiense, intimo das elites progressistas, agente do desenvolvimento da técnica fotográfica, ao se dirigir para o subsolo, prefere lutar com impossibilidade de retratar o enigma da morte a fazer um hino fotográfico ao progresso da higiene urbana. Aos esgotos de Haussmann prefere a Paris subterrânea antiga, espelho de uma cidade que morria na superfície à mercê do Progresso.
Charles Marville e Félix Nadar, trabalhando na mesma década, deixam-nos um retrato particular da capital parisiense num momento decisivo. Marville captura o estertor das ruas e becos condenados e Nadar leva-nos para as trevas da cidade que perdurará com a configuração e os nomes das ruas pré-Haussmann. Deixam-nos um retrato de paris, mas neste esta é uma outra cidade.
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