sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A morte do soldado Tannenbaum

Tony Vaccaro, White Death: Photo Requiem for a dead soldier, Private Henry I. Tannenbaum, Bélgica, 1945

Em 19 de Junho de 1997, Tony Vaccaro retornou a Ottré, na Bélgica, e tentou mostrar a Sam Tannenbaum o local exacto onde, em 12 de Janeiro de 1945, fotografara o corpo do seu pai, inerte e semi-coberto pela neve, naquela que é uma das mais significativas imagens da segunda guerra mundial.

Nesse inverno, Vaccaro era um cabo do exército americano que assumira uma guerra extra. Além de executar as tarefas esperadas de um GI- sobreviver, cumprir as ordens, disparar - incumbira-se pessoalmente de captar a matança e a crueza do conflito. Fazia-o a título pessoal, com câmaras modestas, inicialmente uma Argus C3. No final da guerra, transportava permanentemente três câmaras, reguladas com três distâncias focais diferentes, para poder fotografar rapidamente sem perder tempo a operar as lentes, evitando riscos desnecessários. Arranjava os materiais como podia, frequentemente em ruínas de lojas de equipamento fotográfico das cidades por onde passava, e processava os rolos improvisadamente, se necessário usando capacetes como tinas de revelação em noites sem luar. Nessas condições realizou aquele que é um dos registos mais notáveis da segunda guerra mundial, um rol de imagens feitas com o olhar do combatente regular, de alguém que não podia escolher os seus momentos.

No final de 1944 e início de 1945, as tropas aliadas foram surpreendidas pela inesperada contra-ofensiva alemã na zona das Ardenas. Durante cerca de dois meses, tropas Americanas resistiram cercadas nessa zona da Bélgica, aos alemães e a um tempo impiedoso que os enterrava em gelo e neve (e isto Ironicamente no preciso período em que Bing Crosby voltava a melar nas rádio com o adocicado “White Cristhmas”). Em 11 de Janeiro um contingente americano é surpreendido numa emboscada e, com a excepção do sargento Harry Shoemaker, são todos feridos e mortos. Shoemaker sobreviverá fazendo-se passar por morto e, mais tarde, ao retornar relata a gravidade do acontecido. Após a emboscada, as tropas SS acercaram-se dos feridos e abateram-nos com tiros de pistola à queima-roupa. Tony Vaccaro é o sentinela que recebe Shoemaker à chegada ao aquartelamento, e estará entre os primeiros americanos que recuperaram a área do massacre. Aí, repara que o corpo de Tannenbaum se destaca dos demais. Morto de imediato, no inicio da emboscada, não terá tido a atenção dos alemães e jaz direito e composto, semicoberto pela neve. Os demais cadáveres indiciam a contorção dos feridos, e o abate das SS, em áreas muito mais remexidas. A aparente serenidade e compostura de Tennenbaum levam Vaccaro a fotografar a cena, segundo ele, para captar essa visão de uma morte bela. Queria fazer um requiem em forma de fotografia e mais tarde intitulará a fotografia como "White Death: Photo Requiem for a dead soldier, Private Henry I. Tannenbaum.".

Em 1997, ao retornar ao local, tem dificuldade em situar o lugar preciso onde encontrara o pai de Sam Tannenbaum. As características do terreno haviam sido alteradas significativamente. Onde antes houvera campo agrícola aberto crescia uma floresta. A custo descobriu a área aproximada onde haviam estado os resto mortais, e procurou a ajuda do dono actual do terreno, tentando aumentar a precisão dessa identificação. Explicou-lhe que o porquê da sua dificuldade residia sobretudo na floresta que agora ocupava a área. O belga explicou-lhe então que não se tratava, em rigor, de uma floresta. A sua exploração era uma plantação de árvores de Natal, que exportava para Portugal e Espanha. Surpreendido, Vaccaro questionou o belga. Perguntou-lhe se percebia a mórbida ironia do que acabava de descrever. O terreno que agora produzia árvores de natal, tinha sido o lugar da morte do soldado Tannenbaum, poucos dias após o miserável natal de 1944. E Tannenbaum quer dizer precisamente, em alemão, árvore de natal.

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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Antes do sonoro

Ainda da colecção da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América, eis um daguerreótipo de trabalhadores do caminho de ferro, em cima de uma carreta de propulsão manual.

autor desconhecido, Trabalhadores do caminho de ferro, Estados Unidos da América, 1850s
imagem obtida aqui

Vejo-o com algum gozo. Olho para a carreta como o ponto de partida para as peripécias com que Buster Keaton e Charles chaplin deleitavam ( antes do sonoro, e depois, nos tempos em que um único canal de televisão entretinha os portugueses em domingos de chuva). Os fulanos retratados assemelham-se às personagens sérias e reprovadoras que funcionavam como contraponto à asneirada dos cómicos.

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O Registo empático

Não são muito numerosas as representações realistas de trabalhadores manuais na era pioneira da fotografia, nos tempos do daguerreótipo e do calótipo.
Por um lado, pesavam as dificuldades técnicas, com as emulsões pouco sensíveis e as ópticas pouco luminosas a dificultarem a prática fotográfica em ambiente laborais movimentados, frequentemente mal iluminados. Por outro lado, considerações económicas tornavam a Fotografia, enquanto prática profissional, algo muito preso ao retrato encomendado, refém das aspirações e gostos de uma clientela pagante. Por último, esteticamente a fotografia encontrava-se presa a determinados padrões herdados da pintura, que não privilegiavam o realismo de Courbet e afins. Muitos dos profissionais eram pintores retratistas de qualidade secundária que transitaram para a fotografia, por verem nela uma oportunidade de negócio que destronaria a sua actividade tradicional. As representações de trabalhadores em acção nesses primeiros anos resultam sobretudo da prática de amadores, curiosos de registarem o mundo com o seu passatempo. Nos Estados Unidos da América, onde a estratificação social não era tão acentuada quanto na Europa, e onde o acesso ao retrato foi mais rápido do que na Europa, a realização de retratos de artesãos por fotógrafos profissionais não era invulgar. Mas estes, regra geral, ou se faziam retratar omitindo a sua condição, como burgueses com as suas melhores roupas, ou a sua profissão eram abordada por via iconográfica, com os retratados estáticos junto às ferramentas do seu ofício.

Autor desconhecido, Canteiro, Estados Unidos da América,1850s
imagem obtida aqui


Autor desconhecido, Relojoeiro, Estados Unidos da América,1850s
imagem obtida aqui



A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, no seu sítio destinado à colecção de daguerreótipos, reserva uma secção expressamente para estes retratos.Nela destaca-se a fotografia de um serralheiro especializado em fechaduras (locksmith). Bem antes de Jacob Riis, de Lewis Hine e de Dorothea Lange, vislumbra-se na imagem um interesse pela objectividade do mundo laboral e pelos seus agentes. Pela postura corporal, fisionomia do retratado e estado da roupa entende-se que o enfoque do autor não girou em torno de códigos, da construção de uma representação, mas antes em empatia com a realidade.
 
 

Autor desconhecido, Serralheiro (locksmith), Estados Unidos da América,1850s
imagem obtida aqui

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domingo, 13 de fevereiro de 2011

Gérard Castello Lopes - uma entrevista.

No programa pessoal e transmíssivel da TSF, de Carlos Vaz Marques, em 8 de Julho de 2004. Aqui.

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Gérard Castello Lopes (1925-Ontem)

Gérard Castello Lopes, Portugal,1987
imagem obtida aqui

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Brandos costumes (6)






























Estúdio Horácio Novais, Revolta de 26 de Agosto de 1931, Lisboa
imagem obtida aqui

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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Lendo - Incidents of travel and adventure in the Far West

Publicado em 1857, com intenção panegírica, "Incidents of travel and adventure in the Far West " visava inserir-se numa campanha de apoio ao Coronel Fremont, militar e expedicionário norte-americano, que pretendia candidatar-se a presidente dos Estados Unidos. Curiosamente, a imagem que se extrai do aventureiro americano, apesar do tom elogioso das palavras, não é exactamente a de alguém que se possa confiar. Fremont nunca chegaria a presidente, ficando retido num pequeno recanto da galeria das personagens secundárias que fizeram a expansão interna dos Estados-Unidos durante o século XIX.
Em contrapartida, o livro de Solomon Nunes Carvalho, mais do que um registo laudatório, revelou-se uma obra particularmente interessante, com sua descrição, na primeira pessoa, das aventuras de um fotógrafo citadino e judeu por terras do Oeste, antes do caminho-de-ferro, da Guerra cívil, dos cowboys e das manadas de bovídeos que vemos nos Westerns.
Antepassado de algumas obras modernas de literatura de viagens ( lembro-me do "Na Patagónia" de Bruce Chatwin), e despretensioso no estilo, o livro revela-se igualmente uma fonte particularmente importante para os historiadores norte-americanos, enquanto suporte escrito de factos ocorridos durante o périplo de Solomon, cuja descrição é feita a partir de relatos próximos e, sobretudo, por presenciamento do próprio autor, que se cruza com figuras únicas como Brigham Young, primeiro governador do Utah, e Wakara, chefe índio Ute.
Prova do seu interesse é o facto de, ao contrário de muitas obras portuguesas da mesma época, ser passível de compra em várias edições recentes, umas mais cuidadas, de capa rígída, outras destinadas a público mais alargado, de capa de cartão. Algumas facsimiladas, outras simples transcrissão de texto.Pesquise-se na internet e ver-se-á como são fáceis de encontrar à venda.
Um exemplo: a edição paperback da University of Nebraska Press, cuja capa contém uma reprodução de parte da única imagem fotográfica, das largas dezenas realizadas na expedição em que Carvalho participou, que chegou até aos nossos dias.

Solomon Nunes Carvalho, Incidents of Travel and Adventure in the Far West, University of Nebraska Press, edição de 2004

Quem não se sentir em condições de gastar uma dezenas de euros ( tipo um professor com filhos, casa e carro para sustentar, progressões congeladas apesar de boas avaliações e um ordenado ainda mais reduzido desde janeiro) pode, sem quaisquer problemas de consciência dada a idade da obra e a prescrição dos direitos de autor, ler online:
Transcrição do texto em

Ou a digitalização da edição original, de 1859, em

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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Augusta fantasmagoria

Por entre as imagens de uma Lisboa nocturna, em tempos de Estado Novo, feitas por Horácio Novais, e agora disponibilizadas no flickr pela Fundação Calouste Gulbenkian, chamam-me a atenção algumas da rua Augusta. Ao contrário de outras desta sequência, marcadas sobretudo pela evidenciação da iluminação, que nos mostram uma lisboa deserta e glamorosa, de automóveis e arquitectura, cenário de filme negro, nestas o fotógrafo concentra-se na captura da massa humana que percorre as calçadas.
A exposição longa (mas não demasiado longa) que a penumbra nocturna impõe transforma a multidão transeunte numa massa espectral a que as luzes natalícias acrescentam um toque de estranheza.


Horácio Novais, Rua Augusta, Lisboa,sem data
imagem obtida aqui

Gosto bastante da imagem acima, que considero particularmente feliz na relação entre o tempo de exposição e velocidade da multidão. Gosto igualmente por ser um exemplo interessante de como, por vezes, os elementos presentes na imagem põe em evidência os ausentes. Aqui, é claro que o fotógrafo cria um acontecimento pela sua simples presença. Posicionado no meio da corrente pedonal, em posição elevada, possivelmente como um obstáculo, chama a atenção. Força a paragem de alguns dos passantes que se retêm, por momentos, para ver quem os fotografa. Passa-se isto em Lisboa, em Portugal, um lugar e um tempo que não se gostava de ser fotografado, conforme dizia Gerard Castello Lopes numa entrevista.
As figuras que se retiveram, ou que vieram às  varandas observar, e que olham para o fotografo põem igualmente em destaque a natureza voyeuristíca da Fotografia. Em termos da imagem vemo-los como olhando para nós, que olhamos para eles. O olhar é exposto como uma intrusão, uma abordagem nem sempre solicitada, ou tolerada, ao outro.

Horácio Novais, Rua Augusta, pormenor, Lisboa,sem data
imagem obtida aqui


Horácio Novais, Rua Augusta, pormenor, Lisboa,sem data
imagem obtida aqui

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Saber e o Tempo

(atribuída a) John van Voorst, 
O Professor Richard Owen e o Esqueleto de Dinornis giganteus,1879
imagem obtida aqui


























Conheci esta imagem, curiosamente, numa exposição itinerante relativa ao bicentenário do nascimento de Charles Darwin. Encontrava-se em formato reduzido, num canto de um painel informativo acerca da polémica que rodeou a publicação de “A Origem das espécies”.
Neste, várias citações eram chamadas a mostrar os oponentes e os defensores dos pontos de vistas de Darwin, numa guerra que extravasou em muito o racional confronto entre teorias. Trocaram-se argumentos em busca de uma vitória no campo da opinião pública, e apresentaram-se dados, ora observáveis e verdadeiros, ora truncados e excessivos, por vezes tristemente errados e patéticos. E a ofensa pessoal não foi uma arma posta de parte.
Richard Owen foi claramente um dos detratores de Darwin e a relação entre os dois cientistas, que em tempos fora de cautelosa colaboração, evoluiu para um ódio afirmado.

A história deste confronto é conhecida e seu desfecho também - foi claramente favorável para Darwin, cuja perspectiva se tornou hegemónica nos campo científico e educativo, e preponderante na percepção geral da população ocidental. Porém, esta é uma guerra que permanece viva para uma parte não negligenciável do ocidente. Sobretudo no mundo anglo-saxónico, franjas religiosas insistem em tribunal e na comunicação social com acções que pretendem impor no ensino público a perspectiva criacionista como uma hipótese cientifica de igual valor à aceite teoria evolucionista.

Por outro lado, o resultado do confronto de oitocentos chega-nos redutor, e esmaga como um rolo compressor todos os seus participantes. Nem tudo o que foi defendido por Darwin foi validado posteriormente (embora a questão central, a evolução, seja hoje inquestionável), nem todos os oponentes eram obscurantistas agarrados ao velho testamento como fonte única do saber.
Richard Owen, que aparece quer como uma espécie de mártir criacionista (cientista brilhante remetido para o esquecimento por acção vingativa dos evolucionistas), quer como um simples polemista, é decerto um dos casos deste esmagamento. Ao contrário do que alguns estranhíssimos comentadores afirmam, não seria um criacionista, defensor duma terra com poucos milhares de anos, conforme o descrito na bíblia. Não era alheio às questões do longo tempo geológico de Charles Lyell, aliás uma parte significativa do seu trabalho lidara com espécies extintas e analisara as características comuns que uniam exemplares desaparecidos às espécies modernas.
Nascido em 1804, em Lancaster, inicia-se na medicina, primeiro como aprendiz de um cirurgião da sua terra natal, depois como estudante da Universidade de Edimburgo, e finalmente completa o curso no Hospital St Bartholomew, em Londres. Mas o seu gosto pela pesquisa anatómica, e o apoio do eminente cirurgião John Abernethy na obtenção de um lugar de assistente do curador do museu do Royal College of Surgeons, fazem-no abandonar a carreira médica.
Metódico, incansável, ambicioso, inicia um percurso brilhante no campo da anatomia comparativa que o levará a professor do Royal College of Surgeons, a curador do mesmo museu e, em 1856, a superintendente do Departamento de História Natural do Museu Britânico. Aí inicia o trabalho de angariação de apoios para o projecto de um novo edíficio, elaborado de raiz para as colecções de História Natural, que virá a culminar com a edificação do Museu Britânico de História Natural, em South Kensington.

Owen alia assim a faceta de estudioso particularmente produtivo, com cerca de duas centenas de trabalhos publicados, de especialista reconhecido cujo apoio é solicitado pelos seus pares, de introdutor de conceitos anatómicos e taxonómicos modernos , a um carácter de homem público, divulgador que se auto publicita com discursos e acontecimentos espectaculares. É ele que faz construir réplicas escultóricas de algumas das poucas espécies de dinossauros então conhecidas, chegando a promover no interior de uma um jantar. É ele quem cunha o termo Dinossauro para os enormes animais que fascinaram os vitorianos, e que ainda nos fascinam hoje. É ele quem a rainha Victoria busca para ensinar ciências à sua real prole. É ele quem aproveita a imensa polémica que rodeia “A Origem das espécies”, para solicitar financiamento e apoios para o museu que criara e dirigia.
É neste lado mais político de Richard Owen que encontramos a chave para a compreensão do homem e da sua algo errática e escorregadia relação com a teoria da evolução.
Com tacticismo e anos de trabalho, erguera-se a uma posição de elevado reconhecimento público que não podia, e não desejava, pôr em risco. Se inicialmente existiu uma relação produtiva com Charles Darwin, que lhe confiara as recolhas feitas na viagem do Beagle (cuja análise permitiu a Owen concluir que os especímenes de grandes dimensões extintos da América do Sul se relacionavam de forma directa com espécies vivas de menor porte existentes na mesma região geográfica, fornecendo elementos importantes para a teoria que Darwin mantinha em gestação), o facto é que existiu sempre reserva e receio deste último em relação a Owen. É-lhe conhecido o temperamento ambicioso e aguerrido de Richard Owen, que não hesita em usar, sem o reconhecer, o trabalho de terceiros, e em recorrer a processos de ridicularização pública daqueles que com ele tentam ombrear no campo das descobertas científicas. Sabe da dificuldade de Owen em compartilhar publicamente de uma posição que era religiosa e filosoficamente sensível, ele que reconhecendo relações directas entre espécies extintas e espécies existentes, se opunha de forma determinada à corrente Lamarckiana ( precursora de Darwin nalguns aspectos, e que tentava explicar o aparecimento de novas espécies com base na premissa de que uso e desuso de determinados órgãos leva ao seu desenvolvimento ou atrofia, e que este facto é transmitido aos seus descendentes). Sabe que muito dificilmente este aceitará defender uma teoria que retira o Homem dum local privilegiado e central na existência, sem um propósito superior a orientá-lo (sobretudo quando o mérito deste postulado não lhe pertence, e quando não lhe parece possível daí retirar proveito e reconhecimento).
Não é assim estranha a tremenda prudência de Darwin na publicitação da teoria que vai divulgando restritamente entre alguns cientistas, só acelerando para a publicação quando teve conhecimento de que Alfred Russel Wallace chegara a conclusões muito semelhante através duma pesquisa independente. Não só terá de enfrentar quase certas confrontações com membros do clero anglicano e da imprensa, como lhe parece provável o embate que virá a ter com Owen a figura que, para o público, representava a credibilidade científica no Reino Unido.

Voltando à imagem, esta prende-nos a atenção por várias vias. Pessoalmente, interessa-me por se inserir de forma directa num determinado corpo fotográfico, particularmente forte no século dezanove, o das imagens que discorrem sobre Ciência e Fotografia. Mas aparte isso, penso que há nela dois discursos interessantes, um discurso sobre o Tempo e um discurso sobre o Saber.
Em rigor, todas as fotografias encerram uma visão sobre o tempo. A imagem fotográfica é um registo de algo que já foi. A partir do momento em que é tirada, a fotografia fala-nos do tempo em que foi feita, e a percepção que temos desse tempo evolui, não é estática. Neste caso em particular, o fotógrafo pretendeu contrapor dois tempos, o seu, o de Owen, e um outro, anterior à História, o da Moa, ave gigantesca da Nova Zelândia, que se extinguiu aquando da chegada do homem a essas ilhas.
Esta oposição passado/presente teve um claro, e curto, prazo de validade. Olhando a imagem agora, mais de cem anos depois, não a vemos. É uma imagem sobre o passado, sobre um tempo que nos é exterior. O envelhecer físico da fotografia e o envelhecimento das referências - vestuário, modo de compor a imagem, a opção da viragem a sépia - remetem para o passado. Nivelam os tempos presentes na fotografia, e Richard Owen é-nos quase tão extinto e estranho quanto a estranha ave que percepcionamos nos ossos ao seu lado.
Há depois, como disse, um discurso sobre o Saber. Num primeiro olhar, parece-nos haver uma abordagem estereotipada, típica de uma certa forma de retratar do século dezanove. O sujeito é representado na posse dos instrumentos de trabalho que o categorizam, mesmo que não o saibamos identificar- Um escritor é registado com a pena e o papel, o engenheiro com os rolos dos projectos, o químico com as pipetas e as lamparinas, e por aí adiante. Mas escarafunchando-se um pouco mais apercebemo-nos que imagem encerra uma narrativa. Owen segura, na mão direita, um fragmento de osso e pousa a sua mão esquerda no esqueleto, fossilizado e reconstituído, da Moa. Alude o fotógrafo ao facto de, quarenta anos antes e com base num pequeno fragmento apenas, Richard Owen ter concluído que uma ave gigantesca povoara em tempos as Ilhas neozelandesas, facto confirmado posteriormente pelo achamento de ossadas mais completas. Diz-nos que é o génio do cientista que une um pequeno fragmento a uma certeza. Owen é o homem que possui o saber, e segura-o nas mãos.

(atribuída a) John van Voorst,
O Professor Richard Owen e o Esqueleto de Dinornis giganteus,
pormenor, 1879
imagem obtida aqui


A mise en scène é cuidada e orienta-se para demonstrar o estatuto especial do retratado. O professor e as ossadas situam-se sobre um plano elevado e nuvens pintadas do fundo remetem-nos para um imaginário mitológico. Owen olha-nos do alto da sua sabedoria como os deuses olhavam os humanos a partir do monte Olimpo. Para os antigos gregos era também a sabedoria (e não só o poder) que separava a divindade da mundanidade.
Porém, neste campo do subtexto da imagem, as coisas fugiram igualmente aos prováveis propósitos de fotógrafo e fotografado. A composição apresenta-nos o homem e o esqueleto frontalmente, quase como simétricos. Separa-os um eixo central marcado pela manga da capa professoral de Richard Owen, e o corpo deste tem a forma aproximada da parte inferior da reconstituição da Moa. Ao invés de se destacar como o elo, como o saber que une o fragmento ao todo, o vitoriano assemelha-se a uma ave pré-histórica sem pescoço.

(atribuída a) John van Voorst,
O Professor Richard Owen e o Esqueleto de Dinornis giganteus,
pormenor, 1879
imagem obtida aqui

(atribuída a) John van Voorst,
O Professor Richard Owen e o Esqueleto de Dinornis giganteus,
pormenor, 1879
imagem obtida aqui

   

Vistos hoje e nesta fotografia, Richard Owen e a Moa parecem-nos próximos, seres do passado e formalmente parecidos. A partir de uma intenção laudatória, a imagem foge para um resultado algo patético. Está longe de representar o poder do saber e a vitória sobre o tempo.

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