domingo, 29 de junho de 2014

Killing Becher

"Killing Becher" é um projecto do jovem fotógrafo e videasta francês Swen Renault.
Objecto de classificação complicada, chamá-lo de Fotografia fará disparar alguns alarmes dos mais puristas. Mas é um objecto que discorre obviamente sobre Fotografia.
Trabalhando com imagens fotográficas de depósitos públicos de água, um dos arquétipos da arquitectura industrial e anónima que o casal alemão Becher tomou como central na sua imensa obra, serial e repetitiva, uma obra que marca definitivamente a Fotografia das últimas décadas, com imensos admiradores e emuladores.
Mas as imagens não são nem originais de Renault, nem replicam exactamente os processos dos Becher. Swen Renault tinha pressa e pouca vontade de andar anos atrás de depósitos pelo mundo inteiro. Por isso usou o atalho típico do século XXI, pesquisou as imagens na internet e descarregou-as. Mas não pesquisou quaisquer depósitos de água, pretendia apenas obter registo de edifícios em derrocada, em demolição ou em evidente ruína. Depois recorrendo a programas de edição de imagem, reenquadrou as imagens descarregadas, retirou-lhes a saturação e aproximou-as em termos tonais às inconfundíveis fotografias do casal alemão. Uniformizou-as.
Por fim, emoldurou-as e apresentou-as "à La Becher", com o provocante título que as nomeia.

Quando algumas vozes críticam a "Nova Objectividade" alemã, ou a "Escola de Dusseldorf" se preferirem, dizendo que o seu pendor conceptual, iconoclasta, frio, matou a criatividade da Fotografia contemporânea, Renault contrapõe encenando a sua destruição.

Esta instalação pode não ser exactamente Fotografia para muitos, mas uma coisa é garantida, é um decerto um divertido olhar sobre o Mundo da Fotografia autoral do nosso tempo.

Swen Renault,
"Killing Becher",
França, 2013
imagem obtida aqui

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sábado, 28 de junho de 2014

O verdadeiro Oeste de Solomon Devore Butcher

Solomon Devore Butcher,
auto-retrato,
E.U.A., 1886
imagem obtida aqui

Solomon Butcher, um americano que acompanhou a expansão do seu país para os novos territórios a oeste, tornou-se fotógrafo e procurou a fortuna registando os novos habitantes das grandes planícies.
Não teve sucesso financeiro, mas deixou-nos o extenso testemunho dum Oeste objectivo e verídico que, por vezes, era mais estranho que o da sua versão cinematográfica.

Leia mais aqui.

Solomon Devore Butcher,
A família Ball defronte da sua casa de terra,
Woods Park, Nebraska, E.U.A.,1886
imagem obtida aqui
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quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Macaco de Harlow

Quem, como o autor destas linhas, gosta de acreditar que tem alguma erudição científica e não desdenha demonstrá-la recorrendo a histórias com bichos, cita com alguma frequência duas experiências científicas, uma real, outra hipotética.

A primeira é a do Rato de Skinner, onde o bicho era inserido numa caixa com uma pequena alavanca. Nuns casos, quando o rato tocasse na referida alavanca, era recompensado com alimento, levando a que em pouco tempo passasse a tocar sistematicamente nela a fim de receber comida. Noutros casos, sempre que havia contacto, o rato recebia não comida, mas sim choques eléctricos, o que tinha como consequência que o animal passava a evitar tocar na referida alavanca. O objectivo de Burrhus Frederic Skinner, o autor da experiência, era verificar  o comportamento animal era determinado por condicionantes ambientais, o que se comprovou.

A segunda é a do Gato de Schrödinger, em que o bichano é teoricamente colocado numa caixa totalmente opaca e insonorizada. Dentro dela, encontra-se um mecanismo em que um contador Geiger é colocado junto a uma pequena dose de material radioactivo, tão pequena que poderá mesmo não fazer disparar o contador durante a hora que dura a experiência. Caso o faça, o contador accionará um martelo que partirá um frasco de ácido cianídrico. O que matará o gato.
Desde o momento em que se fecha o gato na caixa até à altura em que se abre a sua tampa, é impossível determinar o estado de saúde do bicho. Durante uma hora, o bicho está simultaneamente morto e vivo.
Com esta construção mental, o físico austríaco Erwin Schrödinger pretendia ilustrar de forma simples um problema da mecânica quântica, em que partículas podem num dado momento ter dois estados e posições diferentes.

Mas em matéria de maldade científica com bicharada no meio, gosto de juntar a estas duas experiências uma terceira: o Macaco de Harlow.

Harry Frederick Harlow foi um psicólogo americano que estudou a afectividade e as interacções sociais utilizando macacos em contexto laboratorial, gerando alguma controvérsia.

Na mais famosas das suas experiências, macacos Rhesus muito jovens eram separados das progenitoras e colocados numa divisão com duas "mães" adoptivas inanimadas. Estes simulacros maternais eram bastante distintos, um era dotado de uma face amigável e de pêlo fofo, ao passo que o outro consistia numa estrutura cilíndrica de rede metálica, com uma cabeça tosca e um biberão que dispensava leite ao pequeno macaco. O objectivo de Harlow era pôr em causa uma teoria vigente à época, que declarava que as relações afectivas resultavam da satisfação de necessidades básicas como a alimentação. E conseguiu-o.
Os macacos submetidos à experiência demonstravam um mesmo padrão comportamental. Sem quaisquer interacções dignas desse nome, as pequenas criaturas agarravam-se obsessiva e neuroticamente à mãe dotada de pêlo, deslocando-se raramente ao modelo de rede, e apenas no tempo estritamente necessário para se alimentarem. 

A fotógrafa Nina leen, que tinha mais ou menos o pelouro das histórias estranhas e/ou com bichos da revista LIFE, teve a oportunidade de registar a cores uma dessas infelizes cobaias, em 1964. 

Nina Leen,
O macaco de H. F. Harlow,
E.U.A., 1964
imagem obtida aqui


Se se sentir de alguma forma incomodado com estas pequenas histórias de alguma maldade com animais, não se preocupe. É sinal que, tal como o Macaco de Harlow, você é apenas humano...

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quarta-feira, 11 de junho de 2014

A trincheira da morte

Para a população pouco politizada e pouco letrada, que constituía a maioria da população da cidade do Porto e seus arredores, em meados do século vinte havia coisas de que não se falava correntemente. Mesmo entre o operariado com alguma militância política (clandestina) havia coisas de que só se falava com quem era tido por gente de confiança.

Quem cresceu nos anos quarenta e cinquenta do século passado, em volta daquela cidade, tinha muitas vezes apenas uma noção bastante vaga do que lá tinha acontecido um pouco antes, em Fevereiro de 1927. Sabiam, a partir de meias conversas e de coisas depreendidas, que houvera lá combates e bombardeamentos. Sabiam que houvera algo tão grave que uma zona ganhara o título, em tom tão lendário, de "trincheira da morte". Mas a natureza e os pormenores dos factos eram contornados e o evento desvanecia-se na imprecisão e no silêncio.

Aquela mudez colectiva anulava estranhamente um acontecimento de escala significativa.
Na madrugada de 3 de Fevereiro de 1927, escassos meses após o inicio da ditadura militar que desembocaria no Estado Novo, foi desencadeada uma revolta militar que visava repor a ordem republicana (e, em larga medida, repor o hegemonia do Partido Democrático). As primeiras unidades, previa o plano, sublevar-se-iam na cidade do Porto,  e a elas juntar-se-iam mais tarde aquartelamentos de Lisboa e forças de outras cidades.
O primeiro ponto do plano decorreria com o previsto, os revoltosos controlariam a maior parte do Porto, remetendo os militares fieis aos governo no interior da cidade à defensiva. Mas tudo além disso ficaria aquém do planeado. A 4 de Fevereiro, a revolta resumia-se a pouco mais que algumas localidades do norte de Portugal e do Algarve. Em Lisboa, as unidades simpatizantes hesitavam, permitindo ao Governo o contra-ataque. 

Autor não identificado,
Soldados da Infantaria nos camiões que
os conduziram ao local de embarque para o Porto
Vila Nova de Gaia, Portugal
Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui


A artilharia governamental que atacava as posições rebeldes do Porto desde o início, a partir da serra do Pilar, no lado oposto do rio Douro, ainda recuou por força dos bombardeamentos da artilharia de Amarante que se juntara à revolta, mas estabilizou posições no Monte da Virgem, continuando a fustigar as forças rebeldes. Reforços vindos de Aveiro, permitiram depois ao Governo tentar a entrada na cidade do Porto a partir do sul.
Os revoltosos, entrincheirados com metralhadoras, conseguiram porém rechaçar o assalto provocando bastantes baixas. A violência dos combates seria tal que à posição revoltosa situada nas ruas de Santa Catarina e 31 de Janeiro a população atribuiria o referido título de "trincheira da morte".

Ferreira da Cunha,
Tropas fiéis à Ditadura Militar combatendo a revolta no Porto,
Vila Nova de Gaia, Portugal,
3 de Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui

Autor não identificado,
A artilharia que fez fogo sobre o Porto,
Monte da Virgem, Vila Nova de Gaia, Portugal,
Fevereiro de 1927

Autor não identificado,
Conflitos nas ruas de Santa Catarina e 31 de Janeiro,
Porto, Portugal,
Fevereiro de 1927
imagem obtida aqui
Apesar do vigor combativo, dois dias após o início da revolta, as tropas revoltosas encontravam-se completamente cercadas e nem a adesão tardia de algumas forças em Lisboa (da Guarda Nacional Republicana e da Marinha, sobretudo) seria capaz de inverter o fim previsível. Sob fogo constante e  bombardeamentos, a revolta resistiria ainda mais uns dias até que o fim das munições e a desesperança acabaram por impor a rendição na madrugada de 8 de Fevereiro.

A cidade do Porto sairia daquela que seria a primeira revolta do chamado "Reviralho" com um triste balanço: mais de uma centena de mortos, entre civis e militares, mais de meio milhar de feridos e um número enorme de casas e edifícios públicos severamente danificados

Perante esta descrição dos factos estranha-se o apagamento e desconhecimento geral que os engoliu.
Poderá parecer paradoxal este entorpecimento da memória colectiva. À primeira vista, dado que um dos principais factores de legitimação simbólica do Estado Novo era o retorno à ordem e o fim da instabilidade política, omitir o esmagamento da revolta de 1927 não parece ser uma estratégia muito consequente. Por outro lado, pela parte dos vencidos, a glorificação dos mártires republicanos, mesmo tendo em conta a censura, foi algo que não foi insistentemente perseguido.

Na verdade, ambos os lados concordaram em lembrar vagamente.

Apesar do seu inegável autoritarismo e postura ordeira, o Estado Novo não era um regime militante, de grandes massas, de retórica militar hiperbólica. Apesar de manifestações e modismos que copiava e compartilhava com os congéneres de Itália, Espanha e Alemanha, de toda a mitologia nacionalista que invocava, o seu ideal era que Portugal fosse um local onde nada se passava, e onde o que se passara, passara e não havia que remexer muito. O regime gostava de acreditar que a ordem que impusera pelas armas, não fora na verdade imposta, fora antes o produto dum anseio popular. Gostava de lembrar a "desordem" anterior, mas sem frisar excessivamente o pé militar e policial que colocara sobre a sociedade portuguesa.

Quanto à oposição republicana, falhadas as várias revoltas "reviralhistas", na sua luta contra a ilegitimidade da ditadura a última coisa que lhe traria proveito, e apoio popular, era invocar os tempos de lutas internas no sector republicano e o seu próprio passado de conquista do poder pela força militar. Determinou-se falar da imposição forçada da ordem salazarista (Salazar erguera-se entretanto como personificação do poder) contra uma ordem constitucional republicana, mas sem pormenores que manchassem a imagem.

Esta confluência de interesses permitiu eclipsar quase totalmente a memória dos conflituosas e perigosas primeiras décadas do século vinte português. A vaga memória dos anos quarenta e cinquenta passou a quase coisa nenhuma. No Porto, e no resto do país, já quase ninguém sabe da "trincheira da morte".

O retrato almejado pelo Estado Novo, de Portugal como país de brandos costumes, tornou-se hegemónico e falsamente evidente. Sendo muito elíptico em relação à verdade, é no entanto confortável.

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