quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Homem que desmentiu Descartes

O francês René Descartes foi um pensador que, no século XVII, desenvolveu um conjunto de teorias no campo da filosofia e da Matemática. Teorias que se revelam decisivas na ultrapassagem do pensamento escolástico vindo da idade Média tardia, e na instituição do paradigma moderno.
Entre muitas outras coisas,defendia que era o acto de pensar que constituía ontologicamente o Homem, e que esse acto não provinha da componente corporal, e animal, mas antes da alma."Assim, pela razão de não podermos conceber de modo nenhum que o corpo pense, estamos justificados em acreditar que toda a espécie de pensamento em nós existente pertence à alma.", lê-se a dada altura na sua obra "Paixões da Alma". O mundo do pensamento constituía-se assim à parte das sensações e das emoções.

Em 1994, o neurologista António Damásio, investigador e professor da University of Southern California, nos Estados-Unidos, pôs em causa este dualismo mente/corpo usando argumentos fisiológicos. A sua pesquisa centrou-se no estudo do cérebro em funcionamento usando moderno equipamento de imagiologia médica. Porém o seu ponto de partida não foi exactamente uma novidade, um caso recente. Na verdade, partiu do estudo da vítima dum insólito acidente de trabalho em 1848. 
Nessa data, Phineas Gage, de 25 anos, era capataz de uma equipa que trabalhava na construção de caminhos de ferro na Nova Inglaterra. Numa das muitas explosões que tinha que levar a cabo para abrir caminho, o jovem capataz foi atingido por uma barra de ferro que lhe trespassa o crânio. Apesar da gravidade do ferimento, e da perda de um olho, sobreviveu e recuperou.

No entanto, o seu carácter ficou irremediavelmente alterado. O responsável e competente Phineas Gage tornou-se um homem de comportamento errático, incapaz de tomar decisões, que destruiu a sua vida profissional, familiar e social em pouco tempo.

O seu caso foi alvo de atenção médica e, desde então, foi visto como exemplo, e prova, da relação entre lesões cerebrais e alterações de personalidade. Seis anos após a sua morte, em 1866 o seu crânio foi recolhido e encaminhado para a Universidade de Harvard onde se encontra depositado, conjuntamente com o varão de ferro que o mutilou, no Warren Anatomical Museum.

J B S Jackson,
Crânio de Phineas Cage e varão de ferro,
E.U.A., 1870
imagem obtida aqui
Analisando o crânio de Cage, Damásio concluiu que o ferimento afectara o chamado Córtex pré-frontal, zona que controla a personalidade e a emotividade. O que, no entanto, impressionou o neurologista não foi propriamente a alteração da personalidade, mas antes os aspectos funcionais em que esta se fez sentir. Embora mantivesse intactas as capacidades de linguagem e de raciocínio, o sobrevivente Phineas Gage era incapaz de manter um comportamento racional. E tal levou António Damásio a concluir que Razão e Emoção não se constituem independentemente, sendo, pelo contrário,  indissociáveis. O postulado cartesiano de Razão como coisa unicamente da Alma ficava assim posto em causa.

Durante muitos anos pensou-se que as únicas imagens de Phineas Cage que era possível obter eram as reconstruções elaboradas a partir do crânio. Mas em 2009, um daguerreótipo, até então erradamente tido como representando um baleeiro com arpão, foi identificado como sendo um retrato seu. O objecto que segurava não era um arpão excêntrico, era simplesmente a barra de ferro que o atingira no famoso acidente.

Autor não Identificado,
Phineas Cage,
E.U.A, sem data
imagem obtida aqui
Esta identificação foi confirmada por comparação morfológica com o crânio, e no ano seguinte, uma segunda imagem, uma provável cópia em papel de um outro daguerreótipo desaparecido,  descoberta nos espólio da família Cage comprovou definitivamente a veracidade da atribuição.

Autor não Identificado,
Phineas Cage,
E.U.A., sem data
imagem obtida aqui

As fotografias agora descobertas terão sido feitas pouco tempo após o acidente, a avaliar pelo aspecto jovem de Phineas, e numa mesma sessão. Terão sido feitas quando a fotografia era uma técnica ainda na infância, presa a dificuldades técnicas e a convenções que nos são hoje um pouco estranhas. Mas permitem-nos viajar no tempo e vislumbrar o operário que, sem o saber ou o desejar, desmentiu Descartes.

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