quinta-feira, 8 de março de 2012

O Fingimento

Uma das comunidades com que Lewis Hine lidou quando, ao serviço do National Child Labor Committee, procurou registar o trabalho infantil foi a luso-americana do estado do Massachussets.
Num domingo de Janeiro de 1912, em New Bedford e nas imediações de uma Fiação, deparou-se com um grupo variado, maioritariamente de rapazes. Estes, quase todos de origem açoriana, dividiam-se em duas categorias: os que frequentavam a escola e os que trabalham na Fiação. Sondando-os apercebeu-se de uma fabricação.
Os miúdos, estudantes e trabalhadores, embora deambulassem em conjunto pela praia gozando o ócio domingueiro, encontravam-se separados por uma linha invisível mas bastante forte. Aqueles cujas famílias haviam chegado há mais tempo, provavelmente já nascidos em território dos Estados Unidos, encaixavam-se num padrão muito mais consentâneo com identidade americana. Frequentavam a escola, eram mais desprendidos e expressavam-se num inglês fluente. Eram os intérpretes de Hine.
Os outros carregavam uma história que lhes fora imposta. Iletrados, mal sabendo assinar o nome, quase não falavam inglês apesar de se encontrarem em New Bedford há já alguns anos. Tão ou mais pequenos que os demais, declaravam-se mais velhos. Lewis Hine concentrou-se em dois, Jo Viera ( João Vieira ?) e Antone Mello (António Mello?), que declararam ter 15 e 14 anos, respectivamente, apesar do seu desenvolvimento físico visivelmente o desmentir. Ambos trabalhavam havia um par de anos na Fiação junto à qual Lewis Hine encontrara o grupo a brincar.
A questão interessa ao fotógrafo do National Child Labor Committee. A sua presença não passa despercebida, nem o seu ofício e nem o seu equipamento. Fosse para garantir a colaboração da pequena multidão que atraiu, fosse para tactear a melhor forma de visualmente registar o embuste que detectara, gastou várias chapas nesse domingo. Como era comum no seu trabalho dessa época, as imagens apresentam-nos os sujeitos em pose mais ou menos ordenada, enfrentando a câmara. Nas provas, como era igualmente seu hábito na época, anota as circunstâncias e os temas. Na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos estão guardadas quatro impressões distintas dessas fotografias, quatro estratégias: numa imagem, Jo Viera e Antone Mello são fotografados isolados, quase a corpo inteiro, com a fábrica recortada no fundo; numa segunda fotografia, os dois miúdos aparecem separados por poucos metros de um grupo numeroso de rapazes que frequentavam a escola; na terceira imagem, Jo Viera e Antone Mello são registados enquadrados por quatro figuras mais altas, aparentemente um adulto e três adolescentes (embora, Hine se refira aos quatro como "men", ou seja, adultos); por fim, uma fotografia em que as duas crianças aparecem, junto à casa de Antone Mello, no meio de dois rapazes estudantes que afirmam ter uma idade inferior dois a três anos à afirmada por Jo e Antone. A esta última imagem, Lewis Hine chama “Comparison of Ages”(comparação de idades), e é a mais feliz das quatro na explicitação da mentira.

Lewis Hine, Jo Viera e Antone Mello,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui



Lewis Hine, 
Jo Viera e Antonio Mello junto a um grupo de estudantes,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui



Lewis Hine,
Jo Viera e Antonio Mello entre adultos e estudantes,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui


Lewis Hine,Comparação de idades,
New Bedford, Massachusetts, Janeiro de 1912
imagem obtida aqui







Como retratista de uma realidade embaraçosa, Hine estava habituado a confrontar-se com a Mentira. Amiúde as crianças que sabia estarem a trabalhar numa fábrica eram apenas "visitas", e com maior ou menor talento proprietários e encarregados  apresentavam outras histórias para negar o óbvio. Naquele domingo nevado de 1912, a sua atenção concentrou-se na colaboração, activa ou tácita, de uma comunidade relativamente ao trabalho infantil. Jo e Antone repetem a Hine a versão que lhes foi instruída, uma alternativa mais simpática e construída do que a pura verdade. Falando com um dos miúdos estudantes, o mais alto, de treze anos, este confirma ao fotógrafo a sua suspeita. Diz-lhe que mentem acerca da idade. Que quando se vem das ilhas, mente-se acerca da idade e trabalha-se na Fiação. A mentira era óbvia mas fácil e conveniente. Era desenvergonhada, pública e organizada: para os recém-chegados, eram os padres da comunidade portuguesa quem tratava de tudo .
É interessante o facto de o miúdo que explicita a situação referir que se assim quisesse também podia enganar os donos da Fiação. É-o porque, em bom rigor, não havia ali um engano.Perante a descrição e perante o que é visível no trabalho de Lewis Hine dificilmente poderemos pensar que estes proprietários fossem gente crédula ao nível do absurdo. Uma mentira não é uma mentira quando é feita por um mútuo acordo, quando é uma convenção. Nessa situação está-se perante um fingimento. Os miúdos da comunidade portuguesa de New Bedford fingiam mentir e os donos da Fiação fingiam acreditar.

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