Junto a pintores que podiam ter sido dos maiores, não fora terem morrido antes do tempo- Amadeo e Santa-Rita Pintor; do descobridor que chegou ao continente americano vinte anos antes de Colombo e que, por uma estranha conspiração mundial, ninguém fala -João Vaz Corte Real; Carvalho é o homem que fotografou o Oeste americano antes de todos, e que ofuscaria hoje figuras como Mathew Brady e Edward Curtis, não fosse o simples pormenor da quase totalidade das suas imagens se ter perdido no incêndio de um armazém de Staten Island, Nova iorque. Ainda por cima, tal aconteceu muito antes de a Fotografia ter o reconhecimento institucional e popular de que hoje goza.
Compreendo este estranho gosto de invocarmos para Portugal os méritos de todos os descendentes de portugueses, mesmo aqueles que pessoalmente não se vejam como membros da nossa vasta e gloriosa comunidade ( as referências ao realizador Sam Mendes, na comunicação social portuguesa, são muitas vezes um patético exemplo desta tendência) e enquadro-o numa patologia nacional, um misto de Complexo de Inferioridade com Mania das Grandezas. Mas, do alto da minha ignorância e do facto de contar apenas com o que consigo aceder via internet, penso que no caso de Solomon Nunes Carvalho eventualmente serão aceitáveis algumas nuances em relação a este quadro.
Se é verdade que era um cidadão americano por direito e nascença, e que se definia como consciencioso, orgulhoso e zeloso dos seus deveres, o princípio jurídico de Jus sanguinis confere-lhe, dada a nacionalidade portuguesa dos ascendentes próximos, o carácter de português. Do ponto de vista cultural, sendo claro que era um membro da classe educada americana, e que se expressava publicamente em inglês, era igualmente um membro activo da comunidade judaica sefardita, predominantemente portuguesa. Uma comunidade que fazia da sua origem portuguesa um carácter distintivo e demarcador relativamente à comunidade judia com origem no Centro e Leste da Europa, maioritária e, por norma, menos qualificada. Do que consigo ter acesso, não tenho nenhuma confirmação de que falasse ou escrevesse português, embora desconfie plenamente que tal acontecesse. Tendo pais portugueses e estando inserido numa comunidade que ainda conservava alguns laços com a sua origem, o facto declarado pelo próprio de que compreendia e que conseguia comunicar em língua espanhola (que era usada como uma língua franca entre índios, comerciantes e exploradores nos Estados recém conquistados do Oeste e do Sul) é um indicador claro dessa possibilidade.
Dito isto, devo dizer que da leitura de ” Incidents of Travel and Adventure in the Far West” o que ressalta é o ponto de vista de alguém que se considera um americano empenhado. A origem portuguesa teria provavelmente importância na sua estrutura identitária, mas creio não estarmos perante alguém que se descreveria, antes de tudo, como um português.
Sabemos por prova documental e testemunhal, que Solomon Nunes Carvalho terá realizado cerca de 300 daguerreótipos durante a viagem de exploração, até ser abandonado por Frémont no Utah. Sabe-se que tinha consciência plena de que a realização de fotografias na viagem levantaria questões técnicas e logísticas complicadas, que ninguém antes enfrentara, e que foi capaz de resolver. Sabe-se que já antes se evidenciara e destacara, ao criar um processo de esmaltagem que tornava desnecessário cobrir o daguerreótipo com um vidro de protecção. Sabemos que era já antes um conceituado fotógrafo comercial, actividade que conjugava com a de pintor, e que deve ter produzido uma obra considerável em termos de retrato. Sabemo-lo um personagem plena de recursos intelectuais e técnicos, embora autodidacta. Foi ele um inventor de um sistema de funcionamento com alta pressão em motores a vapor, que a Marinha norte-americana usou até adopção dos motores de combustão interna.
Sabemos tudo isso, mas o que hoje distinguiria irrefutavelmente Carvalho seriam essas imagens dum Oeste desaparecido, que sabemos que fez , algumas descritas por ele em ” Incidents of Travel and Adventure in the Far West”, outras reproduzidas em gravuras feitas para o projectado relatório da 5ª expedição de Frémont, e utilizadas no livro Memoirs of My Life and Times, assinado pelo explorador( mas que se crê escrito pela sua mulher- Jessie Benton Fremont). E, como já aqui disse, tal não é possível devido a um incêndio no ano de 1881.
Ao deixar para trás solomon Nunes carvalho, Frémont levou consigo as fotografias já realizadas (Carvalho, no seu livro, indica apenas que o seu equipamento fotográfico tenha sido abandonado , enterrado na neve e coberto com moitas, antes da chegada a Parowan, como forma de aligeirar a carga da expedição numa altura em que temiam pela sua sorte pessoal). Isto não parece ter originado qualquer tipo de rancor em Carvalho. Numa altura em que os direitos de autor não eram, per se, propriamente um dado adquirido, a posse e controlo do seu trabalho não era algo em que um fotógrafo daguerreotípista, em particular, pensasse. Como o processo fotográfico produzia unicamente uma prova positiva, este tipo de profissional dava por adquirido que o cliente levava consigo o resultado do seu labor.
O percurso de Frémont levaria os daguerreótipos primeiro até à California e, mais tarde, aquando do seu regresso ao Leste, até Nova Iorque. Aí foram entregues a Mathew Brady, para que este fotógrafo realizasse cópias, através do processo de placas revestidas com colódio húmido, e terá sido nas suas instalações que terão sido reproduzidos por desenhadores que criariam as gravuras mais tarde usadas nas Memórias do explorador.
Em 1881, o já referido incêndio faria desaparecer aquilo que hoje seria o núcleo mais significativo do legado de Solomon Carvalho enquanto fotógrafo. Aparentente das três centenas de fotografias realizadas chegou-nos apenas um daguerreótipo, danificado, identificado por alguns como uma cópia de Brady ( identificação pouco credível dado o uso de placas húmidas de colódio que este terá feito), por outros como um original resgatado do destroços do armazém. A imagem sobrevivente encontra-se na posse da Biblioteca do Congresso dos estados-Unidos.
Solomon Nunes Carvalho, Vista de uma aldeia Cheyenne em Big Timber ( Colorado), 1853
imagem obtida aqui
Nela observa-se parte de uma aldeia índia Cheyenne, provavelmente a de Big Timber. Poderá ser um dos daguerreótipos que Carvalho descreve ter realizado no décimo capítulo de seu livro, e a assim ser, resulta algo irónico que a imagem sobrevivente não seja uma de particular investimento, mas uma realização com fins mais instrumentais. Descreve solomon Nunes Carvalho que perante enormes dificuldades em convencer os Cheyenne em manterem-se imóveis, ou tão simplesmente em deixarem-se fotografar, optou por fotografar primeiro algumas tendas. Ao mostrar este daguerreótipo conseguiu então a atenção e abertura pretendidas, conseguindo fotografar uma idosa acompanhada de uma criança, e depois as figuras mais notáveis que se prontificaram para o registo, nomeadamente o chefe da aldeia e a sua filha, que Carvalho apresenta como princesa.
Temos assim que, além de apenas sobreviver apenas uma imagem, não é uma das foram realizadas com maior investimento e interesse. Não é de uma fotografia de espantosas paisagens ou fenómenos que Carvalho realizou, nem um dos retratos das figuras de um território em mutação acelerada. Sobreviveu provavelmente uma imagem feita com o fim de facilitar outras, numa disposição em figuram tendas, peles a secar e duas figuras que observam à distância, com curiosidade e desconfiança eventualmente em doses iguais. Para desgraça da Fotografia e, no ver de alguns, para desfeita nacional.
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