Desde o seu momento inicial, a Fotografia carregou em si um paradoxo. Apesar de resultar duma marca do real num suporte bidimensional, registada e fixada por um processo físico-químico, não mantinha uma relação inequívoca com a nossa percepção da realidade. Em larga medida, continuava a ser representação, não era necessariamente um veículo da Verdade.
Porém esse equívoco existiu sempre. Por serem imagens obtidas cientificamente, cedo se assumiu que podiam ser usadas como provas, fosse na ciência, fosse na justiça, fosse no jornalismo.
Mesmo hoje, quando o nosso olhar não é tão ingénuo em relação ao meio fotográfico, continua a ser fácil, muito fácil, confundir registo fotográfico com prova. E, por vezes, de forma grosseira e absurda.
Solomon Butcher foi um pioneiro americano. Quando o governo decidiu conceder concessões de terreno nas grandes planícies do Midwest, Butcher abandonou um emprego de vendedor e, com o pai e os irmãos, dirigiu-se para lá. Mas, duas semanas depois apenas, apercebeu-se que não estava talhado para ser um agricultor naquelas paragens agrestes e regressou ao Leste para estudar Medicina. Não chegaria porém ao fim do curso. Pouco depois, já casado, retornaria ao Nebraska e à casa do pai, onde após algum tempo se tornaria no fotógrafo local da região de Custer.
Sempre lutando com a ruína financeira, movendo-se de localidade em localidade, Solomon Custer acabaria por desenvolver um estranho empreendimento, anos a fio. Um projecto que ele acreditava que o resgataria da pobreza: fazer o retrato das grandes planícies durante o processo de povoamento e publicá-lo.
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Solomon Butcher,
A família de Sylvester Rawding
defronte da sua casa de terra,
Nebraska, E.U.A.,1886
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Durante décadas, calcorreou as planícies fotografando os seus habitantes com ímpeto documental assinalável. Muitos anos antes da ideia de série fotográfica se tornar incontornável, Solomon Custer, produziu de forma sistemática imagens, sem veleidades "literárias", que expunham numa mesma lógica os colonos e os seus pertences.
Se a sua empresa não o libertou da ruína financeira, levando-o mesmo a acreditar em leito de morte que a sua vida fora um falhanço, a verdade é graças a ela existe hoje um registo extenso único, sereno e desapaixonado, desse momento da expansão americana.
Habituados a esse tom objectivo, alguns historiadores americanos usaram uma das suas imagens como evidência histórica do antagonismo e conflito entre os novos colonos e os rancheiros que se procuravam impor no uso das vastas planícies.
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Solomon Butcher,
Colonos a tomarem a lei nas suas mãos,
Nebraska, E.U.A., cerca de 1900
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Nela, um grupo de colonos de rosto tapado corta a vedação de arame, tomando a lei nas suas próprias mãos. Para tornar a coisa clara, o próprio Butcher inscreveu na imagem uma legenda descrevendo a sua natureza , a localização e a sua propriedade intelectual.
Ora, o interessante disto é que, pese embora o reconhecido carácter documental de Solomon Butcher, esta imagem em particular é uma encenação. E mais, é uma encenação grosseira e óbvia, feita por um fotógrafo sem meios. Um olhar atento, aproximado, detecta o que terá escapado a alguns historiadores: os colonos mascarados de Butcher tentam cortar o arame com tesouras falsas de madeira.
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Solomon Butcher,
Colonos a tomarem a lei nas suas mãos, pormenor
Nebraska, E.U.A., cerca de 1900
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Solomon Butcher,
Colonos a tomarem a lei nas suas mãos, pormenor
Nebraska, E.U.A., cerca de 1900
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O homem que nos deixou o melhor registo factual da colonização do Midwest, deixou-nos também a prova de que a relação da Fotografia com a Verdade é complexa e sinuosa.
Há que sempre desconfiar.
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