Vemos os homens como quase exclusivos agentes da História, das artes e da Cultura.
Antes de 1900, às mulheres parecia estar reservado um mundo finamente rendilhado, centrado na necessidade de obter correctamente um pretendente, um casamento, filhos e filhas ( e depois, de gerir as pretensões destes ou os seus pretendentes, consoante o caso, conseguir-lhes uma bom casamento e por aí adiante).
Jane Austen, uma mulher que escapou a esta descrição, fez curiosamente deste universo a fonte da sua arte e, curiosamente também, é uma das contribuintes maiores para esta nossa percepção.
A visão geral que temos das mulheres oitocentistas, sobretudo das mulheres burguesas, é muito mais devedora do jogo de subtilezas e dependências que os seus romances descrevem, do que das acções mais arrojadas de outras heroínas da novelística desse século (que sendo muito mais activas, mais senhoras do seu destino, geralmente acabam mal). Veja-se Emma Bovary, personagem de Flaubert, ou Marguerite Gautier, de Alexandre Dumas Filho.
Olhando-se brevemente para a biografia de jane Austen, pode-se ter a ideia que as mulheres só em resultado de não obter um casamento poderiam obter uma emancipação intelectual. Uma familiar afastada da escritora, Anne Dixon, cerca de vinte anos mais nova, serve-nos porém para nos aproximar-mos da pobreza de tal descrição.
Nascida em 1799, Anne Austen (o apelido Dixon será obtido por casamento, mais tarde) perderá a mãe por doença em 1811. Em virtude da ausência do pai, um oficial do exército britânico colocado em Portugal na sequência das invasões napoleónicas, a sua custódia e educação é entregue ao cientista inglês John George Children.
Este, um viúvo, tem uma filha- Anna children ( mais tarde Anna Atkins, por casamento) . Entre as duas meninas, de idade igual, órfãs de mãe, ir-se-á desenvolver uma enorme afinidade, e descrever-se-ão mais tarde como quase irmãs. Ambas casarão, mas não se romperá o laço de identidade e amizade, e a sua vida não se resumirá, como veremos, à aridez intelectual da gestão doméstica e familiar.
Autor não identificado, Anna Atkins, s/data
imagem obtida aqui
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Será aceite como membro da Botanical Society of London, mas não poderá apresentar publicamente palestras nem terá direito a gabinete. Era esta a convenção.
Às mulheres da era vitoriana e pré-vitoriana não estava totalmente vedado o acesso ao saber e às grandes discussões teóricas, estava-lhe era impossibilitada a publicitação do seu contributo. A sua acção era esperada no âmbito da colaboração com familiares masculinos e o seu trabalho deveria ser dado a conhecer na esfera privada, no círculo de amigos.
São estas as circunstâncias que explicam a relativa pouca notoriedade de Anna Atkins, e de Anne Dixon, no contexto dos pioneiros da Fotografia.
A proximidade das suas relações com William Henry Fox Talbot e John Herschel tornaram-na uma espectadora próxima da nova técnica, cujo progresso era rápido e espantoso.
Especula-se que Anna Atkins terá sido a primeira mulher fotógrafa, título disputado com Constance Talbot, esposa de William. Apesar de se saber que ambas tiveram acesso a equipamento, não foram encontradas quaisquer fotografias de câmara de sua autoria, e esta disputa não parece ter resolução.
O que é evidente e comprovado é que pouco após a invenção do cianótipo por Herschel, em 1842, Anna Atkins começou a registar as algas que então estudava, e recolhia, utilizando este processo, obtendo imagens por contacto directo dos espécimenes sobre papel sensibilizado, à maneira dos desenhos fotogénicos de Fox Talbot. O produto final eram imagens negativas de fundo azul forte em que as formas vegetais se recortavam em branco.
A opção pelo cianótipo e o seu peculiar aspecto tem sido questionada, sabendo-se que tivera acesso directo aos resultados mais verosímeis do calótipo, a preto e branco.
A explicação mais corrente consiste em apontar que Atkins enquanto ilustradora, sempre se revelara bem mais orientada para fins artísticos do que para aspectos meramente descritivos, e que eventualmente sentira que o azul profundo dos cianótipos se adequava melhor, esteticamente e simbolicamente, ao universo aquático de onde as algas que fotografava provinham.
Outra explicação, bem mais prosaica, leva-nos ao facto de que Sir John Herschel, ao contrário de Fox Talbot, não registara a patente de nenhuma das suas descobertas de carácter fotográfico, estando o cianótipo no âmbito do uso livre, sem lugar a pagamento de licenças.
Por último, há que considerar que a simplicidade técnica de um processo que envolvia apenas duas soluções químicas misturadas para sensibilizar os suportes, e uma lavagem simples com água para os fixar, pudesse ser um factor importante na sua opção.
Em Outubro de 1843, auto-publicou a primeira versão de Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions. Ainda que em tiragem reduzida, produzido artesanalmente e com texto manuscrito, com circulação privada, concentrada maioritariamente junto de amigos cientistas, trata-se do primeiro livro feito com recurso a técnicas fotográficas. Antecedeu em oito meses o bem mais conhecido The pencil of Nature de William Henry Fox Talbot, editado com maior tiragem e circulação.
Página Manuscrita de
Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions,
1843-1853
imagem obtida aqui
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Anna Atkins, Furcellaria fastigiata, 1843-53
imagem obtida aqui
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Anna Atkins, Delesseria sanguinea,
1843-53
imagem obtida aqui
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Durante dez anos, a obra irá sendo relançada aumentada e revista, consistindo em três volumes na sua versão final. Sobrevivem dezassete cópias presentemente, pertencendo na sua maioria a bibliotecas públicas e museus.
Na versão final, Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions continha mais de quarto centenas de fotografias, ilustrando quer um sistemático trabalho de recolha e taxonomia, quer um forte instinto plástico.
Após a morte do pai, em 1852, Anna Atkins cessará o trabalho em torno de plantas aquáticas, havendo quem associe esta paragem ao luto.
Em 1853, iniciou um novo ciclo, desta feita em colaboração com Anne Dixon, também ela uma entusiasta da fotografia, que diz-se que se terá juntado à amiga com vista ajudá-la a superar a perda do pai. Culminará nas obras Cyanotypes of British and Foreign Ferns, logo nesse ano, e Cyanotypes of British and Foreign Flowering Plants and Ferns, em 1854.
As duas mulheres, ao tempo na sua meia idade, entraram num trabalho de parceria na recolha (orientada por Atkins) de plantas, colocação entre chapas de vidro e exposição ao sol por contacto com folhas de papel sensibilizado.
A sua obra, à parte de considerações mais técnicas (nem sempre os espécimenes foram recolhidos directamente por si, e nem sempre há o registo do seu local de recolha) que dificultam o reconhecimento no âmbito da ilustração e fotografia científicas, chega-nos com uma força particular, quer pela particular resistência material do cianótipo (muito superior aos sensíveis calótipos de Fox Talbot), quer porque nos transmitem a força, intuição e inteligência de duas mulheres que não se encaixam nalguns estereótipos femininos do século XIX.
Anna Atkins, Página título de
British and Foreign Flowering Plants and Ferns,
cerca 1854
imagem obtida aqui
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Anna Atkins, Papaver Orientale, circa 1854
imagem obtida aqui
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