sexta-feira, 24 de abril de 2020

O meu cromo

Em miúdo, conheci a figura de Darwin ( através duma das boas séries da BBC que a RTP passava em horário nobre ) ao mesmo tempo que a febre do cromos da bola varria a minha turma da primária.

Os cromos de eleição, à época, eram o Humberto Coelho, ou Manuel Fernandes, ou o Nené ou o Chalana.

Sinal duma estranha cromice, o meu cromo de eleição era o senhor Darwin, que fintara dogmas e crendice com observação e razão.

E com muita oportunidade, como o Chalana.

Jonathan Bailey,
Charles Darwin,
Inglaterra, cerca de 1880

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Brilhantes incorrecções

Há, por vezes, perguntas, que sendo de pertinência inquestionável, são de resposta muito difícil, quase impossível.
À questão ” O que é uma boa fotografia?”, com a qual quem ensina fotografia é incessantemente confrontado, muitos têm tentado acercar-se da resposta certa.

Uma primeira tentação é procurar a resposta pela via técnica. Dissecar imagens pela composição, pela exposição correcta, pela nitidez, pelo uso da profundidade de campo.
Mas é uma aproximação primária, de primeiro contacto. A fotografia insere-se no campo da linguagem. Tal como para escrever, é preciso saber a ortografia,a gramática e a sintaxe. Mas um texto sem erros não é necessariamente um grande texto. É somente um texto sem erros.
A poética vive muitas vezes de forçar os limites das regras, de tornar o erro um exercício significante.

Defronte de uma boa, de uma grande imagem, sabemos muitas vezes que ela está além de uma prática correcta. A forma como nos afecta ultrapassa as regras. Pode ser uma imagem tecnicamente certa, mas não é exactamente isso que a separa das demais imagens correctas e medíocres.
E, muito mais difícil de explicar, uma boa fotografia pode ser simplesmente uma imagem brilhantemente “incorrecta”.



Machiel Botman,
Morcego,
2009



terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Triste e ligeiramente feliz

O Natal, contrariamente à imagem de felicidade geral e higienizada criada para a cultura popular da sociedade de consumo, em larga medida de origem norte-americana, tem decerto variações e gradações.

No Norte da Europa, mitologias antigas, pré-cristãs, fazem aparecer (cada vez menos) um figura demoníaca que, antes do simpático Pai natal, percorre as ruas em busca daqueles que não se portaram bem. O Krampus da Alemanha, por exemplo, de aparência semelhante a um sátiro, garante uma boa noite de medo, ou terror, a todos os meninos maus, dada a possibilidade de serem levados no seu saco.

Pelo sul da Europa, o Natal era, há não muito tempo, e para a maioria da população, um contraponto de relativa abundância num quotidiano de miséria e dificuldade.

Talvez por isso nos seja tão comovedora esta imagem do Natal, triste e ligeiramente feliz, apresentado por Francesc Català-Roca, grande fotógrafo de Barcelona, e um dos melhores documentaristas da Espanha dos tempos difíceis.


Francesc Català-Roca,
Chegou o Natal,
Espanha, cerca de 1950
imagem obtida aqui