domingo, 26 de maio de 2019

O Real e o Mágico

No entendimento do tempo, tende-se a teorizar que há duas concepções que estruturam as culturas.

Por um lado, tem-se o chamado tempo cíclico, frequentemente considerada a noção de tempo original. As culturas primitivas, dominadas por ciclos naturais como os das estações ou das migrações animais, tenderiam a considerar o tempo como uma eterna repetição. A criação do mundo é normalmente formulada num tempo mítico, separado do tempo vivenciado, com a intervenção frequentemente de múltiplas divindades, responsáveis cada uma por partes distintas da criação.

Por outro lado, temos o chamado tempo linear, que assume o conceito duma direcção: o tempo teve um início e terá um fim. É a concepção prevalecente nas religiões do livro, monoteístas. E é a concepção herdada e adoptada pelo racionalismo, que a “sacraliza” na ideia de progresso. O tempo linear é o tempo das culturas ocidentais.

No que diz respeito às culturas do Novo Mundo, o tempo cíclico parece ser predominante nas grandes civilizações. Mas estudando as pequenas culturas ameríndias, alguns antropólogos entendem que há, por vezes, uma terceira concepção do tempo. Certos povos têm mitos da criação que se passam num tempo mítico. Mas este tempo mítico não é atemporal, segue paralelo à realidade experienciada, e ocasionalmente os dois tempos, o mítico/mágico e o real fundem-se, comunicam. As grandes perturbações, os fenómenos inexplicáveis, são atribuídas a esta confluência. De certa forma, o tempo vivenciado é ainda o tempo da criação.

E é interessante pensar que esta terceira via pode ser a responsável pela afloração do mágico no real que caracteriza grandemente as culturas latino-americanas. Seja na literatura, seja no cinema, seja na fotografia, a pulsão realista que o racionalismo ocidental fomentou na elite cultural latino-americana mistura-se com frequência com intromissões do mágico, do irreal, sem aparente negação nem repulsa.

Graciela Iturbide,
Imaculada,
Xochimilco, México, 1984
Colecções da Fundacion MAPFRE

domingo, 19 de maio de 2019

A máscara como natureza

Sobre o retrato fotográfico, e sobre a sua longa história, há todo um conjunto de abordagens e teorias, e de gente que se agarra aos dogmas. 

Se alguns defendem a linhagem de Disdéri com os seus retratados a carregarem símbolos da sua condição, rodeados de adereços, à maneira da pintura clássica e dos seus códigos, outros seguem a conduta de Nadar, com foco no rosto e na postura do modelo, tentando captar aquele instante em que a expressão e a pose parecem corresponder magicamente à personalidade, retendo-lhe o pathos e o ethos.
Estes últimos, os defensores do chamado retrato psicológico, não têm decerto trabalho fácil.

Cartier-Bresson, por exemplo, ter-se-á queixado da dificuldade de retratar verdadeiramente actores e actrizes. Perante a câmara, os profissionais da representação tenderiam sempre a assumir uma personagem. O seu rosto era, em certa medida, um adereço. Uma máscara. Porém, se retratar a psicologia de actores tende a ser um acto sem sucesso, isso não significa que não se produza nesse esforço boa fotografia. Como os poetas, os actores tendem a fingir aquilo que deveras sentem. A máscara nem sempre é um adereço, pode ser a sua própria natureza.

Paolo Di Paolo,
Marcello Mastroianni,
Itália, sem data
imagem obtida aqui