De entre as consequências e as reacções daí advindas interessa-me aqui apontar duas: a súbita redução do mercado da fotografia assente em sais de prata, e o desaparecimento de marcas e produtos nesse campo, causam um choque significativo em todos aqueles que cresceram a conhecer nomes como Rodinal, Agfa e Polaroid; e o renovado e súbito interesse por processos e objectos que pareciam remetidos para a história. Os dois fenómenos são concomitantes e contagiam-se: é sensação de perda que leva à criação do vários projectos que tentam recuperar filmes, equipamentos, químicos entretanto desaparecidos ou em vias de se perder (the impossible Project, Lomography, a inteligente estratégia do fabricante Adox, entre outros); é o desaparecimento de produtos industriais que renova a atenção sobre a era pré-industrial da Fotografia ( e eis que voltam o daguerreótipo, o cianótipo, o papel salgado e o colódio húmido, técnicas e artefactos que não dependem de uma indústria).
Ao mesmo tempo que a Fotografia vivia esta mudança de paradigma, do Analógico para o digital, o norte-americano Quinn jacobson vivia, no início da década passada, uma transição pessoal. Depois de um largo período como fotógrafo dos quadros das forças armadas, de uma licenciatura em Fotografia, Artes Visuais e Comunicação, Quinn tacteava o seu caminho, digerindo influências que incluíam nome como Diane Arbus e August Sander, e esgravatava o seu próprio passado em busca de um sentido para o seu trabalho. E é então que se dá um instante decisivo, que ele sabe precisar com grande detalhe: ao observar o livro "Looking at Photographs: 100 Pictures from the Collection of The Museum of Modern Art", deparou-se com a reprodução de um ambrótipo anónimo. O ambrótipo é um positivo directo sobre vidro, utilizando a técnica do colódio húmido, em que a face posterior do vidro é recoberta de um material negro, betume normalmente. Pesquisando sobre o procedimento, que caíra em desuso ainda na década de setenta de oitocentos, conheceu com o trabalho do Dr. Hugh Welch Diamond, um médico dedicado à psiquiatria que aprendera a fotografar com o criador da técnica do Colódio Húmido, Frederick Scott Archer.
Welch Diamond acreditara, exercitando o espírito positivista típico de finais do século dezanove, que através da fotografia sistemática dos seus pacientes poderia, de alguma forma, catalogar e organizar padrões de doença mental. Falharia rotundamente nesse aspecto. As suas fotografias dizem-nos muito pouco sobre os problemas do cérebro, mas ficar-nos-iam como um espantoso documento do pensamento e sociedade da época. A sua “Mulher com pássaro morto”, de cerca de 1855, forneceria a Quinn Jacobson o mapa que o orientaria na criação dum olhar próprio. Aquela observação tornar-se-ia uma epifânia.
Dr. Hugh Welch Diamond, Mulher com pássaro morto, cerca de 1855
prova de albumina a partir de negativo em vidro
imagem obtida aqui
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A partir de 2003, Jacobson começou uma série, "Portraits From Madison Avenue", onde diferentes componentes se combinam e nos fornecem uma abordagem muito pessoal da fotografia. Partindo da já referida influência estruturante de Diane Arbus e August Sander (onde a atenção ao conceitos de normalidade e identidade são determinantes), abordou a sua própria experiência pessoal, retornando ao bairro da sua cidade natal, Ogden, no estado americano do Utah, onde na década de setenta do século passado, o seu pai possuía alguns apartamentos de rendas baixas, e onde, acompanhando-o, conheceu os estranhos e fascinantes inquilinos que os habitavam. Gente que se situava nas franjas da sociedade norte americana, que apresentava problemas físicos, mentais, de integração. Uma legião excluída, abandonada longe da normalidade dos subúrbios. Trinta anos depois, o bairro mantinha a mesma tipologia de ocupantes. Fotografá-los com a técnica do colódio húmido permitiu reconstruir a proximidade com que lidara com os seus antecessores. Com as câmaras de grande formato, exposições de vários minutos e a necessidade de ter um estúdio à mão, não havia a possibilidade de obter instantâneos furtados da sua vivência. Fotografá-los desta forma implicava convencê-los a posar, convencê-los a colaborar, contornar as suas resistências. Implicava conhecê-los .
Quinn Jacobson, Jefferson Kerby,
série "Portraits from Madison Avenue, 2003-2006
imagem obtida aqui
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Com "Portraits From Madison Avenue", Quinn Jacobson estabeleceu um padrão , uma orientação de trabalho. Propôs-se abordar e explorar as suas experiências, e questionar acerca de coisas como Identidade, Diferença, Classe social e Memória. Pretendeu criar trabalhos que evoquem em vez de dizer, que sugiram em vez de explicar.
Nalguns trabalhos iniciais sentiu a necessidade intervir mais substancialmente nos retratados. Em várias fotografias de Dusty Nance, um jovem adulto com claras limitações mentais, e que tivera problemas com a justiça, sentiu necessidade de o vestir com a roupa listada dos presidiários de outros tempos. Mas estas intervenções foram pontuais e tenderam a desaparecer. As imagens tornaram mais depuradas e auto-esclarecedoras.
Quinn Jacobson, Dusty Nance,
série "Portraits from Madison Avenue", 2003-2006
imagem obtida aqui
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Quinn Jacobson, Dusty Nance,
série "Portraits from Madison Avenue", 2003-2006
imagem obtida aqui
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Quinn Jacobson, Ex-presidiário,
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Quinn Jacobson, Kayla - uma testemunha de jeová,
série "Portraits from Madison Avenue", 2003-2006
imagem obtida aqui
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A sua série seguinte, "Vergangenheitsbewältigung" ( qualquer coisa como o “esforço para lidar com o passado”), iniciada em 2006, coincide com a sua mudança para a Alemanha, onde reside desde então. Começou por se chamar "Kristallnacht: The Night of Broken Glass" (Kristallnacht: a noite dos vidros partidos), numa alusão aos eventos de 9 e 10 de Novembro de 1938, em que milícias nazis e civis destruíram e incendiaram propriedades de judeus, e assassinaram dezanove membros dessa comunidade- enfim, um prenúncio daquilo que viria a ser o holocausto judaico da segunda guerra mundial. Mas a nova designação descreve melhor o pensamento que subjaz nestes trabalhos que, mais que lidarem com um momento traumático e específico, lidam com o lastro da História.
Nesta série, o fotógrafo lida com a sua ascendência judaica (a família de Quinn Jacobson adiantara-se ao nazismo uma geração, tendo emigrado para os Estados Unidos no início do século vinte) e como essa condição é determinante na sua relação com seu actual país de residência. Aos retratos, que já existiam em "Portraits From Madison Avenue", passou a acrescentar imagens de paisagens urbanas de particular significado como as ruínas da sinagoga de Mainz. E se na série anterior a figura tutelar que parecia pairar predominantemente sobre as fotografias era Diane Arbus, com sua empatia pelas figuras à margem da normalidade, em "Vergangenheitsbewältigung" , será muito mais Auguste Sander o fantasma que as perpassa. Nestas fotografias, os rostos e os corpo muito mais que representações de pessoas em particular são representações de um tipo- o estrangeiro, o homossexual, o alemão, o artista.
Quinn Jacobson, Bisneta de um oficial nazi,
série "Vergangenheitsbewältigung", 2006-2010 imagem obtida aqui |
Quinn Jacobson, Imigrante italiana,
série "Vergangenheitsbewältigung", 2006-2010
imagem obtida aqui
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Também aqui a técnica usada traz uma dimensão única. A definição
de imagem muito particular obtida revela-se muito eficaz no seu
propósito de comunicar o peso da História e da Culpa, e o carácter diáfano da Memória.
No trabalho de Quinn Jacobson, a utilização de um processo
fotográfico abandonado revelou-se uma determinante central na construção de um
sentido estético, indo muito além da mera curiosidade, do acto extremo de
nostalgia, ou do espírito amador do “do-it-yourself”. A orfandade que alguns
sentem pelo lento perecer dos suportes analógicos é ultrapassável, com
sucesso, pela visão pessoal e pelo experimentalismo (que estranhamente pode
passar hoje recuperação de algo remetido para o passado).
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