Penso se encontram classificadas como aves marinhas, mas creio que não se trata de uma questão de vocação ou natureza, mas sim de circunstância. Por um azar de evolução viram-se ligadas ao mar, mas não há nelas grande convicção acerca do seu estatuto.
Mesmo em dias de bom tempo, preferem a terra e se têm de ir à água, vão antes à ria.
Há alguns anos, nos tempos em que existia muro em Berlim, lembro-me de reparar numa enorme mancha aérea de gaivotas, centenas delas, a voarem aos círculos sobre Vale Caranguejo.
Ao tempo, ali ainda era campo, e a melhor explicação que me deram para o fenómeno era a de que haveria ali uma lixeira da Câmara. A bicharada deslocava-se para lá no Inverno, disseram-me, em busca de comida mais fácil. A explicação satisfazia plenamente quem ma deu, e fazia-o porque era auto-satisfatória. O assunto era de pouco interesse, a pessoa em causa tinha profundos conhecimentos banais sobre ele, na linha de " tempestade no mar, gaivotas em terra"; sabedoria alicerçada em imagens televisivas de gaivotas em festim no meio de montanhas de trampa. A última coisa que que haveria a fazer era confrontar uma teoria tão perfeita com a sua real verificação.
Confesso que também não era para mim, felizmente, uma questão existencial. Mas fui verificando, sobretudo acidentalmente, que aquela descrição simples e até credível, falhava em pequenos pormenores. As gaivotas que se deslocariam para ali fugindo do mau tempo, na realidade estavam ali quase todas as manhãs e fins de tarde. A tal lixeira que me referiram não existia, pelo menos naquele local. As únicas instalações camarárias próximas eram o estaleiro de materiais de construção, que não eram propriamente um petisco, e a estação de tratamento de esgotos. Esta última, mesmo para as gaivotas, também não seria um pronto-a-comer.
Vale Caranguejo era a primeira linha de terrenos agrícolas junto a uma extensão de salinas e sapal que os separava do mar e das ilhas barreira. Perante constatações destas, levantou-se outra explicação que seria a de que, à semelhança das garças, as gaivotas seguiam os tractores, banqueteando-se com os vermes expostos pela terra arada. E vi-as por vezes, de facto, pousadas na terra barrenta da zona. Parecia uma ordem aceitável das coisas.
A área foi entretanto engolida pela cidade. Foram construidas urbanizações, foi renovada a estrada, e implantada uma nova e maior rotunda. Há lá um jardim e construiram o enorme centro comercial que inunda de trânsito a zona, ao fim-de-semana.
Há dias reparei que as gaivotas ainda lá estão, em bandos matinais e em versão vespertina, guinchando, voando em círculos, juntando-se e afastando-se.
Hoje prefiro acreditar que são simplesmente criaturas de hábitos. Aves marinhas por contrariedade, escolheram como espaço para devaneios a primeira franja de terra independente do mar. Marcaram a sua posição e por lá se têm mantido, substituindo os poisos anteriores pelos postes de iluminação e pela cobertura do centro comercial. Talvez não haja explicações melhores. Não se alimentam, não nidificam, não acasalam, não fogem de tempestades. Estão ali porque estão! Acostumaram-se.
Gaivotas comerciais
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