segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Criaturas de hábitos

Continuo com as gaivotas.
Penso se encontram classificadas como aves marinhas, mas creio que não se trata de uma questão de vocação ou natureza, mas sim de circunstância. Por um azar de evolução viram-se ligadas ao mar, mas não há nelas grande convicção acerca do seu estatuto.
Mesmo em dias de bom tempo, preferem a terra e se têm de ir à água, vão antes à ria.

Há alguns anos, nos tempos em que existia muro em Berlim, lembro-me de reparar numa enorme mancha aérea de gaivotas, centenas delas, a voarem aos círculos sobre Vale Caranguejo.
Ao tempo, ali ainda era campo, e a melhor explicação que me deram para o fenómeno era a de que haveria ali uma lixeira da Câmara. A bicharada deslocava-se para lá no Inverno, disseram-me, em busca de comida mais fácil. A explicação satisfazia plenamente quem ma deu, e fazia-o porque era auto-satisfatória. O assunto era de pouco interesse, a pessoa em causa tinha profundos conhecimentos banais sobre ele, na linha de " tempestade no mar, gaivotas em terra"; sabedoria alicerçada em imagens televisivas de gaivotas em festim no meio de montanhas de trampa. A última coisa que que haveria a fazer era confrontar uma teoria tão perfeita com a sua real verificação.

Confesso que também não era para mim, felizmente, uma questão existencial. Mas fui verificando, sobretudo acidentalmente, que aquela descrição simples e até credível, falhava em pequenos pormenores. As gaivotas que se deslocariam para ali fugindo do mau tempo, na realidade estavam ali quase todas as manhãs e fins de tarde. A tal lixeira que me referiram não existia, pelo menos naquele local. As únicas instalações camarárias próximas eram o estaleiro de materiais de construção, que não eram propriamente um petisco, e a estação de tratamento de esgotos. Esta última, mesmo para as gaivotas, também não seria um pronto-a-comer.
Vale Caranguejo era a primeira linha de terrenos agrícolas junto a uma extensão de salinas e sapal que os separava do mar e das ilhas barreira. Perante constatações destas, levantou-se outra explicação que seria a de que, à semelhança das garças, as gaivotas seguiam os tractores, banqueteando-se com os vermes expostos pela terra arada. E vi-as por vezes, de facto, pousadas na terra barrenta da zona. Parecia uma ordem aceitável das coisas.

A área foi entretanto engolida pela cidade. Foram construidas urbanizações, foi renovada a estrada, e implantada uma nova e maior rotunda. Há lá um jardim e construiram o enorme centro comercial que inunda de trânsito a zona, ao fim-de-semana.

Há dias reparei que as gaivotas ainda lá estão, em bandos matinais e em versão vespertina, guinchando, voando em círculos, juntando-se e afastando-se.

Hoje prefiro acreditar que são simplesmente criaturas de hábitos. Aves marinhas por contrariedade, escolheram como espaço para devaneios a primeira franja de terra independente do mar. Marcaram a sua posição e por lá se têm mantido, substituindo os poisos anteriores pelos postes de iluminação e pela cobertura do centro comercial. Talvez não haja explicações melhores. Não se alimentam, não nidificam, não acasalam, não fogem de tempestades. Estão ali porque estão! Acostumaram-se.


Gaivotas comerciais

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