Num primeiro momento, a imprensa noticiou a desgraça. Mas à medida que se foi tornando clara a escala do acontecimento ( o “Diário de Noticias” indicava a 29 de Novembro o número, não definitivo, de 427 mortos), entrou em acção a máquina do Estado, cuja função era demonstrar que em Portugal nada de anormal e mau acontecia. Ordenou a cessação da contagem pública das vítimas, a censura interveio e fez baixar as centenas de mortos, que se queriam pôr nos cabeçalhos dos jornais, para umas mais salutares dezenas. E assim, oficialmente, o pico de pluviosidade, deslocou-se dos arrabaldes de construções clandestinas e de bairros de lata para o apresentável Estoril.
Mas como não se pode ocultar o inocultável, as populações de Lisboa e Ribatejo confrontaram-se durante dias com a limpeza e a descoberta de cadáveres em verdadeiros cemitérios de lama ( estima-se em mais de 700 o número efectivo de mortos). E organizaram-se em peditórios, espectáculos de beneficiência e subscrições para ajudar sobreviventes e desalojados. Se o regime fazia publicitar a «cadeia de solidariedade humana (…) sem distinção de classes» no "Diário da Manhã", a verdade é que desconfiava. Policiou a assistência dos movimentos universitários, pondo a GNR a afastar os estudantes do auxílio.
Com as notícias controladas localmente, escapou-lhe o controle sobre o fotógrafo inglês Terence Spencer, que fará o registo do desastre, sem complacência, para a revista americana Life. Na edição de 8 de Dezembro desse ano, num parágrafo apenas, a coisa é exposta (com os números oficiais portugueses) e sem deixar de atribuir as causas da catástrofe a claros problemas de ordenamento urbano.
Terrence Spencer, criança após as cheias,
arredores de Lisboa, Portugal, 1967
imagem obtida aqui
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Terrence Spencer, Camponeses carregando cadáver,
Portugal, 1967
imagem obtida aqui
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Terrence Spencer, Familiares durante velório de vitima das cheias, Portugal, 1967 imagem obtida aqui |
Terrence Spencer, Recuperação de bens após as cheias, Lisboa, Portugal, 1967 imagem obtida aqui |
A censura tentara
inutilmente tapar a realidade com um pano esburacado. Os anúncios de familiares
de desaparecidos espelharam, por esses dias, o negrume da desgraça que as
outras páginas dos jornais eram forçadas a disfarçar. Alexandre O’Neill basear-se-á
neles para o seu poema “ A bicicleta”, em que 25 de Novembro é alterado para 25
de Janeiro. A angústia não dependia de uma questão de datas.
“O meu marido saiu
de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior. “
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior. “
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