Sossegou-me o colega. Era natural o meu desconhecimento. Não vira antes esta espécie por dois motivos que não se prendiam com falta de atenção: primeiro, sou de uma zona de ilhas-barreira, território de areias limpas na costa oceânica e de lodo nas águas da ria, e a espécie em causa desenvolve-se nas praias de arribas de rochas carbonatadas do Algarve central e de barlavento, que pouco frequento; segundo, não vira esta espécie porque, por norma, ninguém a vê - vive encerrada no interior das rochas, protegida e contactando com o exterior por um pequeno oríficio. A espécie responde pelo nome de Lithophaga aristata, e o nome inicial significa comedora de pedra. Apesar do nome, o bicho não sofre de nenhum distúrbio alimentar e não se alimenta verdadeiramente de pedra. Na realidade, a sua dieta é igual à da generalidade dos bivalves marinhos e o que se passa de facto é que desenvolveu, para sua defesa, a capacidade de corroer as rochas e criar para si um seguro lar de pedra. O nome aristata advém das estremidades pontiagudas e sobre isso soube de duas versões: uma, de que derivaria de ariete, por se ter imaginado inicialmente que usaria as suas pontas arrematando de encontro às paredes rochosas para perfurar o seu refúgio; outra, a de que aristata derivaria das extremidades se parecerem com as pontas das espigas. A primeira versão parece-me pouco credível, a começar pela questão línguistica ( ariete em grego, segundo o pouco que pude aferir, não é nada semelhante a aristata, e áries, donde deriva ariete é uma palavra latina), passando pela incongruência das designações (ou come a pedra, ou a desfaz, martelando-a), até chegarmos à pouca credibilidade da história dos primeiros classificadores imaginarem o uso referido para as extremidades, quando terão provavelmente encontrado indíviduos muito jovens já encerrados na rochas, e verificado que a forma do oríficio onde residem não se coaduna com uma escavação a partir do exterior. Além do mais, a designação aristata é muito comum na taxonomia da flora e rara na da fauna.
Do bicho, não conhecia o meu colega o nome comum. Encontrei num sítio de internet a informação de que popularmente se lhe chamaria olhos-de-água, mas fiquei de pé atrás porque encontrei à venda, também na internet, exemplares das suas conchas colhidos na praia de Olhos-de-água, em Albufeira. Como o nome da praia vem de nascentes de água doce aí existentes e não, tanto quanto eu saiba, de moluscos que a maior parte das pessoas nunca viu, desconfio.
A espécie encontra-se bastante distribuída no hemisfério norte, com populações na América do Norte, na costa atlântica europeia e norte-africana, e no Mediterrâneo. Verifica-se actualmente um alargamento da sua distribuição para o hemisfério sul, nomeadamente para a costa brasileira. E aí há relatos de um fenómeno não particularmente positivo. Em situações de ausência de uma costa rochosa, constata-se que a Lithophaga aristata se adaptou e inovou. Passou a instalar-se nas conchas de espécies de maior porte, como as vieiras, cuja composição química e natureza não é muito diferente das rochas. E não sendo muito esquisitas, as criaturas não distinguem entre hospedeiras naturais e hospedeiras instaladas em viveiros de exploração comercial.
A comedora de pedra passou de uma curiosidade zoológica a um problema económico.
Júlio Assis Ribeiro, SP_A_LTPGRSTT_01, 2010
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