domingo, 31 de outubro de 2010

Cavalos de luto

Em 1 de Fevereiro de 1908, a família real retorna de Vila Viçosa e chega a Lisboa num vapor, desembarcando junto ao Terreiro do Paço. Esperam-na alguns populares, na curiosidade que a pompa régia desperta. Esperam-na igualmente dois homens, Manuel Buíça, um professor que tentara a carreira militar e fora expulso, e Alfredo Luís da Costa, um empregado do comércio que publicava textos de polémica, ambos conspiradores ligados à Carbonária. Aquando da passagem do cortejo real, estes porão em acção o seu plano para matar o rei, Dom Carlos I, no que serão bem sucedidos. O príncipe herdeiro, Dom Luis Filipe, que resiste aos homens que disparam sobre o pai, será igualmente assassinado. Os regícidas são depois imobilizados, após confusão, tiros e golpes de sabre, e são prontamente mortos pelos polícias presentes.
A 8 de Fevereiro realizar-se-á o funeral régio, o ultimo a ter lugar em território nacional. O trajecto fúnebre inicia-se no Palácio das necessidades e passará pelo Terreiro do paço, local do acontecimento fatídico. Joshua Benoliel faz a cobertura fotográfica e das muitas chapas de vidro que gasta, salta-me ao olho um pormenor marginal. O fotógrafo, que capta os dignitários presentes, as carruagem, as coroas de flores, os auxiliares fúnebres e todos os demais aspectos deste tipo de evento, concentra-se algumas vezes em dois animais enlutados, cobertos de tecido negro. Um, Júpiter, é o cavalo do rei e também ele participa no funeral. O outro, cujo nome não descobri, é o cavalo do falecido príncipe herdeiro e a sua imagem parece-me ser a que melhor descreve o abatimento que a morte de alguém próximo acarreta. Jurar-se-ia que há, da parte do animal, um luto deveras sentido.

Joshua Benoliel, o cavalo que pertenceu ao Príncipe Dom Luís Filipe, 8 de Fevereiro de 1908
imagem obtida aqui

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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Amores pelos automóveis

Trabalhar a muitos quilómetros da residência, nesta terra de transportes públicos labirínticos, significa estarmos dependentes de um automóvel. Automóvel que nos pode avariar, assim sem mais aviso, junto a uma curva, e nos faz perder uma tarde de trabalho.
A mim irrita-me perder uma tarde de trabalho. E fazer dessa tarde um episódio de uma comédia fraquinha, que envolve ligar a um serviço de atendimento eficaz (como se fosse alemão), mas que depois me faz, após seguir para oficina como pendura no reboque (onde sou informado que é coisa pouca, nada que MUITOS dias de trabalho não paguem), ter de arranjar boleia para uma cidade a quilómetros, e meia hora, de distância para aceder a um veículo de substituição, pelo qual tenho de avançar com uma caução. Quando finalmente sou senhor deste carro provisório, é demasiado tarde para percorrer os quarenta quilometros que faltam para chegar à última aula que ainda poderia dar.
Não, hoje não estou de amores pelos automóveis.

Estúdio Mario Novais, Garagem, s/data
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lendo
























Fotobiografias do século XX - Joshua benoliel, de Joaquim Vieira,2009, Edição Círculo de leitores.

Não é barato, mas comprado online fica mais em conta. Vale a pena, não será exaustivo (nem sei se tal será possível em 200 páginas, com um homem que fez milhares de fotografias), mas anda perto e abre-nos o apetite para saber mais.

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A Formiga Branca

Associar num texto as formigas, insectos sociais hierarquizados, a exércitos, humanos organizados e hierarquizados, não é uma imagem inovadora. Porém, olhando-se para a Fotografia jornalística portuguesa dos primeiros anos do século vinte, podemos observar situações em que esta associação não é um recurso estilístico,  é antes algo bem literal.
Veja-se, abaixo, a fotografia de Anselmo Franco.

Anselmo Franco, Revolução de 14 de Maio de 1915
imagem obtida aqui


A imagem refere-se a acontecimentos de Maio de 1915, em que uma revolução armada pôs termo à chamada Ditadura de Pimenta de Castro. A dita ditadura nascera de uma iniciativa institucional promovida, em Janeiro de 1915, pelo presidente Manuel de Arriaga, que convidara o general para chefiar o governo, ignorando o parlamento dominado pelo Partido Democrático de Afonso Costa.
Pese embora o título, o governo nunca se impôs na verdade, minado quer internamente, com ministros em desacordo, quer pela acção dos democráticos.

O Partido Democrático,  que em rigor era o velho Partido Republicano Português (onde apesar das dissenções dos Unionistas e Evolucionistas, se mantivera a quase totalidade da máquina propagandistica e da estrutura organizativa prévias), organizou-se e, entre apelos públicos à insurreição, preparou o golpe.
No início de Maio,o governo perdeu definitivamente também o apoio dos Unionista e então tudo se precipita. A 14 de Maio alguns membros da armada, forças do exército, da GNR, e muitos civis tomaram de assalto o arsenal da Marinha. Durante três dias, trocou-se fogo entre diversos pontos de Lisboa, e entre estes e vasos de guerra no Tejo. Haverá cerca de 200 mortos e mais de 1000 feridos.
A 17 de Maio está concluído o episódio com a vitória dos revoltosos. Anselmo Franco capturou um cortejo marchante dos vencedores. Encabeçam-no civis armados, homens da Formiga Branca, uma milícia mais ou menos informal, mais ou menos reconhecida, constituída em larga medida por membros da Carbonária. Esta milícia funcionou durante grande parte da 1ª República como tropa de mão do Partido Democrático, agindo como uma polícia política por vezes (denunciando,atacando e prendendo opositores dos Democráticos),e como uma força musculada outras vezes (cortando estradas, atacando sedes de jornais e até derrubando governos).

Voltando às figuras de estilo, pode-se ver na Formiga Branca uma alegoria. O nome do bicho é um sinónimo de térmita, insecto também sociável e que atacando a madeira, de que se alimenta, é responsável pela destruição contínua e vagarosa de muitas construções. A milícia a que o Partido democrático recorria minou, anos a fio, um dos princípios base do tecido social do Estado -o monopólio da força. À semelhança de térmita em casa de madeira, a Formiga Branca era um sinal, e uma causa, da derrocada lenta do edifício institucional da primeira república.

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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

SPECIMEN - O Carrapato

Existe uma espécie de lei natural que impele os miúdos pequenos a evitar qualquer troço de calçada ou de piso alcatroado, optando por terreiros enlameados e matagais. É assim hoje, com os meus rebentos, era assim nos anos setenta, quando eu era um rebento, e só não era assim no tempo dos Neanderthais porque estes ainda não se dedicavam à grande e nobre arte portuguesa de fazer estrada.
Existe igualmente uma lei universal, e perene, que leva os pais a importunarem os petizes por comportamentos tão pouco lógicos e asseados. Comportamentos que, a seu tempo, estes aprendem a negar ter tido (os famosos “ Eu? Eu não! … Eu não andei na lama” ou “ Não tive culpa, empurraram!”). Mas o dom de ocultar factos leva tempo a apurar, e nem todos chegamos à mestria. Os adultos apanham-nos pelos indícios, a lama salpicada nas costas, as palhas agarradas à roupa, a areia transportada dentro dos sapatos.
Quando era miúdo um dos sinais mais bufos das minhas escapadas por atalhos cheios de ervas era o Carrapato. Espécie de coroa minúscula de espinhos, existe aos milhares e agarra-se à roupa como uma carraça (daí lhe vem o nome). Para meu infortúnio, funcionava melhor, muito melhor, com os tecidos sintéticos baratos que abundavam na época em que o país se entretia, e exaltava, com palavras fabulosas como reaccionário, neocolonialismo, proletariado e imperialismo. Por mais que os retirasse das meias, das calças e das camisolas, havia sempre alguns que escapavam.

Assim, já sabia quem era culpado quando, ao chegar a casa, a minha mãe me recebia com um “ Mas por onde é que tu andaste?...”. Era o carrapato.

Júlio Assis Ribeiro, SP_V_CRRPT_01 - Carrapato, 2006

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

ONTOS - Uma diatomácea em 1911

Eis uma diatomácea capturada em imagem, ampliada com um factor de 2000, e exposta na 56ª exposição da Royal Photographic Society of Great Britain. O autor,  T. W. Butcher, era médico e membro da  Royal Microscopical Society.


T.W. Butchet,Navicula Lyra Smithii, 1911
imagem obtida aqui

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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ao que iam

Joshua Benoliel, Força de Cavalaria na lagoa da Murta, em exercícios de preparação do Corpo Expedicionário Português, Tancos, 1916
imagem obtida aqui

Insisto no Benoliel .
Acompanhando a tropa que se preparava para ir para a Flandres, onde até 1918 combateria os alemães (e a lama, o frio, os piolhos, as epidemias e as rações de combate inglesas) enterrada nas tricheiras, o fotógrafo apanha-a em terreno aberto e alagado - cenário john wayniano avant la letre.
Olhando-os quase cem anos depois, perguntamo-nos quantos daqueles homens saberiam ao que iam.

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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Portugal enquanto ponte de barcas

Joshua Benoliel, Preparação para a guerra - Passagem da Cavalaria pela ponte de barcas, Tancos, 1916
imagem obtida aqui

Há algo de metafórico nesta imagem de Benoliel.
Em 1916, Portugal e o ainda recente regime  republicano estavam longe de ser um modelo de estabilidade, progresso económico e paz social. Elevada conflituosidade entre republicanos, entre estes e a Igreja e os monárquicos, golpes, greves, inflação, muitos são os males que se enfrentam na altura. E então, como quase sempre entre nós, foge-se para a frente.
Olhando a grande guerra, o poder decide participar no teatro bélico europeu.
O país, instável, sem estruturas, arrigementa tropa sem equipamento e logística para o combate, cuja verdadeira natureza desconhece, e para ser recebida com enfado pelos aliados. A guerra pesará e marcar-nos-á demoradamente. Inflacionará o número de militares que, retornados da Flandres, se recusarão muitas vezes a abandonar os quarteis e o soldo. O Exército torna-se um lastro extra. Um factor acrescido de instabilidade numa sociedade que aguenta com dificuldade e abana como a ponte das barcas em Tancos. E que, como os remadores erguidos, espera por algo.
Algo que chegará, tristemente, dez anos depois da fotografia.

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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SPECIMEN - Passer domesticus

Num tempo em que até Lisboa era pontuada por quintas e terrenos com mato, e em que não se sonhava com Playstations e Xboxes ( alguns afortunados almejavam uma coisa a que pomposamente chamávamos computador - o seu nome verdadeiro era Spectrum- e que era um objecto que se ligava a uma televisão e a um gravador de cassetes, durante meia hora, para carregar uma coisa a que pomposamente chamávamos jogo, e que quase invariavelmente dava erro durante o carregamento), a miudagem praticava toda uma variedade de actividades de exterior.

De entre estas, uma era dominada pela passarada. Dominada salvo seja. A moçanhada perseguia, apanhava, aprisionava e matava a passarada das mais estranhas às mais banais formas. Havia uma mistura de crueldade infantil com o mesmo primevo entusiasmo predatório que leva anafados cidadãos a madrugar em dias de inverno, os arrasta para a lama e o frio a léguas de casa, e os faz regressar noite caída com um minúsculo e esquelético coelho.

À sua escala, a maltinha caçava impiedosamente. Com fisga e pressão-de-ar, com esparrela (pequena armadilha de arame com mola, parecida aos engenhos de caçar ursos e outra caça grossa) e com visgo ( cola semelhante à de sapateiro, que barrada em ramos prendia pelas penas os incautos bichos que tinham a infeliz ideia de ali pousar). Faziam-se esperas junto a bebedouros naturais ou a outros que eram feitos de propósito, construíam-se abrigos para dissimular os caçadores e aguentava-se horas se preciso. Usavam-se chamarizes, pássaros judas que presos em gaiolas atraiam os semelhantes a uma triste sorte.

Durante anos, até ser arrebatado por uma súbita consciência ecológica e por um desvio de interesses ( aos catorze ou quinze anos começa-se a encontrar outras belezas bem mais interessantes que a das aves canoras), madruguei e com outros percorri quilómetros de bicicleta, e dediquei-me à arte de armar ao pássaro. Encontrado um local promissor, montava-se uma armadilha de rede que era accionada puxando uma corda.

Ansiava-se apanhar pintassilgos, bicos-de-lacre ou pintarroxos, variedades vistosas que suportam gaiola e eram apreciadas pelos mais velhos. Mas a maior parte das vezes calhavam-nos apenas pardais, que apesar do nome científico passer domesticus, são demasiado cientes da liberdade, canas rachadas que não se alimentam e definham até à morte em cativeiro. O destino natural desses pardais era a companhia do azeite e do alho numa frigideira, petisco algarvio a que eu não era particularmente atreito. Por isso, quando armava sozinho libertava-os e regressava das caçadas de mãos a abanar.

Depois concluí que gostava mais de percorrer as estradas que acompanham as ribeiras do que de esperar por pássaros que não fazia questão de comer, e que gostava muito mais de os ver ao longe do que de limpar diariamente gaiolas, e desfiz-me da rede de armar.

Mas ainda dou por mim a seguir com os olhos estes pequenos dinossauros de penas que todas as noites fazem um tremendo escagaçal nas árvores junto à minha casa. Como um gato velho a olhar da janela os pardais.

 
Júlio Assis Ribeiro, SP_A_PRDL_01 - Pardal ( Passer domesticus), 2005

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domingo, 10 de outubro de 2010

A Morte de Miguel Bombarda

A revolução republicana de 1910 esteve prestes a não acontecer. Acordados os planos, um incidente fortuito leva-lhe o líder civil um dia antes da data definida para a acção. Sentindo o agoiro, numa reunião realizada nas instalações duma empresa de Inocêncio Camacho, alguns dos envolvidos no golpe pensam a desistência. Mas a postura decidida do líder militar, o almirante Cândido dos reis, força a manutenção da conjura que se virá a desencadear a 4 de Outubro. Para ele, a revolução ou se faz nessa noite, ou não se faz. E afirma, premonitoriamente, estar disposto a sacrificar a sua vida na realização dos movimentos acordados. Assim, a revolta militar desencadeia-se e, não sem percalços (ver A Revolução deles) como o do suicídio do almirante, acaba por ter sucesso.

Mas na manhã de 3 de Outubro, um jovem tenente de 31 anos, num episódio de doença mental e alucinação, quase precipita o abandono do golpe. Aparício Rebelo dos Santos, que um ano antes estivera internado, durante três meses, no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles, faz-se apresentar junto do gabinete do director e solicita ser recebido. Miguel Bombarda, o homem que transformara o tratamento da doença mental em Portugal, levando-a do enclausuramento e tratamento por castigos corporais para os enquadramentos positivistas que vigoravam então na disciplina, abandona os seus aposentos no Rilhafoles por volta das 11:00h e ao entrar no gabinete é informado do desejo do tenente. Bombarda, que aceitara contrariado dar-lhe alta, a pedido do pai do militar e para fins de consultar sumidades em Paris, um ano antes, recebe-o de imediato e sem desconfiança.


É pois num cenário de total surpresa que Aparício dos Santos ergue um revólver e dispara. O médico reage a um primeiro tiro que o atinge numa costela, e agarra o tenente tentando desarmá-lo. Inutilmente. Antes de ser agarrado por um auxiliar, conseguirá ainda desferir vários tiros no ventre de Miguel Bombarda, que começa a sangrar profusamente. Consciente, é levado para o Hospital S.José onde, segundo se diz, terá ainda entrado pelo próprio pé.


A notícia do atentado ao deputado republicano por Lisboa voa espantosamente rápida por Lisboa. Alguns, cientes das opiniões do médico, que equiparara o jesuitismo a um problema do foro mental, acusam os padres de instigar o agressor. Geram-se ajuntamentos, no chiado, na calçada do Combro e noutros locais, que acabam por confluir na rua Garrett junto à redacção do jornal monárquico O Portugal, dirigido pelo padre Matos, onde se dão confrontos com a policia.


Joshua Benoliel, que se revelou um homem com talento para estar nos sítios certos, assiste à preparação da operação que tentará salvar Miguel Bombarda. Fotografa-o numa sala do S. José, deitado, com a cabeça assente sobre duas almofadas e segurando o lençol e a manta que o cobriam, enquanto ao lado se atarefam nos preparativos da operação que os doutores Francisco Gentil e Oliveira Feijão irão realizar. É calma a imagem, não se observam sinais de pânico e precipitações. Desconhecendo-se os factos e os presentes, poder-se-ia pensar estar perante uma representação fotográfica de uma situação hospitalar corrente dos inícios do século vinte. A imagem confere verosimilhança a relatos que descrevem um Miguel Bombarda consciente da morte, sereno mas inconformado com o seu fim não a lutar pela queda da monarquia, que tivera como provável, mas na sequência dos actos de um louco.

Joshua Benoliel, Miguel Bombarda antes da operação, 3 de outubro de 1910
imagem obtida aqui

Morrerá pouco depois das seis da tarde de 3 de Outubro, em resultado de infecção abdominal, poucas horas antes do início da revolta militar que planeara e desejava. Mas a sua morte poderá ter tido um papel mobilizador nos civis que nos dois dias seguintes se somarão aos poucos militares resistente na rotunda, e que serão em boa parte a razão do sucesso do golpe.

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Revolução deles


 Alberto Carlos Lima, grupo de civis revolucionários, 5 de Outubro de 1910
imagem obtida aqui

Há cem anos e um dia uma revolução militar deu os primeiros passos de forma oleada e promissora. Depois tudo começou a correr mal.

O almirante Cândido dos Reis, que estava destinado a ser o elemento chave e o coordenador do golpe, fica retido por falta de transporte e não consegue embarcar para o navio da Armada determinado. Seguidamente recebe informações incorrectas que davam como frustrado o inicio da revolta, e desaparece sem que mais saibam dele até ser tragicamente tarde. Será encontrado morto, numa azinhaga, presumindo-se o seu suicídio. As unidades sublevadas do exército encontram resistência e não conseguem avançar. Acantonam-se na Rotunda e aí a revolução fica praticamente acéfala. Apenas um oficial, o comissário naval Machado Santos, fica com os sargentos e os praças. A acção parecia condenada ao mesmo desfecho da revolta portuense de 31 de Janeiro de 1891.

Seguem-se bombardeamentos mútuos. As peças ao dispor de Machado Santos disparam sobre o Rossio. A resposta do capitão Paiva Couceiro, com a artilharia vinda de Queluz, provoca baixas na Rotunda e o seu avanço parece ser retido apenas por ordens superiores. Os cruzadores Adamastor, controlado pelo tenente Mendes Cabeçadas, e S. Rafael contrapõem à aparente superioridade terrestre dos monárquicos um bombardeamento, a partir do Tejo, dos ministérios e do Palácio das Necessidades, levando à saída do rei.

A situação militar em terra está em risco, mas os cerca de duzentos militares revoltosos vêem as suas posições engrossar com chegada de contingentes de civis que, com armas próprias ou com as que os barricados lhe entregam, se revelam decisivos. A acção da Carbonária faz que com que uma massa de comerciantes, artesãos, funcionários e outros membros da incipiente pequena burguesia citadina aflua ao contingente revoltoso. Os oficiais ausentes, reflectindo a situação, retornam às hostes revolucionárias.

Na manhã de cinco de Outubro de 1910, após os fortes bombardeamentos monárquicos da madrugada, um caricato incidente fará os republicanos sentir o cheiro da vitória e precipitará o fim do impasse militar. Um diplomata alemão tenta negociar um armistício para permitir a evacuação de cidadãos estrangeiros, e a visão de uma bandeira branca leva a crer que os do governo se rendem. Na confusão gerada, as forças monárquicas revelam-se impotentes perante a afluência de populares que acorrem ao Rossio e aos Restauradores. Machado Santos que aceitara relutantemente o armistício proposto pelo representante alemão, sente-se em posição de força e impõe a rendição ao general Gorjão Henriques, que comandava os oponentes.

Às nove horas da manhã, Carlos Relvas, acompanhado de Eusébio Leão e de todo um pequeno directório republicano, proclama do alto da varanda dos paços do concelho a instauração da República.

Nas ruas os civis, que antes se aglomeravam junto a uns poucos militares revoltosos, festejam efusivamente. Vemo-los amontoados em cima e em torno de um dos raríssimos automóveis, acenando os chapéus. A revolução, que era deles, vencera.

E não adivinhavam então as desilusões futuras.


(atribuída a) Joshua Benoliel,
Implantação da República, 5 de Outubro de 1910
Imagem obtida aqui


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