quarta-feira, 27 de março de 2013

Negociantes de escravos

A guerra civil americana (1861-1865) teve como pretexto para início das hostilidades a oposição à escravatura por parte de Abraham Lincoln, o então recém-eleito presidente. Se é certo que há teorias que defendem que esta não era a razão única da guerra, o facto é que foi o motivo invocado pelo Sul, latifundiário e essencialmente agrícola, para tentar tentar a Secessão.

Esta guerra não foi a primeira a ser fotografada, tal "privilégio" coube à chamada guerra da Crimeia, terminada cerca de meia dúzia de anos antes. Foi porém o primeiro evento bélico com uma cobertura fotográfica quase sistemática. E este facto deveu-se grandemente à acção de Mathew Brady, um fotógrafo nova-iorquino que aprendera o ofício com o homem que introduziu a Fotografia nos Estados Unidos, Samuel Morse.

Brady, pessoalmente e através de fotógrafos por ele contratados, realizou a quase impossível empresa de  seguir os combates, registar os seus efeitos, retratar os seus intervenientes. Isto, no tempo do chamado colódio húmido,  com as fotografias a serem feitas em chapas de vidro, que tinham de ser sensibilizadas, expostas e reveladas num curto espaço de tempo, em carroças-laboratório que seguiam os eventos.
A tarefa foi gigantesca e quase levou Brady à bancarrota.

A quantidade de imagens produzidas foi enorme, tendo em conta as dificuldades técnicas. Mas destas, poucas registaram o motivo que levara à guerra. Raras imagens deixaram o registo visual da escravatura.
E quando o fazem é geralmente de forma algo indirecta. Fotografia de escravos libertos ou em fuga, ou soldados negros da União, geralmente em segundo plano.

Andrew J. Russell, Armazém de escravos  Price, Birch &Co,
Alexandria, Virginia, 1861-65
imagem obtida aqui


A imagem acima, por vezes atribuída a Mathew Brady, mas tendo sido feita por um dos seus colaboradores , Andrew J. Russell, regista de forma quase imperceptível, à primeira vista, a naturalidade com que o fenómeno da escravatura era encarado no sul.
Mostra-nos um quarteto de soldados nortistas, mais ou menos descontraídos, que montam guarda a um estabelecimento comercial.
Nada na fachada parece distinguir o armazém, poderia ser qualquer coisa. Mas um olhar mais insistente, que leia as letras pequenas da segunda linha do letreiro da fachada, revela-nos algo inesperado.

Andrew J. Russell, Armazém de escravos  Price, Birch &Co,
Alexandria, Virginia, 1861-65
imagem obtida aqui

O insuspeito edifício era um armazém de escravos. Price, Birch &Co era uma companhia que negociava em escravos, e que publicamente anunciava o seu negócio, como se se tratasse de uma loja de ferragens, ou uma serração.

A nossa sensibilidade leva-nos a encarar o comércio de seres humanos com profunda repugnância. Algo que está ligado ao lado mais obscuro da Humanidade, algo que sabemos ter existido (e que ainda existe estranha e desgraçadamente), algo que  tendemos a pensar que era de alguma maneira escondido e dissimulado.
Mas esta sensação é um reflexo adquirido. Para os sulistas,  de uma maneira geral, o comércio e exploração de escravos era um negócio tão honrado como a venda de alfaias agrícolas. Para as sociedades escravocratas estranho era pensar o oposto.

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terça-feira, 12 de março de 2013

As mães migrantes de Dorothea Lange

Alguns fotógrafos, por uma rara conjugação de factores, têm a felicidade de fazer uma foto que se torna "a imagem" de uma determinada época, de um determinado fenómeno, de um conflito.
Essa felicidade tem um contraponto porém. Como um buraco negro, a fotografia icónica parece absorver toda a sua obra.

Dorothea Lange, fotógrafa norte-americana, fez em 1936 a imagem que se tornou um símbolo da Grande Depressão. Esta começara como um fenómeno da grande finança, um incidente do mercado de valores, em 1929, e rapidamente alastrara de forma dramática para a chamada economia real.

Rondal Partridge, Dorothea Lange, 1936
imagem obtida aqui


A perspectiva inicial dominante das autoridades dos Estados Unidos, onde se dera o crash bolsista, e da maioria dos países industrializados foi, basicamente, a de não fazer nada e esperar que passasse. Os resultados desta abordagem "naturalista" foram catastróficos: o comércio mundial caiu para metade, o desemprego aproximou-se do terço da população activa,  o sistema bancário praticamente colapsou e os preços das materias-primas cairam a pique.

Em 1933, Franklin Roosevelt tomou posse como presidente nos Estados Unidos e iniciou um ambicioso projecto de revitalização económica, o chamado "New Deal". Nasceu daí a campanha fotográfica da RA (Resettlement Administration), mais tarde renomeada FSA (farm security admnistration), que visava dar visibilidade à pobreza rural que grassava no país, e convencer as franjas da população que permaneciam opositoras ao plano de combate à pobreza.

Dorothea Lange seria contratada para esta campanha e desenvolveria ao longo de quatro anos, de 1935 a 1939, um vasto trabalho sobre as populações rurais. E em 1936, cruzou-se com Florence Owens Thompson, uma trabalhadora migrante de 32 anos, mãe de vários filhos, que se vira forçada a acampar em condições miseráveis, no norte da Califórnia, enquanto esperava a reparação do carro em que deslocava de terra em terra, em busca de trabalho. Faria com ela seis imagem, mas apenas a de plano aproximado, de rosto carregado com um bebé ao colo, e duas crianças um pouco maiores a ela encostadas, viria a obter uma atenção maior. Serviria, como praticamente nenhuma outra, o propósito da FSA de mostrar o quanto a economia debilitada estava a ter um impacto pessoal avassalador em muitos americanos.

Dorothea Lange, mãe migrante, 1936
imagem obtida aqui


O esmagador sucesso desta imagem acabaria por, de alguma maneira, ofuscar muito injustamente o restante trabalho da equipa da FSA, que não teria para a posteridade o destaque da fotografia de Lange.

As razões da particular eficiência desta imagem, da sua atracção, são múltiplas e subtis. Não se prendem apenas com olhar compassivo com os desapossados; esse olhar era a marca-de-água do projecto da FSA, imprimida por Roy Striker, o responsável. E não se prendem exclusivamente com a temática da maternidade. Para além de outros a terem trabalhado, a própria Lange a abordou outras vezes, mesmo depois da FSA, sem o mesmo apreço público avassalador.
Mesmo quando as imagens era fortes e belíssimas.
Um exemplo: em 1940,em Maricopa, Arizona, num trabalho apoiado pela WPA (Works Project Administration), outro projecto governamental norte-americano da era Roosevelt, Dorothea Lange captou uma outra mãe migrante, uma apanhadora de algodão, com o seu filho de meses.

Dorothea Lange,
Apanhadora de algodão migrante e o seu filho,
Maricopa, Arizona, EUA, 1940
imagem obtida aqui


A imagem é tocante e reveladora da mesma pobreza nas classes trabalhadoras do período, mas não há nela a secura da fotografia de 1936, não há a mesma a sensação de rumo perdido.


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quarta-feira, 6 de março de 2013

ONTOS: Amanita muscaria

Huron H. Smith, botânico e etnólogo, realizou diversas campanhas de investigação científica nas zonas mais intocadas dos Estados Unidos durante as primeiras décadas do século vinte. Nelas usou de forma sistemática a fotografia como ferramenta de trabalho, deixando um espólio impressionante.

Abaixo, um exemplo:  duas vistas dum cogumelo Amanita muscaria, captadas na sua expedição ao estado do Oregon, em 1910.

Huron H. Smith, Amanita muscaria, Oregon, E.U.A., 1910
imagem obtida aqui


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terça-feira, 5 de março de 2013

ONTOS: Um peixe deformado

Em 1971, a recentemente criada Environment Protection Agency, nos Estados Unidos, decidiu desenvolver um projecto de conscencialização assente no trabalho de fotógrafos que registariam o estado do ambiente e a vida quotidiana dos americanos para memória futura. Esse projecto chamar-se-ia DOCUMERICA, e nele trabalhariam cerca de 100 fotógrafos, que produziram aproximadamente 80.000 imagens.

Em 1973, Donald Emmerich, um dos homens do projecto, fotografou um exemplar de jordanella floridae severamente deformado, em resultado dos altos níveis de contaminação com metilmercúrio em alguns lagos e cursos de água.

Donald Emmerich, Jordanella floridae deformado,
EUA, 1973
imagem obtida aqui


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sábado, 2 de março de 2013

O lugar do Poder

Em Portugal, um mesmo local simboliza o poder desde o início do século dezasseis - o Terreiro do paço.
De início, assim era de facto porque lá morava o poder. Em 1511, D. Manuel I mudara-se do medieval castelo de Lisboa para um palácio junto ao Tejo.
Com a perda da independência, nos reinados filipinos, o paço sofreu enorme obras e tornou-se um símbolo dum poder distante e estrangeiro. Depois, com a restauração da independência, tornou-se apenas o símbolo dum poder distante.
Finalmente, o terremoto de 1755 destruiu totalmente o palácio real, e em sua substituição foi construída uma praça de traça racionalista, a Praça do comércio. Mas, com a naturalidade das nações velhas, o nome antigo ficou e perdura. Indiferentemente, os lisboetas, e os portugueses em geral, chamam àquele lugar, onde ainda hoje residem alguns ministérios, um e outro nome, sem problemas e sem confusões acerca daquilo a que se referem.

Apesar de a maioria dos ministérios já terem partido para moradas mais modernas, quando o país se irrita e protesta, é para ali que se dirige.

Em tempos de Ditadura, as massas irritadas não se podiam dirigir para tal lugar (em bom rigor, não se podiam dirigir para lugar nenhum). O que não quer dizer que estivesse livre de manifestações. Estas eram porém de natureza diferente, de apoio organizado, de veneração orquestrada ao ditador.Uma das melhores imagens desses tempos, de Horácio Novais, apresenta-nos a figura do ditador de costas, acompanhado de alguns próximos, a assentir paternalmente, sem entusiasmos, da varanda dum dos ministérios à multidão organizada.

Horácio Novais, 
Salazar e manifestação no Terreiro do Paço, sem data
imagem obtida
aqui


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